29 janeiro, 2020

O desespero de Adão e Eva

A casa era frígida, vitoriana, oca. Ensombrava em redor. Fomos ocupar a cave. Ao rodar da empena esquerda, no meio do tijolo escurecido das paredes esperavam-nos meia dúzia de degraus musgosos, quebrados pelos séculos já passados. Descemos com o homem das chaves.

Nesse dia que hoje estranho, em que se caminhava a passos largos para o cinzento sem fim e a chuva irritante, um esporão de sol flutuava e enchia-nos os corações de esperança. As folhas acumulavam-se ao fundo das escadas e depois de encontrar a chave no molho, a porta aberta trouxe um cheiro a bafio. Um curto corredor, uma sala larga que servia também de quarto, janelas altas ao nível do chão, pequenas cozinha e casa de banho. O preço era bom e embora desviados do centro, era lá para Finchley, aceitámos. 

Fizemos a mudança na carrinha do nosso amigo Terry. Sentiu o vento para se orientar, olhou para a parede da casa e para as janelas rentes à terra, enterrou mais o gorro e encolheu os ombros e disse baixo "vão passar muito frio". 

Os dias iam encurtando e chegávamos já de noite. O bus parava ao fundo da estrada. Era larga e inclinada. Subíamos entre árvores decadentes e torcidas, que de dia ensombravam os passeios e à noite confundiam os reflexos dos candeeiros em sombras ancestrais acorrentadas ao chão. Sebes e muros tapavam outras vistas, outras casas, outras vidas.

No topo da subida a casa enfrentava-nos, negra a suar mistério e corações partidos. Temia olhá-la e no entanto vivia nas suas entranhas. 

Na cave a humidade escorria nas paredes e tínhamos uma fenda na cozinha de onde saiam cogumelos já secos. À noite o pequeno aquecedor projetava um vermelho que não aquecia, mas que oscilava no estuque e pintava retratos nos recantos do teto. Entorpecidos pelo frio, fechávamos os olhos e aquecíamos um no outro, pele com pele arrepiada pelo frio dos lençóis. Esperávamos o amanhecer que só chegava quando já descíamos a estrada larga por entre as sombras matinais do arvoredo. Nem tudo era mau, mas pouco havia de bom neste covil no fim do mundo. E então aconteceu.

Subia pelo passeio. A luz escasseava, era uma noite escura. Ao longe, com um feixe de lua por cima, a casa chamava-me os passos. Olhei-a e senti um calafrio e algo me impeliu a apressar. A luz da cave estava acesa e a porta aberta, ela devia ter acabado de entrar. Desci as escadas e chamei-a, mas não respondeu. Voltei a chamar, mas apesar de todas as luzes acesas e do ruminar estático da televisão, o silêncio era gelado. Na cozinha uma panela de legumes era a esperança de uma sopa quente. Revirei a casa, ela por vezes desmaiava, tinha a tensão baixa, mas não estava.

Num segundo caiu-me um desespero e assombrou-me a vontade que tinha de a ter comigo, era a razão de vida, a proteção dos meus caminhos. Amava-a. No segundo seguinte caí na realidade, estávamos algures numa cave gelada de uma casa grotesca que oprimia e atraia medos, numa cidade de lendas e histórias de entranhas sanguinolentas. 

Subi as escadas e chamei o seu nome, contornei a casa e agora gritava. Solitário pela estrada abaixo, bradava e a cada resposta vazia, mais um ninho de lágrimas me secava. Somos unos, onde andas, onde estás? Entrei em veredas entre sebes e muros e as copas das árvores pareciam mais baixas. A minha voz enrouquecia e do meio das veredas era contínua a mancha de corvo da casa ao cimo da colina. 

Frenético ouvi o meu nome. Ela caiu-me nos braços. O seu pranto era dolorido, o seu amor rezava e o seu sofrimento abafava. Abraçámo-nos com força e ternura, a afogar as lágrimas no ombro do outro. 

Nunca percebemos o que acontecera. Ela sentira uma agonia e desesperada abandonara a casa. Procurara por mim. Passámos essa noite em branco. Ao amanhecer chamámos o homem das chaves e saímos no mesmo dia. 

Irritado ainda nos disse que não alugara a cave a um médico egípcio por nossa causa, que só o fizéramos perder tempo.

Ó homem, sinceramente, boa sorte e vá-se f*der.

27 janeiro, 2020

Farrapos de vida

(Nem nos sonhos perdidos,
Ou nas páginas amarelecidas dos romances esquecidos.)

Sumiram-se o sorriso, o querer, o sonhar
Perderam-se no nevoeiro de um abraço

Levou-os nas asas uma ave do mar
Dos versos, nem um traço.

Fica um vulto sozinho
A vida num turbilhão.

A visão turva do carinho.
As folhas de outono no chão.

De nada vale remendar à pressa
os pedaços de afeto,

É tarde, já não é hora
Perderam-se pelo caminho.

26 janeiro, 2020

Ando com um anjo às costas (para Terry Jones)

Ando com um anjo às costas. Levei tempo a perceber porquê, na verdade foi uma odisseia, mas as coisas quer nos façam sentido quer não, têm sempre uma razão. Começou assim:

A primeira vez que me dei conta foi num dia normal. Uns rapazitos riam-se atrás de mim e percebi que o tema da risota era eu. Virei-me. Um disse "até tem cara de tótó." Caraças, o raio do puto! Corri e apanhei-o pelo cocuruto enquanto os outros debandavam. "Deixe-me ir.", "O que se passa pá?", "Você anda com uma mochila de anjinho, se fosse lá na escola andava sempre a levar calduços.", "O que é que estás para aí a dizer?" Estiquei o braço para trás e senti uma cabeleira. Assustei-me. "Tira uma foto, rápido." O miúdo pegou-me no telemóvel e tirou a foto e fugiu a gritar "é verdadeiro e fui eu que gamei a bicicleta do Migas!".

Fiquei nem sei bem... Lá estava na foto, costas com costas, um anjinho de asinhas e bracinhos abertos, com um cabelinho aos caracolinhos, umas vestezinhas muito branquinhas e um sorrisinho divinalzinho, além das bochechinhas rechonchudinhas. Tinha uma harpazinha a tiracolo. De onde viera? Andaria a chover anjos? Não se via mais nenhum por ali.

Entrei numa pastelaria para um café e pastel de nata. Recostei-me na cadeira e ouvi um guincho. Cheguei-me à frente para não calcar o anjo. O empregado disse "devia tomar banho. O que deseja senhor?" E eu "hã?" E ele "o que deseja senhor?" Não valia a pena estar com coisas e pedi "um café e nata sffv. Quanto é?", "0,60€ e não o vou registar na caixa porque sempre que posso roubo nos impostos.".

Olhei-o estranhamente e saí. "Tem um anjo às costas, é bonito mas já não é Natal." Outro idiota. Fui para casa e tentei perceber o que se passava, mas nada fazia sentido. Perguntei "ó anjo, o que fazes aí atrás?" Não obtive resposta ou então obtive mas não estava sintonizado. Estava cansado. Deitei-me de lado para não esmagar o anjo e de vez em quando acordava com um zunido, era ele a avisar que o estava a moer. Levantei-me e gritei para as costas "diz-me o que queres!" Néstes. Mal sabia o que ainda me esperava. 

Fui trabalhar. O patrão disse "está com uma cara de merda. O cliente está a chegar, apagou os quilómetros ao carro?", "Ainda não", "Então despache-se." Passados trinta segundos chamou-me "ó Miranda que se passa, acordou mal da cabeça? Você tem uma coisa nas costas.", "Sim é um anjo.", "Um anjo? Você está-me a gozar?", "Não apareceu-me ontem.", "Chegue cá. Pois é um anjo com penas e tudo." Ouvi um grrrr. "Olha e não tem sexo, é mesmo um anjo." O gajo levantara-lhe as vestes. "Vá para casa e trate-se homem, não o quero assim a atender clientes, bem sei que já o podia ter aumentado mas sou viciado no jogo." 

Rilhei os dentes e saí. Bem, fui ao médico de família. "O que o trás por cá, seu enfezado, a micose do costume?" Comecei a não dar ouvidos aos insultos, para quê? "Não doutor, tenho aqui uma coisa nas costas.", "Vire-se sffv! O senhor tem um anjo nas costas.", "Sim eu sei.", "E em que posso ajudá-lo?" Fiquei a olhar para ele. "Não pode fazer nada?", "Sobre o quê?", "Sobre o anjo.", "É bonito, incomoda-o?", "Nem por isso, só tenho que ter atenção quando me encosto ou durmo.", "Então e da micose, anda bem?", "Bem, mas não vai fazer nada sobre o anjo?", "Tenho que consultar os manuais, mas tome um benuron de manhã e outro à noite, que se não fizer bem também não faz mal. Parabéns, é a primeira pessoa que vejo com um anjo às costas e olhe, gosto de tocar às campainhas e fugir."

Pensei que devia estar a sonhar, mas não, na rua estava fresco. Abanei-me mas o anjo não caiu e começou a cantarolar uma música dos anos 20. As pessoas passavam por mim e ouviam a cantarolice. Ouvi umas senhoras dizer "olha deve ser ventríloquo", "mas isso já nem se usa", " usa, usa, que estive no outro dia com um que me gemia numa orelha e eu ouvia na outra." Depois viam o anjo e pensavam que eu era pedófilo ou do circo. Outras pensavam que era blasfémia.

Chamaram um polícia que ia a passar e que perguntou "que anda você a fazer com uma criança pendurada as costas?" Eu estava já meio passado. "É um anjo e não me larga.", "Isso é o que vamos a ver" disse a autoridade. Puxou-o pelas asas, mas o anjo não desgrudava. Pôs a patorra no meu rabo a fazer de alavanca e com as mãos puxou o anjo pelo pescoço. Baralhou-me a coluna, mas nada. O anjo ria-se. "Ele não o larga. Hoje mandei parar um carro porque me apeteceu e fiquei com o dinheiro da multa." Foi-se e eu abestalhado sem acreditar que aquilo se estava a passar. 

Entrei num restaurante, estava com fome. O dono ao balcão disse "você tem uma penca do caraças" e começou a chorar quando viu o anjo "eu sou um pecador, roubei uma borracha quando era pequeno e infernizo a vida aos meus empregados." O empregado disse "eu como bifes às escondidas" e agarrou-se ao patrão e ainda outro disse "eu cuspo-lhe na sopa e engano a minha mulher." Era só baba e ranho. Saí a correr e com mais fome.

Voltei a esquina e vi um letreiro, Dr. Armando Pinho, psicólogo. Pensei que devia estar maluco por isso entrei. A recepcionista disse "o Dr. não está a fazer nada é como você, passa o dia a ver porno, mas vou ver se o atende." Passados dez segundos voltou "Pode entrar! Aí que anjo bonito que tem nas costas. É de peluche? Sabe, roubo comprimidos ao doutor para o meu filho que é tóxico independente." Entrei na sala e o psicólogo mandou-me sentar. Era selecto, sofás de cabedal, uma estante cheia de livros que dava a volta à sala e uma mesa de mogno. Fumava cachimbo. "O que o trás por cá, pila de amendoim?" Pensei, insulto bem adequado de um psicólogo. "Tenho um anjo nas costas." Olhou-me e perguntou "e o que sente relativamente a isso?", "Sinto que não é normal.", "Porque sente que não é normal?", "Porque tenho um anjo agarrado às costas." Levantou-se e andou pela sala meditativo. "Parece grave, a sua mãe não o amamentou em bebé pois não, o que sente sobre isso?" O anjo fazia-me cócegas. "O que tem uma coisa a ver com a outra?", "E o que acha sobre isso?", "Não acho nada, é uma parvoíce.", "Já pensou que era altura de o aceitar?", "O anjo?", "Não, a sua mãe!" Saí dali de gatas e ele gritou "sabe, os sofás são de napa e os livros são só lombadas de cartão e também não gosto de caracóis, como mas é um frete." Eu estava a ficar aluado. Paguei e a senhora disse "também tenho um em casa.", "Um quê?", "Um anjo pendurado no meio das relíquias." Os meus olhos estavam raiados e ela ficou receosa "não é a mesma coisa, sei bem. Às vezes minto, aprendi com o doutor."

Desci as escadas e resolvi ir a algum sítio pensar. Apanhei um táxi. "Esse cabelo deve estar cheio de piolhos! Para onde vamos? Para onde vamos? Olhe que não pode fumar e ponha o cinto. Não pago multas nenhumas.", "Leve-me ao Príncipe Real." Não podia encostar-me por causa do anjo e o taxista olhava-me com desconfiança. Saí e ele disse "costumo roubar aos estrangeiros e às vezes aos portugueses, é só merdas de viagens" e quando segui gritou "tem um anjo nas costas". Virei-me e benzia-se.

Isto deu-me uma ideia que devia ter sido a primeira de todas o que só demonstrava que a padeira tinha razão quando disse que eu era um idiota antes de me vender três carcaças e confessar que às vezes misturava as farinhas do pão novo e do antigo e de começar a fungar quando viu o anjo nas minhas costas. Em casa pus manteiga no pão, bebi um copo de leite e tomei um benuron, mal não fazia. 

Saí. No elevador entrou uma vizinha. "Nunca lhe disse mas você com essa barriga parece um bidon, bom dia vizinho.", "Bom dia vizinha.", "O que tem nas costas?" O anjo estava calcado na parede, tinha-me esquecido dele. Mostrei-lhe. "Mas você tem um anjo às costas!", "Pois é.", "Onde o arranjou?", "Acho que me escolheu." E veio a conversa do costume "vamos lá acima que não está ninguém em casa, só a senhora dos rissóis, mas é surda e eu vou fazendo os meus engates, espero que não seja pecado." Interessante, foi a primeira vez que ouvi a palavra, pecado.

Mas calhava bem porque decidira ir à igreja falar com o padre, que devia ter sido a primeira coisa a fazer. Entretanto, os comentários na rua sucediam-se "olha tem um anjo às costas, é ladrão, deve-o ter roubado nalgum poial" etc.. E o anjo que não dizia nada para me ajudar. Mais à frente uma voz berrava "arrependam-se pecadores, o dia do Juízo Final está perto!" e alguém perguntou "está a falar do quê?" e o outro mais calmo "do fim do mundo, vem aí o fim do mundo", "OK, e ainda dá tempo para ir beber um café?", "Acho que sim.", "Então até já." O homem recomeçou com a história do fim do mundo. Eu passara despercebido, mas quando viu o anjo gritou "sou viciado em sexo!"

Entretanto cheguei à igreja. O padre estava sentado nas escadas a fumar um cigarro. "Você deve andar metido na droga" disse antes de perguntar "o que o trás à Casa de Deus meu irmão?", "Preciso de si senhor padre, tenho um anjo às costas.", "Vamos já ver isso meu irmão." Entrámos e sentámo-nos no banco corrido. A Virgem, o Menino e uma variedade de santos olhavam-nos. "Deixe ver. Pois é verdade, tem um anjo às costas, mas olhe este não reconheço, deve ser um novo.", "E pode-me ajudar senhor padre?", "Em quê?" Irra já parecia o médico e o psicólogo. "Com o anjo que tenho às costas!", "À sim, já vi, você foi escolhido, para quê, não sei bem, é o primeiro caso que vejo." Eu estava baralhado e o anjo tocava a harpa. "Quer-se confessar?", "Está bem." Depois de contar a história da minha vida reparei que ele dormitava. Bati na madeira e ele deu um salto. "Muito bem, não lhe vou dar penitências, o anjo saberá melhor o que fazer consigo, mas acredite, como já disse foi escolhido.", "Para quê senhor padre?", "Olhe não sei bem, mas vá passando por cá. Tem telemóvel? Vou ligar ao Vaticano, pode ser que eles saibam e depois ligo-lhe, mas têm tanto que fazer, não é como eu aqui desterrado, isto é uma seca se não fosse o vinho da sacristia e a sra. Alberta que vem cá limpar as teias de aranha." Despediu-me com duas palmadas nas costas, provavelmente na testa do anjo, mas talvez fossem amigos agora. 

Saí da igreja e sentei-me num banco de jardim. Que fazer da vida? E o anjo que continuava calado. Um indigente veio pedir um cigarro e sentou-se ao meu lado. "Tem um anjo às costas.", "Eu sei, só não sei o que fazer.", "Também já tive um." Olhei para o homem, não acreditava no que tinha ouvido. "A sério?", "Acha que ia brincar com uma coisa destas!", "E o que fez? Ajude-me por favor, estou perdido e desesperado." O anjo começou a cantarolar. "Olhe, deixe andar, há coisas na vida que ninguém consegue explicar. Eu andei obcecado e acabei por largar tudo, e agora estou mais feliz que nunca e não dou ouvidos a ninguém." Pensei se haveria ali alguma mensagem sublimar. "E o anjo?", "Um dia destes vai-se embora, veio só matar saudades.", "Do quê, das minhas costas?", "Não, das dele!

Dei-lhe o maço de tabaco, agradeci e levantei-me. 
Saíra-me um peso das costas.

22 janeiro, 2020

Brincar com o fogo

Queimou-se tudo, não restou nada que se aproveitasse. Teria sido do calor intenso ou do tempo decorrido? A suspeita veio à tona, mas não restaram dúvidas.

O desastre iniciara-se algumas semanas antes, quando o José, apesar da sua frustrante timidez, arranjara coragem de puxar a Maria para um vão de escada e beijá-la. Foi o momento em que se ateou a ocorrência.

Mais decidida do que ele e liberta dos pruridos da obrigatória iniciativa masculina e também por estar cansada daquela relação tão promissora se estar a esvair no tempo, a Maria agarrou José, abraçou-o com fervor e deixou-se levar, afogueada pelo encanto dos sentidos. 

A partir desse dia eram unha com dedo. Juntavam-se em qualquer oportunidade, antes, durante e após os estudos e também ao fim de semana. Afastados, não se passava um minuto em que não pensassem um no outro e quando juntos repetiam-se esses pensamentos coloridos e ardentes, onde a cinza e o negro não encontravam lugar.

Começaram a faltar à escola e os impulsos juvenis flamejavam entre jardins e lugares incertos. Sabendo do caso, os pais dela, um casal de espírito aberto, abriram-lhes as portas para o namoro. Lembravam-se bem das ardências da juventude e tinham reparado que a filha acalmara com aquele namoro intenso mas sensato. Do outro lado os pais dele notaram que a chama do rapaz espevitara e deram também mais liberdade à ligação. 

Ela repetia 'amo-te' e ele respondia 'por ti vou ao inferno e volto'. Era retórica, frase de apaixonado e ela gostava. Naquela idade a paixão era lume e como disse o Camões "amor é fogo que arde sem se ver".

Naquele fim de semana os pais da Maria foram para fora e fizeram o voto de confiança de deixar a rapariga sozinha em casa, pedindo para se comportar e atender o telefone sempre que ligassem. Não deixaram de falar do José e o rapaz sem saber da conversa sentiu as orelhas em brasa.

Mas rapidamente percebeu o que se passava quando a Maria, a arder de paixão, lhe ligou naquela sexta à tarde e fogosa e afogueada lhe disse 'anda ter comigo a minha casa, vou-te tratar como um homem e serei tua. Além disso terás uma surpresa que te mostrará como o meu amor se consome por ti'.

José correu desaustinado. Ela abriu a porta e com as faces coradas agarrou-se ao seu pescoço e com um salto abraçou-o entre as pernas. A voz entre-cortada sussurrou-lhe ao ouvido 'os meus pais não estão no fim de semana' e continuou 'estou em brasa José, ardo por ti'. Coisas que ouvira na Internet. O rapaz sentia o mesmo, parecia um vulcão prestes a explodir.

Tropeçaram emaranhados e ferventes caíram no sofá e arrancaram a roupa um ao outro sofregamente. Os beijos e os sentires da pele repetiam-se e os seus membros do amor faziam faísca quando se tocavam e logo ali se consumiu o primeiro desejo. Rebolaram pelo chão, sem se largarem e o suar escorria vapor. Chegaram à cama e amaram-se desenfreados e a agitação era tal que num oceano de lavas incandescentes um pontão abria e teimava em mergulhar numa fenda alagada, onda após onda. Era bonito. 

Finalmente consolados, ela reclinara-se no peito e brincava com o umbigo dele, que lentamente acariciava e sentia o calor das suas costas. E foi então que tudo descambou e o inferno instalou-se no apartamento. 

Ele foi o primeiro a sentir, 'não te cheira a fumo' e ela 'sim um pouco, o que será?' E ele 'não sei, não deve ser nada, senão ouviam-se os bombeiros'. Inocência. Fecharam os olhos e aconchegaram-se, a humidade descia pelos seus peitos e eriçava-lhes os mamilos. 

Ela abriu os olhos e tornou 'parece que está mesmo fumo', e ele, 'sim, cheira a queimado, é melhor ir ver o que é'. Ia a pôr o pé no chão, mas ela ultrapassou-o num salto a gritar 'ai a surpresa'. Correu para a cozinha apalpando as paredes entre a fumaça, abriu o forno e do arroz de pato restavam apenas uns torresmos em brasa. Teve que ser de exaustor e extintor.

O amor não se apagou e na verdade a investigação como se previa foi curta e levou a sorrisos e risos. A culpa fora do calor e do tempo, mas do calor do forno dela e do tempo que o facho dele o mantivera aceso.

Queimou-se o pato, foram ao chinês.

19 janeiro, 2020

Diário de um codependente (em recuperação)

man with wings statue
Querido diário,

Hoje vou ser egoísta, vou falar de mim.
Vou ser egoísta porque vou contar a verdade, a minha verdade.
Não vou ser egoísta porque o faço sob o véu do anonimato.

Sou um bom amante. Sou um péssimo amor. Não, a sério, deixa-me terminar.
No início de todas as relações fui o mais frontal possível. Quanto mais cresci mais brutalmente honesto me tornei. 
Quero que me aceitem pelo que sou e menos pelo Adónis que quero projectar. Tenho falhas e exponho-as como medalhas, para não haver dúvida alguma que existem. Sou uma escultura com falhas perfeitas.

O outro aceita e aprecia as medalhas, expostas com luz de todos os lados.
Gosta, porque fazem de mim campeão, definem-me.

Anos passam. Atitudes mudam. Gostos mudam. O outro muda.
As falhas deixam de ter piada, e quem tem medalha de segundo lugar deveria sempre lutar pela de primeiro.
Faz como voto tentar limar o rugoso da escultura que me define. 
O que mais desejo é ver o outro feliz, e concedo que me retoquem.
Assim melhoram-me à sua imagem, mas com cada pedaço de pedra que cai menos me reconheço ao espelho.

Anos passam. O outro satura-se.
Por muito que tenha esculpido, as falhas voltam a se revelar, ou pior, rachas na pedra.
Já não sou quem o outro se apaixonou de início.
A nossa sombra marca duvidas no coração, fazemos da apatia carapaça.
Lutamos para reencontrar o que nos fez dizer olá, e recomeçar daí.

Anos passam. É finalmente declarada morte ao amor.
Cada um vai para o seu lado, cada um com novas falhas na escultura e um novo medo de as apresentar como medalhas.

O ego desvaneceu. Durante estes anos todos, o id gritava por dentro, inepto de romper pelos lençóis do medo de solidão, sem forças para reviver uma alma dormente que se esqueceu quem foi. E assim não se lembra como voltar a ser. O ego desvaneceu.

Ainda não me reconheço no espelho, mas guardei os pedaços que me esculpiram para fora. Agora toca a encaixar.

16 janeiro, 2020

Fool moon ou o segredo da lua

Parece uma pérola fugida de um colar desfeito.
Tem fases diz ela. Hoje quer ficar sozinha, quieta, escondida.
Também eu tenho as minhas. Hoje não, tem dias.
Há dias, reina no céu escuro e faz inveja às estrelas. Crescente, cheia ou vermelha.
Outros, preguiçosa esconde-se, não quer conversa. Amua.
Uns dias mulher, outros menina.
Tenho dias como ela, somos parecidas, por isso temos segredos.
(Uns dias de cabeça na lua, outros, poucos, com os pés no chão.Uns dias tímida, outros segura.)
A lua está apaixonada, por isso estes amuos. Ama o sol em segredo. Mas ninguém sabe de nada.
Nem sei se ele desconfia, anda sempre tão ocupado. Eu sei, que ela disse-me, trocamos confidências.
Mas a lua anda triste: tem saudades do sol e ciúmes da manhã que apaga as estrelas e a manda embora para receber o sol vestida de luz branca. Esquecida das horas, a manhã vai-se prolongando. Vive um flirt com o sol que vai aquecendo o dia e acorda os botões ensonados que aos poucos vão desabrochando em flores perfumadas. Triste e frágil de amor, a lua esconde-se atrás de uma nuvem e vai perdendo o brilho. Chora baixinho e põe o seu véu de sombra.
(Também eu, como ela, tenho um véu que me esconde e quando, frágil, apago-me.)
E assim corre o tempo.Vão passando os dias e também as noites.
A brisa sopra devagarinho. Baloiçam as folhas das árvores que vestem os galhos altos que apontam para o céu. Escurece. De há uns tempos para cá, a noite tem medo do escuro. Acende as estrelas com toda a força, não quer ficar sozinha.
A lua apagou-se.
Desde então, o mundo anda triste: os poetas perderam a inspiração, os namorados têm saudades do luar. Até a brisa arrefeceu. Por vezes, sopra um vento frio e atrevido que empurra as nuvens e apaga as estrelas e tudo fica ainda mais escuro. E mais triste.É o negro absoluto. Tudo perde o sentido.
Alheio a toda esta tristeza, o sol acorda todos os dias, estende os seus raios e ilumina a manhã que ainda a bocejar o recebe com um sorriso.
Enquanto os dias brilham de alegria e se enchem de perfumes inebriantes, as noites espelham tristeza e desolação. E demoram-se a passar. Nunca o tempo foi tão cruel. E a lua chora noites a fio.
(Assim vai correndo a vida, uns dias com uma paleta de pastéis, outros com tons de cinzento,  uns com sorrisos nos olhos, outros com lágrimas salgadas).
Mas nenhum amor é impossível e já não ninguém aguenta tanta infelicidade. O sol tem de saber o que se passa com a lua. Mas ainda falta tanto para voltar a juntá-los, custa tanto a acontecer o reencontro. Cansada de permanecer nas trevas , a noite pediu ajuda às estrelas que também se sentiam sozinhas. Vamos enganar o tempo e fazer dele cúmplice do amor pensaram em conjunto pois sim, têm de encontrar-se o mais depressa possível. É urgente o amor!
E assim, durante a noite, as estrelas fugiram à pressa do céu e foram ter com o tempo que, distraído, fechara os olhos por uns momentos e deixara os relógios e despertadores à mercê das pequenas ladras brilhantes. Com muita mestria e ladinice, adiantaram todos as máquinas do tempo e voltaram a pôr tudo no lugar, direitinho.( Ah! Quem me dera controlar o tempo, adiantá-lo ou atrasá-lo ao sabor da minha vontade.)
Quando num sobressalto, abriu os olhos, o tempo ficou desorientado ao olhar para os relógios e despertadores que nunca, nunca falham e sentindo que perdera o seu próprio fio, deu um grande salto.
A manhã desatou a correr e o sol mal teve tempo de acordar que a noite já aí vinha também apressada com as estrelas no seu encalço. Aquilo deu uma volta tal que não se sabe bem como, a lua e o sol foram-se aproximando um do outro. Ao avistar a lua, o sol esboçou o mais radioso dos sorrisos e aqueceu de paixão. A lua ao sentir-se desejada e amada, começou a crescer e intensificou-se o mais belo dos luares.
Olharam enternecidos um para o outro e sem mais, o sol envolveu a lua num abraço e beijou-a na sombra da noite. As estrelas apagaram-se por um bocadinho pois não queriam ser indiscretas e deixaram-nos amarem-se sozinhos no silêncio.
 (Também eu me levantei do banco de jardim onde tenho estado sentada até agora de nariz no ar com a cabeça na lua).

Sugere-se durante a leitura a audição de Clair de Lune de Debussy.

14 janeiro, 2020

Punkitos no varão - Londres, anos 80, à tardinha

Aquilo era um varão onde toda a gente se agarrava para subir ou descer consoante as suas circunstâncias. Eu e ela seguíamos do trabalho para casa num double decker, aqueles autocarros vermelhos de dois pisos que não tinham portas. Subimos ao andar de cima por umas escadas tipo caracol que também tinham um varão ao meio. Gostávamos de ir ali a apreciar a vista.

Um pica corria os corredores com uma máquina redonda que parecia um barrilzinho com aguardente, daqueles que levavam os são bernardo para salvar gajos da neve, mas donde inteligentemente saíam uns papelinhos que eram os bilhetes e ele fazia os trocos e metia os penis no bolso. 

Uma paragem à frente subiu um grupo de punks e punkitas, dos normais, não daqueles de moicanas todas às cores para cobrar o retrato ou vender balões lá no Hyde Park. Os putos tinham pinta, despenteados, com blusões de cabedal e meio esfarrapados. Deviam ser squatters e estavam a parvalhar, mas na boa. Tinham aquela pele branquinha que o meu amigo Li dizia, cara que inveja, parece que estão sempre lavadinhos. Pelo sim pelo não, o pica não apareceu. 

Nós observávamos a cena. Era bom que não viessem embirrar que esta gente tinha a mania de embirrar com qualquer coisa. Só para verem, um dia à saída do metro atirei uma beata para o lado, assim como se faz no jogo do berlinde, e foi logo cair na bota de um skinhead, que fez birra mais os outros nazis que estavam com ele e vieram para me matar aos berros de you fucking spanish, os gajos sabiam como ofender. O Boris avançou e falou com o gajo da beata e bazamos sem estrilho nem sangue. Fogo, o Boris era o maior. Disse-me ainda, falas sempre só com um, sempre o mesmo. Se for o gajo errado you're fucked, se for algum que não queira levar nos cornos you're safe. Pelos vistos aquele era como eu, não queria levar nos cornos salvo seja. Tava sempre a aprender.

Lá íamos no bus. A nossa paragem era junto a um 7-Eleven, que eram umas lojas que estavam abertas sempre ou quase e pareciam um aquário, tinham umas vidraças enormes a toda a volta. 

Isto que vou contar passou-se em dez segundos.

Varão após varão descemos mesmo em frente à montra e um punkito saiu lá de dentro a correr e mandou uma pedra que estava ali à mão à vidraça que se partiu com um grande estrondo em mil vidrinhos e o rapaz entrou a saltar no autocarro e subiu as escadas três a três lá para cima e os empregados do 7-Eleven a barafustar a subir atrás dele e logo a descer, pareciam uns bombeiros agarrados aos varões, com o grupo dos doidos que lá estavam atrás deles e a fecharem-se dentro da loja, o que era parvo porque a vidraça mesmo ao lado estava toda escavacada, e os outros cá fora a fazerem desordem lá para dentro e aos pontapés na porta, o que era parvo porque a vidraça mesmo ao lado estava toda escavacada, e a sirene da polícia ao longe e o autocarro a bazar acelerado e os putos a correr atrás e alguns ainda se fizeram ao varão e apanharam o autocarro e os que não conseguiram fugiram pelas ruas e a polícia a chegar e a interrogar o dono da loja porque os empregados tinham desaparecido, deviam ser todos ilegais, e o dono a dizer que se não fosse a mulher e os filhos tinha-os matado a todos e estou a inventar porque o homem falava hindu ou isso e eu e ela encostados à paragem porque ver uma cena daquelas cansa a adrenalina e no fundo o que ali se passou não interessava a ninguém e seguimos caminho. 

Eram tempos selvagens.

10 janeiro, 2020

Que é da cor que é tua?

Uma imensidão de nada.
Um vazio sem cores.
Uma noite sem estrelas.
Uma lua apagada.

Na pele um arrepio.
Uma flecha que trespassa
um coração vazio.
Uma imagem baça.

Uma fotografia tremida.
Uma história inacabada.
Uma vida perdida.
Uma coisa quebrada.

A ausência dolorosa.
Uma eterna saudade.
Um texto sem prosa.
Um rosto sem idade.

Dos teus olhos falta a cor,
faz-lhe falta o sentido.
O mar sem o amor
É um curso de água ferido.

Devolve-lhes depressa a cor
que o mundo escurece.
É tristeza, é dor.
Nada mais acontece.

Onde anda o verde que é teu?
Que é da cor que é tua?
Encontra-a que o céu
tem saudades da lua.

É canção sem melodia.
Uma causa perdida.
É a noite sem o dia.
São as cinzas da vida.



06 janeiro, 2020

Como será o mar sem os meus olhos

Ando destruído num inverno sem vento de ranger arrastado. A penumbra embala o dia como um frasco de mel escorre líquido virginal por uma colina sem tom. O verde do meu pecado armadilhou-se e então, assim penetra fundo no meu olhar seguindo a fenda do Olimpo. Naufrago nas nuvens corretas. Incenso. Onda após onda, queimo corações como um fio de navalha.

Sem fim, que existirá se não penso na fome traiçoeira do peixe engalanado. Serão só escamas de prazer? Deitada ao meu lado vi-te sofrer, mas sou eu que te consumo no meu dia de dobrar de espinha em equilíbrio numa foice que evitou a morte. Frugal.

Antes o ramo que flutua sorridente entre os dentes sem cor do que o ser que mergulha pés em sal e água. Sigo o caminho que arde de novo nas unhas retorcidas do fogo baço do céu em flor. Então, amemos-nos sem fim, porque na vida cegam gaivotas de sono sem se despedirem do astro.

Sem querer a fome do medo que junta as faces coradas e deixa entreabertos os lábios vermelhos do teu sangue, exangue, parto para o fim, para a alcateia que uiva na espuma.

Frase do título: O Anjo Mudo, Al Berto