30 março, 2019

A dor de viver sem ser

Chegara alguns minutos antes da hora marcada. Tinha-lhe pedido que não se atrasasse, que chegava às oito em ponto. Entrou no café e varreu rapidamente o interior à espera de o encontrar ali sentado, mas o Rui ainda não tinha chegado. Sentou-se a uma mesa no fundo e pediu um café cheio dentro do qual despejou meio pacote de açúcar. Espreitou o telemóvel na esperança de algum sinal. Nada. Ainda estava escuro lá fora, mas obrigou-se a olhar pela janela para calar a impaciência. Pessoas apressadas para o trabalho, uma fila de carros. Mais nada.

Prometera que dali em diante tudo seria diferente, todos saberiam. E ali continuava com a vida na mochila à espera. Pediu um segundo café que bebeu agora amargo. O relógio do telefone marcava agora oito horas e cinquenta e dois minutos. Nenhum sinal de chamada ou de mensagem. Nada. Deixou uma moeda de dois euros em cima da mesa, levantou-se e, ao dirigir-se para a saída, deu um encontrão num homem alto engravatado. “Acorda! Que merda, logo de manhã a levar com gente desta!”. O corpo trémulo e os olhos marejados de lágrimas desceu as escadas do metro.

Ficou algum tempo na plataforma, imóvel. Deu um passo em frente e pisou a linha amarela. Minutos depois, lia-se no painel eletrónico “Por motivos alheios ao metropolitano, a circulação encontra-se interrompida. Lamentamos os incómodos causados.”
Chamava-se João…

28 março, 2019

Quem é o pai da criança


Estou aqui no trabalho a olhar pela janela. Vejo árvores e uns prédios amarelos lá ao fundo. No passeio uma multidão cruza-se, pessoas que passam para lá e outras que vêm para cá.

Ponho-me a pensar, se as que vêm para cá e as que vão para lá, adiantassem um passo, gerava-se aqui uma grande confusão. Isso sim, era uma coisa que merecia ser vista e ouvida, aqui da janela:

Desculpe..., Veja por onde anda..., Pisou-me o pé..., Deu-me uma cabeçada..., Quer sair de cima de mim..., Tome lá um murro..., Tome lá uma estalada..., Que raio de confusão é esta..., Será isto o fim do mundo..., Quer tirar os seus lábios dos meus?

E ao fim de nove meses: Boa tarde, desculpe , lembra-se do dia do "passo em frente", em que chocámos um com o outro?... Sim, lembro!... Pois, este bebé é seu.

25 março, 2019

Fábula do homem encantado


Para o homem encantado tudo é noite. A felicidade é como o âmbar que envolve o inseto, não o deixando mover nem sequer respirar, mas conservando-o no seu esplendor.

O sol, já sem luz, num capricho apaga-se. Na planície azul escapa-se o dia. Pequenas ondas de novelos alisam o cabelo, ventos do manto de nevoeiro branco, grosso e quente, que abafam o escuro. Procura o calor, que vem aos poucos e se perde em nada. O corpo treme e retoma o caminho sem sentido, sem fim sempre que começa, com o fim com que sempre acaba. Tudo o que é vivo é magia e toda a vida é ilusão.

Não pede, recebe o que há. Na gruta sem teto, onde se enleia no calor e nos medos, ela não vem e quando vem, está, perdeu-a na memória tanta vez. A neblina e a paisagem azul consomem-no, mas é tudo imaginação, não fosse mais disso o que fica, os abismos dos passos, as cores cinzentas das flores, os cheiros nos gostos e todas as lembranças que passam e nele ficam e não interessam.

Numa dessas noites sem sol, mas quente, chega. Não a acompanha bem, no fundo da sua gruta sem teto tudo é confuso, portas e caras que falam sem mexerem os lábios ou então, em silêncio, chamam alguém num manto branco que baralha os sentidos do homem encantado. O sentimento é ansiedade, um querer imediato, cortante, como aquele que deseja o calor e o vermelho do seu sangue, que escorre pintando desenhos coloridos por onde passa, espraiando-se naquilo que foi antes a vida e que hoje é desejo intenso, entre sofás brilhantes.

Ao olhar do homem encantado tudo é luz, encandeia. O manto dos seus cabelos envolve-o, a calda é doce, tão doce, embala-me no teu regaço, dá-me ternura e o desejo arde e entre a névoa o tempo torna-se real e curto, mas forte. Naquele momento está feliz, mas tudo é prazer e angústia e sem se aperceber anda à roda do sulco do mesmo caminho.

Ela desfaz-se no lado escuro da gruta e ele num poço, onde as luzes lentamente ofuscam e morrem e na mesa nada está, nada, nem a memória do seu peito que tão bem se encaixa. A confusão torna-se impotência e o desespero bate como o sino do campanário da planície azul e cerra os olhos no escuro do poço, pesados pela névoa dos sonhos de ópio. O mar continua salgado e escuro e entre almofadas nuas, lembra-se do que noutros dias esquece.

Para o homem encantado tudo é difuso e irreal. A felicidade é como o âmbar que envolve o inseto, não o deixando mover nem sequer respirar, mas conservando-o no seu esplendor.


23 março, 2019

Os dois marmelos

Fui ao PD fazer a minha compra semanal de tequila e torresmos. 
Tinham marmelos, trouxe dois, acompanham bem com tudo.
A miúda da caixa olha para aquilo, depois olha para a caixa e por fim olha para mim e muito baixinho pergunta - isto é fruta? e eu com uma cara de surpreendido - sim, são marmelos... não conhece marmelos? e ela com uma cara enfiadita - não... e eu com uma cara muito séria - mas marmelada conhece? e ela a olhar sem saber se eu estava a gozar ou não - sim... e eu com a mesma cara séria - é daqui que sai a marmelada. 
Paguei a conta e acho que a deixei mais baralhada.

20 março, 2019

Terror medieval

No ano de 1551, Cristóvão Rodrigues de Oliveira, guarda-roupa de Dom Fernando, arcebispo de Lisboa, escreveu para o seu amo um Sumário da cidade, onde apontava ofícios da época, entre outras curiosidades. Aqui ficam alguns, em jeito de história: 
“O atafoneiro, que berrava desesperado com dores, gritou pelo seu mariolaa quem dava pão escuro, muito trabalho e uma zurzidela diária, além de o mandar de três em três anos ao calceteiro. O mariola saiu esbaforido da atafona à procura do saca-molas, que andava desaparecido fazia três dias.
Desceu o caminho e já na planura o vento trouxe-lhe o fedor dos tanques dos surradores. Benzeu-se três vezes e deu Graças pela sua vida fácil de mariola. Já perto da capela da Nossa Senhora da Luz, o cheiro o sebo cozido das velas enchia o ar junto ao beco dos cereeiros, e mais adiante, o pó da farinha crua parecia pairar sobre as hóstias ainda por abençoar. A mulher do obrieiro perguntou-lhe ao que vinha. Torceu o nariz quando ouviu falar do saca-molas. Não é homem de Deus, resmungou. Encostada à empena da capela uma merceeira benzia-se e entoava uma ladainha. 
Finalmente encontrou o saca-molas, bêbado de três dias, tombado num poial, e arrastou-o até à atafona. O mariola e mais dois agarraram rijamente o atafoneiro enquanto o saca-molas, em equilíbrio precário, com uns ganchos enferrujados que trazia sempre pendurados ao pescoço, lhe desbastava as gengivas e sacava cá para fora o último dos molares. Pois é, o saca-molas era dentista e naquele tempo não havia anestesias. 


17 março, 2019

O Café na vida e na fé


É Domingo de manhã e como não me lembro de nada especial para pensar, divago. Vem-me à memória uma cena de uns desses desenhos animados que por aí andam, tipo Simpsons, mas mais estúpidos:

O pai anda desesperado pela cozinha, abre caixas e desvia garrafas, bate com as portas dos armários, vê no frigorífico e na máquina de lavar, debaixo da mesa e por aí adiante, e com os cabelos em pé, liberta um grito de terror - acabou-se o café, acabou-se o café!!!

O filho está ali ao lado e pergunta - ó pai porquê esse stress com o café? ao que o pai responde - CALA-TE, tu tens a juventude!!!

Adoro café.

Para este texto não ficar muito curto, porque recebo à palavra, fica aqui a história (ficção ou realidade, não sei) de como o café por cá ficou:

A corte papal estava reunida com aquela imponência que se adivinha, e entra um descobridor, espanhol ou português não interessa para esta história, e cheio de vénias verbais, oferece, como se fosse um tesouro, uns grãos negros ao Papa.

Logo ali se prepara uma beberagem fumegante e aromática, embora negra como carvão. A corte papal insurge-se e reclama que uma bebida daquela cor só pode ser obra do mafarrico.

O Papa pensa, pensa, pensa e prova, era um papa destemido como o que temos hoje, e diz - uma bebida destas só pode ser criação dos Céus...

Abençoado Papa.

15 março, 2019

Bolas de sabão


Na sua leveza parecem carregar o mundo inteiro.
Delicadas, levam dentro delas arcos-íris efémeros que, no azul do céu, desaparecem numa explosão silenciosa.
Exalam serenidade e canções de embalar.
Evocam o regresso aos bancos da escola, as tardes mornas de primavera, as brincadeiras sem limites.
São o resgate dos joelhos esfolados, dos berlindes e do jogo da macaca.
Cheiram a maresia, a relva acabada de cortar e a bolacha maria com manteiga.
Trazem-me de volta a bicicleta ferrugenta, os carrinhos de rolamentos, as corridas de pé descalço.
Ainda hoje, sem ninguém à espreita, me sento no baloiço a soprá-las com a mesma tranquilidade. Fico depois a olhá-las subir devagarinho empurradas pelo vento.
Ingénuas…

07 março, 2019

O importante é a MÚSICA, pá


Olhava-os em vídeos datados e filmes estranhos, onde via uns meninos, de corte à tigela, que cantavam encurralados por multidões femininas num êxtase de gritos desalmados e desmaios compulsivos.

Além disso, já tinham acabado e ainda vendiam milhões, pelo que nunca poderiam ser um segredo indie só meu e de alguns eleitos. Ignorei-os muito tempo. Desdenhei-os.

Estúpido.


05 março, 2019

Ouça lá, você leva aí droga?


Tive mil empregos, só queria curtir. Uma altura conduzia uma carrinha, fazia recados para o aeroporto, e um dia calhou-me ir levar uma mala extraviada a uma terriola algures no Portugal profundo.
Estava sempre a acontecer, todos os dias chegava um cabaz de malas portugas, que tinham que ser entregues aos donos, que já só se lembravam da viagem porque a mala tinha sido extraviada. Isto foi há trinta anos, imagino agora.
Bem, vamos ao que interessa. A mala era tipo rija e estava cintada com aquela fita branca lixada de cortar e uma presilha do aeroporto. Se tinham gamado alguma coisa fora antes.
Ia eu muito bem, algures num caminho no meio do deserto rural, quando a seguir a uma curva e atrás de uma moita, deparo-me com todo o exército do mundo. Ele era polícia de intervenção ou o raio, fardas, capacetes, metralhadores, pistolas, carrinhas de assalto, sei lá, parecia que vinha ali a invasão marroquina. Isto no meio de um deserto, atrás de uma moita.
Eram uns vinte e fizeram-me sinal para parar e sair, o que fiz. Fora educado a ter respeitinho à polícia e também tinha dez metralhadores a fazer mira. Só me aguentei porque não tinha fralda.
Olhavam para mim e eu para o horizonte, quando, lá do meio dos furgões anti-motim, saiu um sujeito baixote à paisana, todo suado e a precisar de ginásio e tónico capilar. Aproximou-se  e com autoridade disse para eu abrir a mala do carro. As metralhadoras acompanharam a voz e chegaram-se à minha cabeça, se me baixasse matavam-se uns aos outros. Abri o porta bagagens e o que lá estava? a raio da mala do aeroporto.
O gajo olhou para mim e o esquadrão sanguinolento tirou a patilha de segurança das armas, preparando-se para uma baixa casual. Levou a mão ao queixo e meditou uma eternidade, até que de repente me perguntou:
Ouça lá, você leva aí droga?
Naquele momento senti-me aniquilado, como se toda a idiotice do mundo me tivesse esmagado de repente. O quê, isso pergunta-se? Respondi a verdade, quando não sabes o que dizer, responde a verdade, senão inventa, uma invenção é mais imaginação que mentira.
Não sei, vou só entregar esta mala do aeroporto, não faço a mínima ideia.
O homem com o fato barato e a suar em bica olhou duas vezes para a mala e duas vezes para mim e disse:
Siga.
Ainda hoje não sei o que se passava ali atrás daquela moita, mas andei uma semana a meditar no surrealismo...

02 março, 2019

O Ingês, apaixonado pelas nossas mulheres e varapauzado pelos nossos homens


Nos idos de 1780, viajava por cá um tal Richard Croker, capitão de infantaria inglês, que, en passant, escreveu umas coisas sobre as nossas mulheres e homens.

No primeiro texto, é notório que o capitão se apaixonara por uma bela portuguesa, porventura de olhos negros, algures pelas estradas de Sintra. No segundo é evidente que, depois de brincar com o fogo, terá pago a honra a alguém, varapauzado e cheio de negras, como tantas vezes Sancho Pança o foi por simples má sorte e destino.

Das mulheres, perdido de amores (assumpção minha)::

“Era impossível não reparar, nas cidades em que passámos ultimamente, na diferença entre as mulheres de Portugal e as de Espanha.
As mulheres portuguesas são agradáveis, elegantes no vestir, com lindos olhos e dentes e belo cabelo muito abundante: nos seus penteados misturam fitas e flores com muito bom gosto e isto mesmo mulheres de classes baixas, pois não nos foi dado ver outras.
Em resumo, tem que se admitir que há mulheres mais bonitas e melhores mulas (sic) em Portugal que na Andaluzia.”
Já em Lisboa: “Um espectáculo que quase me esquecia de mencionar: refiro-me às senhoras portuguesas às janelas. (...) Como não se vêem mulheres nenhumas na rua, senão as de baixa condição, elas devem com certeza estar fechadas em casa e dizem que os maridos portugueses são extremamente ciumentos.”

Dos homens, depois de um encosto mais viril (assumpção minha):

“Os homens portugueses são, sem dúvida, a raça mais feia da Europa. Bem podem eles considerar a denominação de ombre blanco como uma distinção. Os portugueses descendem de uma mistura de Judeus, Mouros, Negros e Franceses, pela sua aparência e qualidade perecem ter reservado para si as piores partes de cada um destes povos.
Tal como os Judeus, são mesquinhos, enganadores e avarentos. Dos Mouros são ciumentos, cruéis e vingativos. Tal como os povos de cor são servis, pouco dóceis e falsos e parecem-se com os Franceses na vaidade, artifício e gabarolice. (…)
Os homens são notoriamente ciumentos e, se pode haver uma desculpa para esta paixão, deve ser que onde as mulheres são dignas de ser amadas e os homens tão opostos, surgem crimes privados e assassínios.”

Ora, a pena do capitão tingiu-se na soberba com que os membros do Império de Sua Majestade encaravam os outros homens. Também eu, só por isso, lhe teria dado uma bengalada .

Quanto às nossas mulheres, Lisboa presta-lhes homenagem nas curvas luminosas das suas colinas, pelas quais deixamos deslizar o olhar como um toque, um cheiro, um desvario.