05 março, 2019

Ouça lá, você leva aí droga?


Tive mil empregos, só queria curtir. Uma altura conduzia uma carrinha, fazia recados para o aeroporto, e um dia calhou-me ir levar uma mala extraviada a uma terriola algures no Portugal profundo.
Estava sempre a acontecer, todos os dias chegava um cabaz de malas portugas, que tinham que ser entregues aos donos, que já só se lembravam da viagem porque a mala tinha sido extraviada. Isto foi há trinta anos, imagino agora.
Bem, vamos ao que interessa. A mala era tipo rija e estava cintada com aquela fita branca lixada de cortar e uma presilha do aeroporto. Se tinham gamado alguma coisa fora antes.
Ia eu muito bem, algures num caminho no meio do deserto rural, quando a seguir a uma curva e atrás de uma moita, deparo-me com todo o exército do mundo. Ele era polícia de intervenção ou o raio, fardas, capacetes, metralhadores, pistolas, carrinhas de assalto, sei lá, parecia que vinha ali a invasão marroquina. Isto no meio de um deserto, atrás de uma moita.
Eram uns vinte e fizeram-me sinal para parar e sair, o que fiz. Fora educado a ter respeitinho à polícia e também tinha dez metralhadores a fazer mira. Só me aguentei porque não tinha fralda.
Olhavam para mim e eu para o horizonte, quando, lá do meio dos furgões anti-motim, saiu um sujeito baixote à paisana, todo suado e a precisar de ginásio e tónico capilar. Aproximou-se  e com autoridade disse para eu abrir a mala do carro. As metralhadoras acompanharam a voz e chegaram-se à minha cabeça, se me baixasse matavam-se uns aos outros. Abri o porta bagagens e o que lá estava? a raio da mala do aeroporto.
O gajo olhou para mim e o esquadrão sanguinolento tirou a patilha de segurança das armas, preparando-se para uma baixa casual. Levou a mão ao queixo e meditou uma eternidade, até que de repente me perguntou:
Ouça lá, você leva aí droga?
Naquele momento senti-me aniquilado, como se toda a idiotice do mundo me tivesse esmagado de repente. O quê, isso pergunta-se? Respondi a verdade, quando não sabes o que dizer, responde a verdade, senão inventa, uma invenção é mais imaginação que mentira.
Não sei, vou só entregar esta mala do aeroporto, não faço a mínima ideia.
O homem com o fato barato e a suar em bica olhou duas vezes para a mala e duas vezes para mim e disse:
Siga.
Ainda hoje não sei o que se passava ali atrás daquela moita, mas andei uma semana a meditar no surrealismo...

Sem comentários:

Enviar um comentário