23 dezembro, 2018

As renas do Pai Natal voam!


O bonacheirão barbudo barrigudo, de bochechas rosadas a combinar com a fatiota, diz-se que anda num trenó cheio de brinquedos e puxado por renas voadoras.

Um dia encontrei o duende do fim do arco-íris. É um espertalhaço, deu-me a escolher entre o pote de ouro ou um segredo. Deixei o pote e escolhi o segredo. Quem resiste a um segredo contado por um duende? Era Natal, contou-me o segredo das renas voadoras, tal como se segue:

Existe um grupo de elfos, daqueles que trabalham com o Pai Natal, que se especializou na recolha de sonhos. Na Primavera espalham-nos pelos campos verdes da Lapónia e no Inverno juntam-nos aos líquenes que afloram à neve. 

As renas, com muito cuidado para não os pisar, deles se alimentam e crescem garbosas, com as suas galhardas bem fortes, o peito largo e possante e os cascos rijos, que deixam marcas no gelo. O Pai Natal ama as suas renas e não raras vezes é visto com uma mão cheia de sonhos a alimentá-las, uma a uma. Pára, murmura-lhes coisas ao ouvido e as cores da aurora boreal ficam mais nítidas.

Uma noite por ano, aquela que nós sabemos, as renas, com o peito cheio de sonhos, levantam voo e à velocidade do luar, levam o Pai Natal a espalhar Alegria e Felicidade pelo mundo.

As renas voam no céu e as meninas e os meninos, que de manhã brincam e à tarde brincam também e à noite, ao colo da mãe ou do pai, escrevem cartas ao Pai Natal e com esperanças e certezas, adormecem e sonham com ele, com os brinquedos e com as renas a voar, não sabem, nem é importante que saibam, que são os seus sonhos que movem o mundo.

Isto contou-me o duende e quem sou eu para duvidar.

21 dezembro, 2018

Terapia


Após uma longa espera e um diagnóstico de tensão arterial em alta, deram-lhe um comprimido colorido para esconder debaixo da língua. Mas que raio pensa este gajo que me está a dar? A merda de um smartie? Vamos-lá-despachar-isto-menina-que-a-fila-ainda-é-longa-e-o-meu-turno-acaba-às-quatro!

Ando eu a descontar para esta merda uma vida inteira e espero três horas para este gajo gozar com a minha cara!



Sentou-se no carro, pronta a ser conduzida a casa. Tirou a receita já amachucada da mala que o médico lhe tinha rabiscado curiosamente com uma caligrafia bem legível. 


ESCREVA MAIS, FAZ BEM À ALMA E MELHOR À CARTEIRA!

Esboçou um sorriso e decidiu que ia seguir à risca a prescrição médica. Sem qualquer restrição!

19 dezembro, 2018

O Jardim dos Suicidas


Ao lado direito do Elevador da Glória está o Jardim de São Pedro de Alcântara, um dos miradouros mais celebrados da cidade, ponto de passagem obrigatório para turistas e curiosos. A Baixa Pombalina e as colinas orientais estendem-se ao olhar.


Num extremo do gradeamento que suporta o observante, encontramos umas escadinhas de pedra que nos conduzem ao patamar abaixo.  Acredite-se ou não, este local foi vazadouro de lixos e de animais mortos (!) nos anos que se seguiram ao grande terramoto. Só em 1835, depois de atulhado por iniciativa da Guarda Real da Polícia, devido ao cheiro nauseabundo que por aí pairava, se construiu o jardim, o qual encerra memórias trágicas e outras.

Das primeiras conta Luís Pastor de Macedo:

“(…) Mas ao passo que Lisboa desfrutava duma encantadora janela escancarada sobre si mesma e um jardim deliciosíssimo de copado arvoredo, dispunha também de um sítio esplêndido para a tentação dos suicidas. E essa aprazível e pitoresca varanda de parapeito de alvenaria com um metro de altura e com poiais de cantaria para que o visitante curioso pudesse sentar-se e gozar regaladamente o belo panorama, passou a ser procurada de maneira desenfreada por todos os desiluduidos que espectaculosamente queriam deixar este mundo.

E tantos foram ali os suicídios, tanto barulho se fez na Imprensa, tantos clamores subiram às esferas municipais, que a Câmara, já de posse da administração do jardim desde 1839, por resolução de 12 de Maio de 1864, mandou substituir o parapeito por uma grade, parte da qual pertencera ao antigo palácio da Inquisição. (...)”

De suicidas se fartava a futura Rua das Taipas e assim se explica o súbito arrepio, frio e pastoso, que percorre a espinha do desprevenido mictante, que depois de uma noite de folia no devassado Bairro Alto, desce ao jardim e sem vergonha aí se permite aliviar os seus fluidos.


Este texto completa-se com o "O Jardim dos Enamorados", que aparecerá por aqui noutro dia.

17 dezembro, 2018

Inacabado II

Que vidas suspensas se geraram,

São folhas, sem raízes que as segurem,

Vão vagando ao sabor de um vento que não as deixa pousar,

Giram à beira de um poço, coladas como mãos dadas por cima de um fosso.

Por entre uma névoa que não levanta e um pôr do sol que não termina, o abalo de um sismo alimenta corações que batem encurralados numa porta que não cede,

São folhas de um livro inacabado que não se dá, nem se diz...

15 dezembro, 2018

Olhos de céu e arco-íris

Gostava de me sentar ao teu lado no muro de pedra a fumar cigarros roubados do maço que o teu pai deixava um pouco por toda a casa.
Era bom estar ali contigo sem relógios, nem regras. Adorava aquela desorganização toda!
Havia pouco que fazer naquela casa enorme no meio do mato, mas inventávamos tantas coisas.
Até tínhamos feito um pacto: seríamos inseparáveis.
Mas… falhaste-me.
Ficaram-me os teus olhos cheios de céu e um sabor a água de menta e arco-íris.


12 dezembro, 2018

A discoteca, as ninfas e o castigo dos céus


Algures no West End londrino (zona de turistas e portugas à aventura), entrámos numa discoteca (Heaven/Hell, é escolher). Eu andava atrelado a uma mulher que gostava de mim (depois fiz merda (não fosse eu o Arroz Doce)).

A música da época (Rick Astley e Kylie Minogue e esses) convidava à dança (aquilo era uma discoteca!). A pista estava cheia (turistas e estrangeirados como eu). Dançávamos em roda (aquela treta dos amigos), e eu (Arroz Doce), sem me aperceber (já bezano), fui-me afastando para norte (atracão magnética).

Quatro adolescentes (de idade feita ok (não são essas da foto)) da terra do sol (cabelos louros, olhos azuis), com o calor e as feromonas que emanavam dos corpos suados e sensuais que me atingiam como cometas e a frescura dos lábios entreabertos de desejo (fogo) dançavam e eu fui parar ao meio delas (rimo-nos muito) e estava afogueado e a escaldar com aquelas peles a rodarem efervescentes a centímetros da minha (feliz).

Assim fiquei (pois), extasiado (confesso que também bastante túrgido), quando numa missão de resgate (sem aviso), entrou no círculo a minha monitora (benza-a Deus), que me sorriu (fiquei apavorado), e numa dança frenética e robótica distribuiu em cada passo cotoveladas e caneladas às deusas nórdicas (fod@-se, larguem o meu homem!) que se foram diluindo na multidão (trinta segundos tinham-se pirado).

Andei uns dias a pão e água (calha a todos), mas em retrospectiva foi engraçado (esqueço-me de tudo mas não me esqueci desta).

11 dezembro, 2018

Uma nota só



Gostava de ser música, só isso.
Uma nota só, um sol, um dó, um si bemol.
Guitarra ou piano tanto fazia, trompete, melodia, distorção com mel ou limão.
Uma nota fecundada ao ritmo dos flancos, das coxas rasgada.
Uma nota franca, transparente, que fizesse tossir de encanto, por vezes de espanto.
E claro, com muita sensibilidade e alguma verdade.


07 dezembro, 2018

Improviso



Incorrigível indiligente...Imensurável imobilidade...
Invejável inércia!
Haja incumprimento, indisciplina... o ideal!
Imagens imutáveis. Inquietude.
Invisível imunidade à insanidade.
Idílio com a indolência.
Que indelicadeza toda esta ironia! Indispensável,contudo.
Impaciente ilusionista a quem a imperfeição e o infernal impasse incomodam!
Impulsividade...intrepidez!

In ativo , afinal!

05 dezembro, 2018

O encanto da Sofia

A Sofia era única, a Sofia era um feitiço. Eu gostava da Sofia. 

A Sofia não dava beijinhos. Chegava com um high five e um "Tudo bem?". Eu detestava aquilo, queria abraça-la e beijá-la, mas também detestava o ritual beijoqueiro e então gostava daquilo, era ela. Lembro-me da constante que era o seu sorriso e de como dizia "Ganda maluco!!!!! Atina", e ria, ria sempre, quando o nosso tino se desatinava um pouco mais. 

A Sofia tinha o cabelo comprido, aos caracóis, muitos caracóis, que prendia atrás e por vezes, sem querer, deixava correr pelo ombro até ao seu decote bordado. Tinha um colete preto e um pescoço esguio e na curva do queixo tocavam as missangas dos seus brincos. Sempre vi luz nos olhos da Sofia e mesmo acompanhado esperava a sua voz. Gostava de a ter por perto, era bom. Segurava-me a alma.

A Sofia tinha umas sapatilhas pretas com bordados e flores e saias rodadas, com aqueles espelhinhos que brilhavam e com mais rendas e bordados de cores fortes e escuras, porque afinal éramos diferentes e até vestir o vermelho, ou o preto, era um desafio ao marasmo do Portugal em que vivíamos.

Eu gostava das meninas com saias rodadas e lenços da Palestina ao pescoço, como a Sofia.

A Sofia era perfeita, quase perfeita. Eu gostava da Sofia, a Sofia gostava de outro...

03 dezembro, 2018

A Inteligência e as suas aplicações práticas


O Dilbert vai no corredor e passa por alguém a varrer o chão.

A pessoa vira-se para ele e pergunta - Ouvi dizer que tem um QI altíssimo, não quer fazer parte da Mensa?

Da Mensa? - responde o Dilbert - Mas a Mensa não é aquela associação de pessoas altamente inteligentes?

Responde o outro - É, eu sou o presidente!

Pergunta o Dilbert - Então se é o presidente da Mensa como acabou aqui a varrer o chão?

Ao que o outro responde - A inteligência tem menos aplicações práticas do que se pensa...

E eu sigo o meu dia...

01 dezembro, 2018

Episódio Cigano

Tínhamos vinte e poucos, parava um cigano lá no bairro. Não me lembro do nome, vou-lhe chamar Miro, que fui ver ao Google e é nome cigano. O Miro andava de fatinho, gravata e  risco ao meio, como andavam antes dos brincos do Quaresma e dos penteados do Ronaldo.

Não era dali, mas conhecia os gadjôs, bebia umas imperiais, comia uns tremoços, etc.. Era desconfiado, até os pintas só lhe falavam quando ele queria. Vá-se lá saber porquê, atinou connosco uns tempos, viu que não havia ali  nada e bazou.

Lembro-me que uma noite teimou de ir buscar uns trocos. Nunca o vi fazer rien. Acho que a casa era o banco, a mulher vendia nas feiras com a família e ele ia buscar papel ou então umas t-shirts que despachava por ali. Isto foi há trinta anos, não havia cá Zaras nem cenas dessas.

(naquele tempo metade das palavras começavam por “c” ou “f”, mas como podem estar putos a ver isto e prometi ao Lisboa, vou-me controlar)

Ainda hoje não sei porque fui com ele, até porque já tinha sido martelado pelos ciganos. O Miro morava numas casas ocupadas ali à Picheleira. Ia-se por um caminho, meio terra, meio cascalho, sem luzes, tudo às escuras.

Ao cimo, estavam uns vinte ciganos a fazer a festa, à volta de uma grande fogueira. Viam-se viúvos de fato preto, chapéus e barbas brancas, e putos daqueles que andavam sempre a desafiar o people na rua e ninguém fazia nada, porque depois vinha a família toda e eu, que já vira cenas maradas, deu-me para filosofar, haveria mesmo vida após a morte como lera num livro qualquer? 

Calaram-se quando passámos, a olhar de lado para o gadjô, ou seja, a minha pessoa. A filosofia foi-se e pensei no meu testamento, mas não havia nada, tinha desbundado tudo. O Milo não ligou nenhuma, subiu um par de escadas, ouviu-se uma gritaria e desceu com um par de soutiens ou uma milena ou coisa que o valha.

Passámos a fogueira de volta e sentiu-se a tensão a crescer naquelas caras distorcidas pelo fumo, que me olhavam com um desdém silencioso e ameaçador. Vinte metros à frente, já as pernas não me tremiam tanto, ouviram-se três palavras vindas de trás. Claro que não entendi, mas deixei de respirar quando o Miro rodou, com passos ferozes chegou-se à fogueira e com voz altiva e de raiva começou a desancar nos outros todos. Estava à toa. Não percebia nada do que ele dizia num caló portuga, mas vi a cena toda e fiquei ali especado de pé e desmaiado. Era um menino.

Aquilo durou uma eternidade, mais ou menos um minuto, até ver que os ciganos não respondiam palavra, nada, niente, nem pio. O Miro voltou e só disse, vamos. Passado um quilómetro, quando voltei a respirar, perguntei-lhe, ó meu que se passou ali, o que foi aquela merda?

O Miro disse que era assim, que fazer aquilo era uma obrigação de vida de cigano, senão a família perdia a honra e isso não podia acontecer e disse também que os (aqui entra uma palavra começada por "f") a todos, (aqui entra uma palavra começada por "c"). Nunca perguntei o que ali se tinha dito. Estava vivo, o pessoal estava à espera e íamos curtir. 


Algumas palavras - parava: andava por ali; gadjô: não cigano; bazou: foi embora; fazer rien: fazer nada; papel: dinheiro; martelado: lixado (eufemismo); desbundar: cometer excessos; milena: nota de mil escudos; caló: linguagem cigana; merda: ainda se usa;

29 novembro, 2018

A chuva ainda não parou


Havia papéis espalhados por todo o lado. Chovia que se fartava havia dias e não se via jeitos daquilo melhorar.
Alguém tinha deixado um jornal em cima do banco de madeira cuja tinta verde aos poucos se despedia. Um jornal é sempre útil, quer seja para o próximo leitor cansado, quer seja para servir de lençol ao próximo inquilino do banco (se algum funcionário da mercearia do bairro puder deixar uma caixa de papelão para fazer de cobertor, este há de agradecer com certeza).
Não demorou nada até que aparecesse o primeiro locatário. Um sexagenário de rosto vazio, longas barbas brancas e a desolação nos olhos como cartão de visita. Empurrava a custo um carrinho de supermercado, dentro do qual carregava o seu mundo. Aproximou-se de um homem que fumava abrigado debaixo do toldo de uma pastelaria, de onde saía o aroma quente de bolos acabados de sair do forno. Uma moedinha amigo. Velho de um cabrão, vai mas é trabalhar! Era o que faltava sustentar esta gentalha. O velho baixou os olhos mortiços e continuou o seu caminho sem olhar para trás apesar do chorrilho de insultos que ainda prosseguia. Não evitava as poças de chuva, acho que se pudesse se teria afogado dentro delas. Os sapatos gastos deixavam à espreita meias desirmanadas coloridas. Talvez as únicas cores daquele dia.
Tomou o banco como seu. Era agora o ocupa daquele assento de madeira. Uma garota que por ali passava, tomada pela curiosidade, foi espreitá-lo enquanto este se preparava para o seu primeiro sono. Vais dormir aqui ao frio? Vai chover muito, sabes? O velho olhou-a com ternura. Vou ficar aqui, vou. Não tenho medo da chuva. Tenho é medo das pessoas.
A miúda encolheu os ombros e resignada com a resposta seguiu o seu caminho. O velho, que há muito se perdera de todas as suas recordações, tirou do carrinho de metal um cobertor sujo e ajeitou-se no banco a ver se se perdia na letargia do cansaço e do álcool.
Hoje de manhã, passei por lá, a caminho do dentista. O banco estava vazio. O carrinho continuava lá encostado à parede de um prédio antigo. A rua, essa estava repleta de gentes de rostos iluminados com sorrisos descartáveis debaixo de guarda-chuvas coloridos.
Os passeios  estão cobertos de folhas mortas.
A chuva ainda não parou.

27 novembro, 2018

Odin, o problemático

“Acautelem-se cristãos, hindus e muçulmanos, os únicos deuses existentes são os viris e sanguinolentos deuses nórdicos”.

Inventei esta parte, serve de alerta para o que se segue, uma memória de um livro que nem me lembro da capa.

Continuando, algures no futuro, ou talvez no passado, não que isto seja relevante pois tenho a certeza que os deuses se regem por outro calendário, decorre uma tremenda luta pelo poder no Valhala.

Isso também não tem importância, o pertinente para a história é que Odin, deus supremo, reformou-se e trocou o seu palácio em Asgard por uma casa de repouso em Miami, onde contrafeito recebe Thor e os outros em curtas audiências.

É um velho simpático quando usa fralda, mas não se iluda o leitor, continua com os poderes a funcionar, o da guerra e da morte e o da magia poética. Só que já não se dá ao trabalho.

Aliás, a única coisa que exige e dela depende a sua felicidade, é uma muda diária de lençóis, acabadinhos de passar a ferro, com goma e tudo.

Dá que pensar...

23 novembro, 2018

O Ego e Virginia Woolf


“I like reading my own writing. It seems to fit me closer than it did before.” 
Virginia Woolf, A Writer's  Diary



“Gosto de me reler. Cada vez me soa melhor”
(O Ego ama Virginia Woolf)

22 novembro, 2018

Garrett, o elegante


Garrett, cavalheiro trés chic,  rotineiro descia a colina do Chiado até ao seu amado Dona Maria.  Encontrei, pela pena de Norberto de Araújo, a imagem garrida do galante, que aqui partilho :

"(...) Garrett, flamante de casaca verde e bronze com botões dourados, colete de piqué de grandes bandas, cintado e pernalta, calça côr de alecrim, peitilho e punhos de canudo, luvas côr de canário, gravata azul ferrete (...)".

Atentem na combinação das cores. Confesso que os meus olhos se enchem de verde, não do da Esperança, descabido no contexto, mas do outro, do da Inveja...

20 novembro, 2018

Space Cake


O fim do ano foi em casa da Alice e do Willy. A Alice era uma portuguesinha de olhos verdes e nariz empinado de simpatia, era linda de morrer. O Willy era holandês, alto e magro, de cabelo espetado. Não sabia português, tomava conta da casa e do filho e tocava guitarra. Ela adorava o trabalho. Eram fixes e felizes.

Os convidados conheciam-se há muito e faziam parte daquela seita de casais com filhos pequenos, cúmplice e impenetrável, em que os homens falam dos filhos e das coisas dos filhos e as mulheres falam dos filhos e das coisas dos filhos. De bem com a vida, iam-se juntando aqui e ali, empurravam os baloiços aos putos, aturavam-lhes as birras, e fumavam um de vez em quando. Andavam pela sala a falar, a bebericar e a depenicar.

Os putos estavam no quarto do lado, ocupados a enfiar os dedos na baba de camelo, a partir os brinquedos e a arrancar as pernas das Barbies.

O Willy trouxe um bolo já fatiado, assim tipo bolo de aniversário, mas sem velas, nem cremes, nem recheio. O raio do bolo era bom, dava ares de pistacho e todos quiseram provar.

O holandês, que estava muito sério, ria agora que nem um perdido, it´s fucking space cake man, you gonna love it. O gajo é apanhado, pensaram os outros, mas a Alice, linda de morrer, confirmava, é verdade, e brincava, estão lixados. Ninguém acreditou.

Passada meia hora estavam todos arregalados, os olhos pareciam buzinas vermelhas e falavam ainda mais e grisavam-se todos. Ia-se aproximando o final do ano, a festa continuava, as garrafas estavam quase vazias e pouco havia para comer na mesa. Alguém contava e recontava as passas, como se disso dependesse a vida.

Uma rapariga abanava um caído num sofá, acorda pá, olha que perdes a passagem de ano, mas ele só grunhia, caraças mais ao gajo. A amiga dela dizia, deixa-o aí, vamos ao karaoke, e riam e o gajo no sofá, com a saliva seca aos cantos da boca, grunhiu outra vez. O homem da amiga estava a despejar as entranhas na casa de banho, mas as raparigas abraçaram-se, como só as mulheres sabem fazer, e sentaram-se no outro sofá a falar, a beber, a fumar e a achar piada aquilo tudo.

À janela da marquise, um casal trocado olhava as estrelas e a arder de desejo, comeram-se ali mesmo em dois minutos, tal era a fome.

O Willy, de olhos fechados, abanava a cabeça ao som do Hendrix e a Alice, linda de morrer, olhava para ele como para um deus nórdico. Era amor e space cake.

No quarto ao lado, os putos começaram a escavacar a mobília.

18 novembro, 2018

Inação

Finalmente entendo o porquê de me agarrar ao sofá, enquanto sigo pela parede as sombras da minha rua.

De agarrar um livro por abrir, e só ler uma página, e pousá-lo naquele monte que o tempo arrumou...

De ler sempre o mesmo livro!

De acordar manhã cedo, e me sentar na cozinha a olhar pela janela, olhar pela janela a ver o tempo, e ligar o computador só para ver o que vi pela janela.
De querer poupar tempo...

De me arrastar até ao quarto depois de banhado, e barbeado, e perfumado, sabonete de morango, creme de limão, e vestir a roupa alinhada de véspera, para poupar tempo hoje, porque o de ontem já passou!

De abrir a porta e descer as escadas, enquanto me esforço por lembrar o carro, tantas vezes o perdi, como ao tempo.

De seguir em frente até à curva...

...contracurva, campo grande, 2º andar, café, navegar, escrever, falar, descer, comer, café, subir, navegar, escrever, falar, descer, contracurva, curva, campo de ourique, 3º andar, navegar, escrever, falar, comer, café, ler, deitar, sem amar, sonhar.

E porque acordo no dia seguinte a pensar a razão de toda esta rotina, e sentado na mesma cozinha, e olhando pela mesma janela, finalmente entendo que tenho sempre tanto para fazer, mas que é tudo secundário...

15 novembro, 2018

OMG, e os deuses?

Ando a reler "O Ano da Morte de Ricardo Reis", o meu Saramago favorito se não fosse aquele que abraça os Sete-Sóis às Sete-Luas, enfim, adiante...

Confesso que toca-me mais "a Naturalidade" de Alberto Caeiro que o estoicismo de Ricardo Reis, mas ao meu condicionamento filósofo-heteronímico por certo sobreviverá a obra do mestre.

Com um olho bem aberto, outro meio fechado, no meu sacrossanto quarto (soa bem), ando por ali perdido, página atrás de página, percorrendo a Baixa com o odírico, narcotizado pela leitura, quando um alinhamento de espaços me desperta:

"Aos deuses peço só que me concedam o nada lhes pedir...", escreveu o laureado!

Perspectivo logo ali uma rara epifania. Não aconteceu, não que a bela frase não fomente a Inspiração ou que a inspirada frase não transporte a Beleza, mas talvez porque não tinha que acontecer.

Mas ficou cá, a soar, como os sinos da aldeia do Pessoa, em que já a primeira pancada tinha o som de repetida.

Muito se pede aos deuses. Muito eles nos têm concedido e muito eles nos têm negado, ou não fossem deuses, que não existem para cumprir o nosso destino.

Mas nada pedir aos deuses, é como largar um vício, e quando se larga um vício, a vida fica um pouco só, só um pouco, mais monótona, sem sal...

07 novembro, 2018

Jesus de veludo



Fui um dos atingidos pela censura musical, decorrente da social luso-tacanhice política, que durante décadas, anos, meses e alguns dias, se impôs neste belo país à beira-mar plantado, que na altura não medrava, talvez porque à beira-mar só haja areia e água salgada. 

Isto vem a propósito de só tardiamente ter tido contacto com os Velvet Underground, banda de Lou Reed e John Cale e Maureen Tucker e Sterling Morrison. O primeiro álbum por aqui editado foi VU, de canções perdidas, em 1986. Mesmo assim foi uma óptima apresentação, o álbum é forte, pleno de guitarras e baladas, como só os Velvet as faziam.

'Jesus, help me find my proper place
Help me in my weakness
Cos I'm falling out of grace´

Os três versos acima, únicos na sua música, "Jesus", são de uma contrição e dedicação religiosa profundas. Estou a imaginar a sua transformação num gospel, com milhares de pessoas em uníssono, a cantar e a agitar os braços. Interessante reconhecer que o Corvo, Rei do Inferno e Anjo da Música, Nick Cave, digno sucessor de Lou Reed, também manipula com mestria o simbolismo religioso. As referências ao mesmo são milhentas na sua obra, culminando porventura em "God is in the House" (a ironia é desvendada no último verso da música, quem duvida vá ouvir tudo de novo).

"Jesus" pode ser ouvido no terceiro e último álbum da banda, The Velvet Underground, quando Reed e Cale já andavam à cabeçada, como acontece com todos os génios que se descobrem a partilhar o mesmo espaço, no YouTube e agora aqui (cortesia do último). Intensamente melódica e porque não profana só por existir, é uma das músicas mais belas e dedicadas ao eu que tive o prazer de escutar.

Sabendo nós dos excessos cometidos por Reed e os outros, a fraqueza das drogas, a pungente heroína, transformada em canção herética e por aí adiante, compreendemos absolutamente mais o que é cair na desgraça do Senhor e porque, por cá, o insolúvel Botas e os senhores do lápis azul, prestamistas do violência censória e do absurdo, se interrogavam ao enviar aos arcebispos de Braga a lista das músicas a incluir no livro negro da censura, que tal como vários percursos literários, nem uns nem outros entendiam.

04 novembro, 2018

Em terra


Mágoas de uma Lisboa que vive nas sombras, negra ao luar. As vendas cansadas trancam-se à vez, tremendo ao fundo deste empedrado retorcido a luz de uma taberna, azedada e gordurenta, cheia de homens suados a cheirar a vinhaça. Peço um bagaço, licoroso, para afastar os espíritos. Emborco mais um e depois outro!
Saudades de uma Lisboa, que afinal ainda existe, bela ao luar. As lojas de venda vão fechando à vez, restando ao fundo a luz alegre de uma taberna onde homens rosados, cheios de vida, pagam rodadas e brindam aos amigos. Peço um bagaço, licoroso, para dar forças. Mais um, chefe...
O vento gelado enrija os ossos, mas esfola a pele. Arrasto-me para a rua por onde corria descalço e transpirado atrás da bola, com as velhas a ralhar à janela. As mesmas velhas, ainda mais velhas, espreitam do escuro, entre cortinas encardidas e desalinhadas.
Aguardo na rua estreita, encostado à parede a fumaçar, entretido com duas vizinhas que palreiam de janela a janela, a aproveitar a noite amena. Há certas coisas nesta cidade que não mudam.
Do maldito treze, mau agoiro, azar, ruína, resta um molho de tábuas, de carvões retorcidos e um violento cheiro a fumo. Abafo um grito rancoroso, de revolta contra a cidade que me traiu e volto à taberna rançosa para avançar o luto.
Olha, aí vem ela, conheço-lhe o caminhar, o bambaleio das ancas que por um momento me faz lembrar o balançar do navio ancorado. Mas isso é amanhã. Hoje a noite é de sortes, de sorrisos e ternuras, de amores quentes, humidades e cheiros, entre lençóis desalinhados.

31 outubro, 2018

Bate chuva

Pelas frestas a aragem era fria. Trabalhávamos em silêncio, encafuados nos papéis, com o aquecedor ligado para consolar os ossos e já a pensar no almoço.

Lá fora, uma chuvinha miudinha puxava o lustro às plantas e pequenas gotas escorriam pelas folhas, molhando a terra.

De repente, a chuva cresceu, e já não era chuva, era cascalho que caía do céu, grossas pedras de granizo como nunca se vira. Afogava as plantas, pisava-as e o barulho ensurdecia. Corremos às janelas, as bocas abertas de espanto e medo. Seria o Dilúvio, o final dos tempos?

Um estrondo enorme sobrepôs-se ao bombear do granizo. Assustados, olhamos-nos e a Fátinha deu um ai Jesus. Corri ao corredor e vi cabeças assustadas a assomarem. A saraivada continuava, apavorava.

Caiu o telhado, pensámos todos e subimos a escada quatro a quatro. A porta do sótão estava trancada e a barulheira era infernal. Chegou a chave e entrámos, a Lena à frente, como sempre, e o Mendes atrás, ofegante e apavorado.

Nada, aparte a chuva que baixava o tom, as telhas velhas estavam intactas. Foram espíritos, gemeu alguém.

Então, uma vozinha soou do baixo das escadas, era o Nando, venham ajudar-me, a estante das enciclopédias caiu e por pouco não me matava.

Coitado. Apetecia-me esganá-lo. 

28 outubro, 2018

eu sou teu, eu sou tua (ou o feitiço de atrasar a hora)



Se o tempo andasse para trás porque não o atrasávamos só uma hora, mas duas, todas as horas e todos os dias.

Se por isso nos amássemos sempre mais, antes de fazer juras de amor eterno, eu sou teu, eu sou tua, porque a rotina nunca se instalara nem chegara a haver rotina e antes ainda fizéssemos amor por todos os cantos da casa.


Se nos escolhêssemos, eu sou teu, eu sou tua, antes de fazer amor por todos os sítios e também à chuva e fosse sempre diferente porque éramos sempre mais jovens e queríamos sempre descobrir e sentir mais.


Se fizéssemos brindes até cair de lado, sem pensar no futuro, sem preocupações ou responsabilidades, não sou mais nada que tua, não sou mais nada que teu, antes de aprender como era viver ao contrário, numa escola onde entrávamos a saber tudo e saíamos sem saber nada.


Se doesse nos amores perdidos e ardesse nos amores de perdição, antes de nos amarmos em todos os cantos e sítios do mundo, enquanto se pensava que não estávamos lá, mas estávamos abraçados na areia da praia, eu sou teu, eu sou tua.


Se ouvíssemos música como se não houvesse vizinhos, antes das borbulhas e das urgências de descobrir os corpos e beijarmos-nos e tocarmos-nos pelos cantos e era tudo novo e ninguém era de ninguém.

Se jogássemos ao bate pé, antes de trocarmos papelinhos na aula a dizer eu sou teu, eu sou tua, vamos dormir os dois, sem saber o que isso era.

Se levássemos uma palmada para existir, antes de nascermos da barriga da mãe. 


Se tudo parasse, antes de esticarmos as pernas e duas vozes se rissem muito, eu sou teu, eu sou tua e ele é nosso.


Se houvesse uma explosão de mil cores, antes de um espermatozóide ter fecundado um óvulo.

Se depois fosse o nada, ou talvez outra vida num mundo em que não se soubesse disto e só se andasse para a frente e se morresse!


26 outubro, 2018

Era Arte...



Não era bela, era Arte e a Arte não é beleza, é sentimento

                                                                                                                                                

23 outubro, 2018

Alice e o Coelho (capítulo final)


Alice comprou o revólver na loja do cavalheiro de cartola, que vendia chapéus de coco. Na montra ao lado estavam as botas que vira no catálogo do Ikea e levou-as. Uma arma precisa de umas botas a acompanhar, pensou Alice, espero que não sejam difíceis de montar.

Na pistola ouvia-se o zum zum das moscas. Alice atirou ao sino, que fez plin e a mosca voltou atabalhoada, à espera de um torrão de açúcar.

À noite, Alice esperou o Coelho atrás de um sinal de Stop, que ninguém respeitava. Aquele Coelho era o Inferno, perseguia Alice a gritar ai, ai, estás atrasada, ai ai estás atrasada. Era enfastiante, Alice não aguentava mais o ai, ai, porque até gostava de chegar atrasada.

Passou um carro, que fez Alice pensar em malvas, que até era uma cor bonita. Não parou no Stop. Depois um camião com três piscinas vazias, ocupadas por três sapos sapientes. Atrás estendia-se uma mangueira empinada. Alice achou piada e pensou no circo.

Dois pirilampos aproximaram-se e ela escondeu-se do outro lado do sinal, mas era o Gato que ri, que riu e lhe piscou um pirilampo. Sai daqui Gato, disse Alice, e o Gato fechou o sorriso e saiu.

Ao longe ouviam-se uns passos de elefante. A terra tremia, mas os passos iam ficando mais miudinhos à medida que se aproximavam. Alice ouviu o ai ai estás atrasada, ai ai estás atrasada, e dali mesmo disparou seis vespas. As vespas eram mais certeiras que as moscas e além disso tinham ferrão.

Acertou no valete de copas que a Rainha, por mau feitio, colocara junto ao coração do Coelho, que caiu redondo no chão. Alice aproximou-se, com as botas a brilhar das purpurinas. Gostava de filmes e imaginou-se no desenho da ilustração. Estou livre, pensou.

Do outro lado da rua a montanha russa cintilava e rugia. Os carrinhos de choque seguiam o bando de flamingos amarelos que iam para o Pacífico Sul.

O Sol tocou Alice, quente, com força. O Sol? Sentou-se, esticou os braços e bocejou um grande bocejo. Viu a almofada no chão e o desenho do coelho a rir, no meio das molas e das rodas do despertador, que gemiam baixinho um ai ai, ai ai, ai ai, ai ai.

Alice chegou tarde ao emprego. Fazia a voz da Alice no filme da Alice. O Sr. Purcel, que era o patrão e por isso fazia a voz do Johny Deep, amava Alice mas era odiado por todos. Com voz melosa disse-lhe, a menina Alice está atrasada, não me vai dizer outra vez que a culpa foi do Coelho.

Alice tirou a folga ao gatilho.

21 outubro, 2018

E quis eu ter outros olhos...



Ás vezes, quando te olho mais nos olhos, quase que sinto que me convenço que temos os olhos da mesma cor.

Aos teus olhos vejo-os com aquele verde que não é bem verde porque são castanhos, e logo os vejo, aos teus olhos, com aquele castanho que não é bem castanho porque são verdes.

E gosto deles assim, porque é também assim que vejo os meus olhos, quando distraído, ou com mais atenção, os olho no espelho onde olho os meus olhos.

E passam nuvens e o tempo vai, e corre o mar por baixo do céu, e passa o céu por cima da terra, e os outros, entontecidos, não sabem a cor dos nossos olhos.

Que olhos estranhos, um quer ser dois mas é só um, e o outro, que é só um, também quer ser dois.

Mas quando olho os teus olhos, quase que sinto que me convenço que temos os olhos da mesma cor, e pergunto... serão os teus olhos mesmo os teus, e os meus olhos mesmo os meus, ou serão os teus olhos apenas o reflexo dos meus, e os meus olhos apenas o reflexo dos teus?

07 outubro, 2018

A Deusa e o Guerreiro


Uma das mais belas lendas sobre a origem mítica da nossa cidade, respeita à origem das suas colinas, perdidas hoje entre o casario. A lenda dá-nos conta da paixão entre Ofiússa, a deusa serpente, e Ulisses, o grande herói grego intimamente ligado ao mito criador de Lisboa, em tempos Ulysipona.

Cedo a palavra ao professor Vitor Manuel Adrião, que no seu livro Lisboa Secreta nos descreve uma história de amor, raiva e ciúme: “Narram as lendas que Lisboa foi fundada por Ulisses, chefe dos Argonautas, que aqui se tomou de amores por Ofiússa, a deusa-Tejo, e que quando o Herói homérico regressou à sua pátria troiana no navio Argos, Ofiússa, vendo-se abandonada e só, se tomou de cólera e fez estremecer o planalto do Tejo, nascendo assim, por efeito dos telúricos estertores, as sete colinas de Olissipo, hoje Lisboa.”


É magnífico pensar que as nossas colinas terão tido origem no bater do coração de uma deusa apaixonada, a qual por despeito fez tremer a terra como prova do seu amor.


E porque não imaginar também, que a deusa serpente Ofiússa, que todos os dias renasce nas ondas atlânticas que agitam o Tejo que nos banha, não recordou séculos mais tarde o dia em que o bravo rei de Ítaca desprezou o seu seio, e agitando de novo o dorso com amor e com raiva, serpenteando por baixo das colinas lisboetas, castigou de novo a cidade no ano da nossa desgraça de 1755?

Ofiússa representa os Oestrymia, povo lendário que terá vivido na bacia do Tejo e que prestava culto à grande serpente.

A maquete é a do Museu da Cidade "Lisboa antes do terramoto"

06 outubro, 2018

Sobre o título

(latim ego, eu)o ser enquanto entidade consciente.
Eu sou e como entidade consciente o mundo gira à minha volta, tal como o dos outros à sua. É desnecessário o contraditório, mas se alguém se dispuser a fazê-lo remeto para a definição do dicionário, que vale o que vale, mas neste texto vale um subtítulo.
Este blogue é um espaço giratório e o que por aqui passar será condicionado pelo espaço e pelo tempo consoante a orientação do meu ego perante o mundo!


publicação periódica, geralmente ilustrada, que trata dos mais variados assuntos.
Tendo em conta o contexto,encaixa!