31 janeiro, 2019

Desafetos


Engasgara-se com uma sílaba tónica aquando de uma leitura tardia. Ficara com um nó na garganta que a obrigava a uma mudez involuntária. Ardiam-lhe as palavras, porém nenhum som se soltava.
Sufocava.
Os fonemas recusavam à sintaxe e à semântica, permanecendo imóveis em torno da sílaba cativa.
A rigidez a que estava sujeita tolhia-lhe a alma. Nem a mão trémula obedecia à caneta que nem chegara a riscar a folha que permanecia imaculada sedenta de sentidos. Havia dias em que tivera de apertar os lábios para não deixar sair palavras em excesso.
Hoje... uma elipse da voz suave e fresca. Na sala reinava um silêncio feminino.


29 janeiro, 2019

Vou-te contar...


E foi com esta melodia do mestre António Carlos Jobim, cantada aqui pela estonteante Elis Regina, que me apaixonei pela música brasileira e pelo Brasil!

O original de Jobim é instrumental e conta-se que pediu a Chique Buarque que lhe compusesse uma letra. Intimidado pelo pedido, ao fim de um mês o jovem Chico só tinha escrevinhado um verso "Vou-te contar...". Foi inspiração suficiente para Jobim, que a terminou e ...

...que resista sempre no "País Irmão" o espírito de Liberdade, Amor e Respeito pelo próximo, que a  Bossa Nova e a MPB, tão bem a nós, portugueses, ajudou a entender!  

28 janeiro, 2019

Olhar a dois


Ela, 
Não olhou ou pareceu não olhar,
O olhar das mulheres é estranho,
Olham mas não olham,
Escondem o olhar, 


Ele, 
Olhou ou pareceu olhar,
O olhar dos homens é estranho,
Não olham mas olham,
Perdem-se a olhar.

26 janeiro, 2019

O odiado Sábado!!!

"6ª feira é a espera do Levante que nunca mais chega para nos aquecer o mar, 
é uma bússola que aponta sempre uma fonte e nós com sede e cansados de andar."
(uma coisita pretensiosa para começar)

Esqueçam a imagem, foi o que se arranjou. Existe uma hierarquia nos dias da semana. Sim, existe sim!


Comecemos por baixo, pela vil 2ª feira, dia de ressaca, em que o tempo se arrasta e não passa. Nasceu para ser esquecida, mas no fundo não tem culpa de ter que existir.

Seguem-se a terça e a quarta. São dias sem história, não existem. São dias de arrasto, nem doces nem azedos, que se atravessam sem pensar. São o que são.

Quinta já começa a ter história, é o dia do "ainda", "ainda é 5ª feira", mas já dá perfumes a sexta. 

A 6ª feira por si só não é nada, mas é tudo porque anuncia o fim de semana. É um dia impróprio para ansiosos. Goza-se por antecipação e fazem-se planos. Aliás a sexta é quase fim de semana, pois é noite de jantarada. Pica-se com o Domingo, mas ganha quando grita, eu quero o sábado, que está logo ali e o domingo grita, eu quero o sábado, que está ainda tão longe.

Entremos no Top Três (se estiveram a contar parece que já só faltam dois, mas como o sábado são dois dias, por isso faltam três):

3 O Sábado de manhã é o dia das compras, limpezas, tomar banho e essas coisas necessárias. Torna-se aborrecido, cansativo e por vezes deprimente. Mas já é fim de semana, por isso que se lixe.

2 O Domingo é o Patriarca dos dias, faz-se amor de manhã, antes que os putos acordem, vai-se à missa, comem-se almoçaradas em família, tosta-se na praia, passeia-se e vê-se o Netflix. Dorme-se a sesta. É um dia vaya com dios.

1 O Sábado à noite, como suspeitavam se leram até aqui, está no topo. É um dia sem responsabilidades, que sabe a álcool e cheira a fumos e a suores, em que se respira música e se enrolam corpos desconhecidos por vontade. É o dia do Uber para o desconhecido.

O Sábado à noite é o Carnaval misturado com o Santo António e deve ser tão invejado e odiado pelos outros dias, a ansiosa 6ª feira, o relaxado Domingo, a odiada 2ª feira e os outros tontos, que nem imagino.

24 janeiro, 2019

"When you fit me, as sunday's frozen pitch fits the thermos flask"


Cover pura, por Claudia Jardine, de "Too much to ask", original da minha banda, Arctic Monkeys.

Alex Turner, poeta do impossível, compõe aqui um dos mais deliciosos e tristes versos que já me deram o prazer de sentir...

22 janeiro, 2019

O Vermelho das Amoras ou quando a Lua se fez Sangue

Na noite do eclipse a lua cheia escondia as estrelas, inundando os campos de uma luz vermelha. 

Perturbados, os sobreiros dos cabeços entrelaçavam as raízes nas oliveiras e pelos matos as estevas e as giestas chegavam-se aos alecrins. 

Os jovens seguiam calados pelo caminho, entorpecidos pelo rilhar das cigarras e dos grilos. 

Olha, amoras, apontou a rapariga e adiantou-se gulosa. As bagas, de um negro escuro carnudo, estavam ali á mão, e desfaziam-se em licor avermelhando os dedos e os cantos da boca. Partilhando a delícia, sorriram quando a lua lhes juntou as sombras. 

Piquei-me, suspirou ela. No dedo aflorou uma pinta de sangue. Deixa-me ver, disse ele. Agarrando a mão, lentamente roçou o dedo pela palma como quem lê o futuro. A lua brilhou um pouco mais, tudo ficou mais vermelho. O futuro não estava escrito, apenas o destino. 

O coração batia-lhe descompassado e o sangue fluía de desejo. Acompanhando-o, os olhos dela eram calor e os lábios vermelhos, ainda mais vermelhos do suco das amoras, murmuraram qualquer coisa que ele não ouviu. Enrolou-a nos braços e olhou a lua, que afogueada concedeu. 

E com um rosnar cego, uma ânsia, uma fúria, cravou os dentes na veia que latejava cheia de vida. Sentiu-a estremecer, ouviu-lhe o grito de pavor que se converteu em suspiro, e sôfrego, sugou. Parou saciado, com os olhos raiados e os dentes tintos do sangue.

Perdido na beleza de mármore, rasgou a carne e pinga a pinga deixou o seu líquido escarlate fluir-lhe ao coração, acorrentando-a à noite. Seguiram felizes até que o sol, apanhando a lua distraída, os separou.

21 janeiro, 2019

A Ilha dos Amores de Fausto


Veio à baila esta bela música do Fausto e aqui fica, não só por isso, mas também porque "Andamos nus e descalços, amantes, sedentos, Se o véu da noite se deita na curva do tempo." é muita poesia, muita arte, muito talento!

20 janeiro, 2019

A Lisboa de Eugénio de Andrade

Esta cidade está em alta, não há top que aguente.
Range à chegada dos turistas enlatados e chora à partida dos alfacinhas aos molhos.
Transforma-se...

Mas Lisboa não é o que é, é o que penso que é.
Amo-a sem sentido, como se ama num sonho.

Eugénio de Andrade também a amava...

Alguém diz com lentidão:
“Lisboa, sabes…”
Eu sei. É uma rapariga
descalça e leve,
um vento súbito e claro
nos cabelos,
algumas rugas finas
a espreitar-lhe os olhos,
a solidão aberta
nos lábios e nos dedos,
descendo degraus
e degraus
e degraus até ao rio.

Eu sei. E tu, sabias?

18 janeiro, 2019

Quanto barulho cabe no silêncio?


As palavras haviam de ser aladas e levantar voo quando fosse preciso. Ou então ficar quietas. Podiam ainda ser escritas numa letra miudinha que mal se conseguisse ler. Quem sabe até numa língua morta há muito esquecida.

Agora… remetê-las ao silêncio?!
Desprovê-las de barulho… de vida?!
Metralhar-lhes a essência?!

Isso é que não!!!

(... e arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso / De expressão de todas as minhas sensações...  Álvaro de Campos, Ode Triunfal)

16 janeiro, 2019

O Jardim dos Enamorados


Este texto encerra "O Jardim dos Suicidas", publicado a 19 de Dezembro do ano findo.

Com o jardim tudo se muda e continua Pastor de Macedo:

“(...) E o passeio de S. Pedro de Alcântara, como então se dizia, desembaraçado das sombras dos suicidas que por largo tempo sobre ele pairavam (...) passou a ser o Paraíso dos enamorados talvez por causa de um labirinto que ali existia e que teve de ser demolido justamente para evitar certas cenas que ali se davam e que o leitor facilmente adivinha.

E assim como o labirinto foi destruído em nome da moral alfacinha, também o zelo da autoridade, em nome dessa mesma moral que a muitos parecerá ridícula, pegou num guarda municipal (…) e colocou-o na parte inferior da escada de pedra que faz a comunicação entre os dois tabuleiros, para não deixar qualquer homem, fosse qual fosse, levantar os olhos quando alguma senhora descesse. (...)”

Desculpem-me o sorriso…

08 janeiro, 2019

Metamorfose


Depois de tanto tempo, não a reconheci. Tinha crescido . Havia como que um prolongamento artificial da pessoa que já tinha sido. Desde o discurso pejorativo, carregado de ironias e polissemias, até ao total despojo de sentimentos, tudo nela era mutação.

Não havia margem para dúvidas, tinha filtrado o coração. Deitara fora os pedaços de afeto, a saudade, o amor. Tudo aquilo lhe tinha parecido uma armadilha perigosa da qual tivera de se desfazer. Tudo se tinha tornado insuportável.

Exaustão ...Cansaço...Inquietação

A recusa obrigara a um disfarce, aos despojos e à opacidade.

A beleza natural dera lugar ao artifício, a fragilidade à frieza, a transparência à metamorfose de um corpo fechado.

Tinha-lhe passado a vontade de viver uma vida arrumada. Despira as certezas como quem despe um vestido num só movimento e o deixa cair no chão frio.

Era tão legítimo viver rodeada de bruma, num cenário de permanente mudez e quietude, quanto ansiar por uma euforia desmedida num ambiente bucólico.

Era só abrir a janela...

05 janeiro, 2019

Como se estraga uma bonita história de sexo!

Fomos acampar. Tipo amor e uma cabana, mas versão tenda.
Passávamos o tempo a descobrir pontos erógenos. Ainda não havia Google para dizer onde eram. Era giro, passava-se bem o tempo.
Os dela eram mais difíceis de encontrar. Eu esforçava-me, tocava aqui, esfregava ali, trincava acolá. Não deixava nada para trás. Ela deixou-me um mês depois por um marujo de barba rija.
Isto foi para meter o sexo na história, senão não vende. Naquela altura até se lia sobre um gajo que acordara gafanhoto. Agora é diferente, tem que ter sexo e sangue.
Adiante, vamos ao que interessa.
Havia um cesto de palhinha, para os necessaire. Papel higiénico, sabonete e shampoo. Preservativos. Mas é mesmo do papel que trata a história.
Passou-se uma manhã, deviam ser duas da tarde, ela foi lá fazer a higiene dela. Ouvi uma voz em crescendo: Arroz Doce, andaste a esfiar o papel higiénico, fogo!!! És tarado ou quê?
Meio a dormir pensei, esfiar o papel higiénico? Já tinha esfiado bacalhau e pato. Mas papel higiénico? O sexo em demasia dera-lhe cabo da mioleira.
Era verdade, o cesto estava cheio de papelitos. Mas que raio, caraças, que merda é esta? Debruçamo-nos e o papel fez rrrrrrrr!!!
Saltou de lá uma rata, tamanho 49, e nós fugimos e a rata atrás de nós e nós sempre a correr e a rata não nos largou e chegamos ao cais do Sado e a rata coladinha e fizemos aquele número de  saltar para o lado e a rata não travou a tempo e caiu na água e foi com a maré.
Voltámos mais tarde, armados com uma catana e um cacete. Descarregámos a fúria no cesto. Estraçalhámos o resto do papel higiénico. Fomos embora, pois eu não tenho cá vida para andar a ser comido por uma rata. Nem ela.
Arruinou-se ali uma bela história de sexo.

03 janeiro, 2019

O meu silêncio (2005)


Amo o meu silêncio. É aí que vivo, é aí que sobrevivo, que me faço, que progrido. Adoro que mo preencham quando sinto a necessidade. Odeio que mo tentem preencher, forçosamente, quando não a sinto.

Sou péssimo a preencher o silêncio dos outros, por isso ser observado com desconfiança. Neste mundo que privilegia a repetição de palavras de comunicação oca, o silêncio é sinal de maleita, é como estar amarelo de icterícia.

Odeio o artificialismo, odeio chats, onde a solidão que é o silêncio se vê distraída mas não preenchida. Odeio que o vento assobie na minha chaminé quando tento dormir.

Desespero quando o meu filho me chama a meio da noite, por um copo de água. Mas fico depois languidamente a observá-lo, meio a dormir, preenchendo com a sua imagem o meu silêncio, à luz de uma fraca luz de presença, a qual preenche o seu silêncio, ainda muito igual aos seus medos e incertezas.

No feminino amo o calor e o odor dela, os quais tornam o meu silêncio obsoleto, quando cruza as suas pernas nas minhas e levemente respira de satisfação como um gato muito festejado. Vivo para estes dois parágrafos, para o que se segue, e pouco mais.

Amo os livros. Creio ser este um amor desproporcionado, de parte a parte. São eles que fizeram da minha vida esta epopeia perdida pelos sofás. Mas são eles também que mais profundamente preenchem o meu silêncio e me fazem compreender, entender, reconhecer, amar e odiar a dimensão humana onde inevitavelmente me perco.

Amo os livros e o meu silêncio...

02 janeiro, 2019

You make me feel so young...

Coisa mais linda para o segundo dia do ano e além disso "you make me feel so spring as sprung" é um verso do caraças...