31 outubro, 2018

Bate chuva

Pelas frestas a aragem era fria. Trabalhávamos em silêncio, encafuados nos papéis, com o aquecedor ligado para consolar os ossos e já a pensar no almoço.

Lá fora, uma chuvinha miudinha puxava o lustro às plantas e pequenas gotas escorriam pelas folhas, molhando a terra.

De repente, a chuva cresceu, e já não era chuva, era cascalho que caía do céu, grossas pedras de granizo como nunca se vira. Afogava as plantas, pisava-as e o barulho ensurdecia. Corremos às janelas, as bocas abertas de espanto e medo. Seria o Dilúvio, o final dos tempos?

Um estrondo enorme sobrepôs-se ao bombear do granizo. Assustados, olhamos-nos e a Fátinha deu um ai Jesus. Corri ao corredor e vi cabeças assustadas a assomarem. A saraivada continuava, apavorava.

Caiu o telhado, pensámos todos e subimos a escada quatro a quatro. A porta do sótão estava trancada e a barulheira era infernal. Chegou a chave e entrámos, a Lena à frente, como sempre, e o Mendes atrás, ofegante e apavorado.

Nada, aparte a chuva que baixava o tom, as telhas velhas estavam intactas. Foram espíritos, gemeu alguém.

Então, uma vozinha soou do baixo das escadas, era o Nando, venham ajudar-me, a estante das enciclopédias caiu e por pouco não me matava.

Coitado. Apetecia-me esganá-lo. 

28 outubro, 2018

eu sou teu, eu sou tua (ou o feitiço de atrasar a hora)



Se o tempo andasse para trás porque não o atrasávamos só uma hora, mas duas, todas as horas e todos os dias.

Se por isso nos amássemos sempre mais, antes de fazer juras de amor eterno, eu sou teu, eu sou tua, porque a rotina nunca se instalara nem chegara a haver rotina e antes ainda fizéssemos amor por todos os cantos da casa.


Se nos escolhêssemos, eu sou teu, eu sou tua, antes de fazer amor por todos os sítios e também à chuva e fosse sempre diferente porque éramos sempre mais jovens e queríamos sempre descobrir e sentir mais.


Se fizéssemos brindes até cair de lado, sem pensar no futuro, sem preocupações ou responsabilidades, não sou mais nada que tua, não sou mais nada que teu, antes de aprender como era viver ao contrário, numa escola onde entrávamos a saber tudo e saíamos sem saber nada.


Se doesse nos amores perdidos e ardesse nos amores de perdição, antes de nos amarmos em todos os cantos e sítios do mundo, enquanto se pensava que não estávamos lá, mas estávamos abraçados na areia da praia, eu sou teu, eu sou tua.


Se ouvíssemos música como se não houvesse vizinhos, antes das borbulhas e das urgências de descobrir os corpos e beijarmos-nos e tocarmos-nos pelos cantos e era tudo novo e ninguém era de ninguém.

Se jogássemos ao bate pé, antes de trocarmos papelinhos na aula a dizer eu sou teu, eu sou tua, vamos dormir os dois, sem saber o que isso era.

Se levássemos uma palmada para existir, antes de nascermos da barriga da mãe. 


Se tudo parasse, antes de esticarmos as pernas e duas vozes se rissem muito, eu sou teu, eu sou tua e ele é nosso.


Se houvesse uma explosão de mil cores, antes de um espermatozóide ter fecundado um óvulo.

Se depois fosse o nada, ou talvez outra vida num mundo em que não se soubesse disto e só se andasse para a frente e se morresse!


26 outubro, 2018

Era Arte...



Não era bela, era Arte e a Arte não é beleza, é sentimento

                                                                                                                                                

23 outubro, 2018

Alice e o Coelho (capítulo final)


Alice comprou o revólver na loja do cavalheiro de cartola, que vendia chapéus de coco. Na montra ao lado estavam as botas que vira no catálogo do Ikea e levou-as. Uma arma precisa de umas botas a acompanhar, pensou Alice, espero que não sejam difíceis de montar.

Na pistola ouvia-se o zum zum das moscas. Alice atirou ao sino, que fez plin e a mosca voltou atabalhoada, à espera de um torrão de açúcar.

À noite, Alice esperou o Coelho atrás de um sinal de Stop, que ninguém respeitava. Aquele Coelho era o Inferno, perseguia Alice a gritar ai, ai, estás atrasada, ai ai estás atrasada. Era enfastiante, Alice não aguentava mais o ai, ai, porque até gostava de chegar atrasada.

Passou um carro, que fez Alice pensar em malvas, que até era uma cor bonita. Não parou no Stop. Depois um camião com três piscinas vazias, ocupadas por três sapos sapientes. Atrás estendia-se uma mangueira empinada. Alice achou piada e pensou no circo.

Dois pirilampos aproximaram-se e ela escondeu-se do outro lado do sinal, mas era o Gato que ri, que riu e lhe piscou um pirilampo. Sai daqui Gato, disse Alice, e o Gato fechou o sorriso e saiu.

Ao longe ouviam-se uns passos de elefante. A terra tremia, mas os passos iam ficando mais miudinhos à medida que se aproximavam. Alice ouviu o ai ai estás atrasada, ai ai estás atrasada, e dali mesmo disparou seis vespas. As vespas eram mais certeiras que as moscas e além disso tinham ferrão.

Acertou no valete de copas que a Rainha, por mau feitio, colocara junto ao coração do Coelho, que caiu redondo no chão. Alice aproximou-se, com as botas a brilhar das purpurinas. Gostava de filmes e imaginou-se no desenho da ilustração. Estou livre, pensou.

Do outro lado da rua a montanha russa cintilava e rugia. Os carrinhos de choque seguiam o bando de flamingos amarelos que iam para o Pacífico Sul.

O Sol tocou Alice, quente, com força. O Sol? Sentou-se, esticou os braços e bocejou um grande bocejo. Viu a almofada no chão e o desenho do coelho a rir, no meio das molas e das rodas do despertador, que gemiam baixinho um ai ai, ai ai, ai ai, ai ai.

Alice chegou tarde ao emprego. Fazia a voz da Alice no filme da Alice. O Sr. Purcel, que era o patrão e por isso fazia a voz do Johny Deep, amava Alice mas era odiado por todos. Com voz melosa disse-lhe, a menina Alice está atrasada, não me vai dizer outra vez que a culpa foi do Coelho.

Alice tirou a folga ao gatilho.

21 outubro, 2018

E quis eu ter outros olhos...



Ás vezes, quando te olho mais nos olhos, quase que sinto que me convenço que temos os olhos da mesma cor.

Aos teus olhos vejo-os com aquele verde que não é bem verde porque são castanhos, e logo os vejo, aos teus olhos, com aquele castanho que não é bem castanho porque são verdes.

E gosto deles assim, porque é também assim que vejo os meus olhos, quando distraído, ou com mais atenção, os olho no espelho onde olho os meus olhos.

E passam nuvens e o tempo vai, e corre o mar por baixo do céu, e passa o céu por cima da terra, e os outros, entontecidos, não sabem a cor dos nossos olhos.

Que olhos estranhos, um quer ser dois mas é só um, e o outro, que é só um, também quer ser dois.

Mas quando olho os teus olhos, quase que sinto que me convenço que temos os olhos da mesma cor, e pergunto... serão os teus olhos mesmo os teus, e os meus olhos mesmo os meus, ou serão os teus olhos apenas o reflexo dos meus, e os meus olhos apenas o reflexo dos teus?

07 outubro, 2018

A Deusa e o Guerreiro


Uma das mais belas lendas sobre a origem mítica da nossa cidade, respeita à origem das suas colinas, perdidas hoje entre o casario. A lenda dá-nos conta da paixão entre Ofiússa, a deusa serpente, e Ulisses, o grande herói grego intimamente ligado ao mito criador de Lisboa, em tempos Ulysipona.

Cedo a palavra ao professor Vitor Manuel Adrião, que no seu livro Lisboa Secreta nos descreve uma história de amor, raiva e ciúme: “Narram as lendas que Lisboa foi fundada por Ulisses, chefe dos Argonautas, que aqui se tomou de amores por Ofiússa, a deusa-Tejo, e que quando o Herói homérico regressou à sua pátria troiana no navio Argos, Ofiússa, vendo-se abandonada e só, se tomou de cólera e fez estremecer o planalto do Tejo, nascendo assim, por efeito dos telúricos estertores, as sete colinas de Olissipo, hoje Lisboa.”


É magnífico pensar que as nossas colinas terão tido origem no bater do coração de uma deusa apaixonada, a qual por despeito fez tremer a terra como prova do seu amor.


E porque não imaginar também, que a deusa serpente Ofiússa, que todos os dias renasce nas ondas atlânticas que agitam o Tejo que nos banha, não recordou séculos mais tarde o dia em que o bravo rei de Ítaca desprezou o seu seio, e agitando de novo o dorso com amor e com raiva, serpenteando por baixo das colinas lisboetas, castigou de novo a cidade no ano da nossa desgraça de 1755?

Ofiússa representa os Oestrymia, povo lendário que terá vivido na bacia do Tejo e que prestava culto à grande serpente.

A maquete é a do Museu da Cidade "Lisboa antes do terramoto"

06 outubro, 2018

Sobre o título

(latim ego, eu)o ser enquanto entidade consciente.
Eu sou e como entidade consciente o mundo gira à minha volta, tal como o dos outros à sua. É desnecessário o contraditório, mas se alguém se dispuser a fazê-lo remeto para a definição do dicionário, que vale o que vale, mas neste texto vale um subtítulo.
Este blogue é um espaço giratório e o que por aqui passar será condicionado pelo espaço e pelo tempo consoante a orientação do meu ego perante o mundo!


publicação periódica, geralmente ilustrada, que trata dos mais variados assuntos.
Tendo em conta o contexto,encaixa!