26 janeiro, 2020

Ando com um anjo às costas (para Terry Jones)

Ando com um anjo às costas. Levei tempo a perceber porquê, na verdade foi uma odisseia, mas as coisas quer nos façam sentido quer não, têm sempre uma razão. Começou assim:

A primeira vez que me dei conta foi num dia normal. Uns rapazitos riam-se atrás de mim e percebi que o tema da risota era eu. Virei-me. Um disse "até tem cara de tótó." Caraças, o raio do puto! Corri e apanhei-o pelo cocuruto enquanto os outros debandavam. "Deixe-me ir.", "O que se passa pá?", "Você anda com uma mochila de anjinho, se fosse lá na escola andava sempre a levar calduços.", "O que é que estás para aí a dizer?" Estiquei o braço para trás e senti uma cabeleira. Assustei-me. "Tira uma foto, rápido." O miúdo pegou-me no telemóvel e tirou a foto e fugiu a gritar "é verdadeiro e fui eu que gamei a bicicleta do Migas!".

Fiquei nem sei bem... Lá estava na foto, costas com costas, um anjinho de asinhas e bracinhos abertos, com um cabelinho aos caracolinhos, umas vestezinhas muito branquinhas e um sorrisinho divinalzinho, além das bochechinhas rechonchudinhas. Tinha uma harpazinha a tiracolo. De onde viera? Andaria a chover anjos? Não se via mais nenhum por ali.

Entrei numa pastelaria para um café e pastel de nata. Recostei-me na cadeira e ouvi um guincho. Cheguei-me à frente para não calcar o anjo. O empregado disse "devia tomar banho. O que deseja senhor?" E eu "hã?" E ele "o que deseja senhor?" Não valia a pena estar com coisas e pedi "um café e nata sffv. Quanto é?", "0,60€ e não o vou registar na caixa porque sempre que posso roubo nos impostos.".

Olhei-o estranhamente e saí. "Tem um anjo às costas, é bonito mas já não é Natal." Outro idiota. Fui para casa e tentei perceber o que se passava, mas nada fazia sentido. Perguntei "ó anjo, o que fazes aí atrás?" Não obtive resposta ou então obtive mas não estava sintonizado. Estava cansado. Deitei-me de lado para não esmagar o anjo e de vez em quando acordava com um zunido, era ele a avisar que o estava a moer. Levantei-me e gritei para as costas "diz-me o que queres!" Néstes. Mal sabia o que ainda me esperava. 

Fui trabalhar. O patrão disse "está com uma cara de merda. O cliente está a chegar, apagou os quilómetros ao carro?", "Ainda não", "Então despache-se." Passados trinta segundos chamou-me "ó Miranda que se passa, acordou mal da cabeça? Você tem uma coisa nas costas.", "Sim é um anjo.", "Um anjo? Você está-me a gozar?", "Não apareceu-me ontem.", "Chegue cá. Pois é um anjo com penas e tudo." Ouvi um grrrr. "Olha e não tem sexo, é mesmo um anjo." O gajo levantara-lhe as vestes. "Vá para casa e trate-se homem, não o quero assim a atender clientes, bem sei que já o podia ter aumentado mas sou viciado no jogo." 

Rilhei os dentes e saí. Bem, fui ao médico de família. "O que o trás por cá, seu enfezado, a micose do costume?" Comecei a não dar ouvidos aos insultos, para quê? "Não doutor, tenho aqui uma coisa nas costas.", "Vire-se sffv! O senhor tem um anjo nas costas.", "Sim eu sei.", "E em que posso ajudá-lo?" Fiquei a olhar para ele. "Não pode fazer nada?", "Sobre o quê?", "Sobre o anjo.", "É bonito, incomoda-o?", "Nem por isso, só tenho que ter atenção quando me encosto ou durmo.", "Então e da micose, anda bem?", "Bem, mas não vai fazer nada sobre o anjo?", "Tenho que consultar os manuais, mas tome um benuron de manhã e outro à noite, que se não fizer bem também não faz mal. Parabéns, é a primeira pessoa que vejo com um anjo às costas e olhe, gosto de tocar às campainhas e fugir."

Pensei que devia estar a sonhar, mas não, na rua estava fresco. Abanei-me mas o anjo não caiu e começou a cantarolar uma música dos anos 20. As pessoas passavam por mim e ouviam a cantarolice. Ouvi umas senhoras dizer "olha deve ser ventríloquo", "mas isso já nem se usa", " usa, usa, que estive no outro dia com um que me gemia numa orelha e eu ouvia na outra." Depois viam o anjo e pensavam que eu era pedófilo ou do circo. Outras pensavam que era blasfémia.

Chamaram um polícia que ia a passar e que perguntou "que anda você a fazer com uma criança pendurada as costas?" Eu estava já meio passado. "É um anjo e não me larga.", "Isso é o que vamos a ver" disse a autoridade. Puxou-o pelas asas, mas o anjo não desgrudava. Pôs a patorra no meu rabo a fazer de alavanca e com as mãos puxou o anjo pelo pescoço. Baralhou-me a coluna, mas nada. O anjo ria-se. "Ele não o larga. Hoje mandei parar um carro porque me apeteceu e fiquei com o dinheiro da multa." Foi-se e eu abestalhado sem acreditar que aquilo se estava a passar. 

Entrei num restaurante, estava com fome. O dono ao balcão disse "você tem uma penca do caraças" e começou a chorar quando viu o anjo "eu sou um pecador, roubei uma borracha quando era pequeno e infernizo a vida aos meus empregados." O empregado disse "eu como bifes às escondidas" e agarrou-se ao patrão e ainda outro disse "eu cuspo-lhe na sopa e engano a minha mulher." Era só baba e ranho. Saí a correr e com mais fome.

Voltei a esquina e vi um letreiro, Dr. Armando Pinho, psicólogo. Pensei que devia estar maluco por isso entrei. A recepcionista disse "o Dr. não está a fazer nada é como você, passa o dia a ver porno, mas vou ver se o atende." Passados dez segundos voltou "Pode entrar! Aí que anjo bonito que tem nas costas. É de peluche? Sabe, roubo comprimidos ao doutor para o meu filho que é tóxico independente." Entrei na sala e o psicólogo mandou-me sentar. Era selecto, sofás de cabedal, uma estante cheia de livros que dava a volta à sala e uma mesa de mogno. Fumava cachimbo. "O que o trás por cá, pila de amendoim?" Pensei, insulto bem adequado de um psicólogo. "Tenho um anjo nas costas." Olhou-me e perguntou "e o que sente relativamente a isso?", "Sinto que não é normal.", "Porque sente que não é normal?", "Porque tenho um anjo agarrado às costas." Levantou-se e andou pela sala meditativo. "Parece grave, a sua mãe não o amamentou em bebé pois não, o que sente sobre isso?" O anjo fazia-me cócegas. "O que tem uma coisa a ver com a outra?", "E o que acha sobre isso?", "Não acho nada, é uma parvoíce.", "Já pensou que era altura de o aceitar?", "O anjo?", "Não, a sua mãe!" Saí dali de gatas e ele gritou "sabe, os sofás são de napa e os livros são só lombadas de cartão e também não gosto de caracóis, como mas é um frete." Eu estava a ficar aluado. Paguei e a senhora disse "também tenho um em casa.", "Um quê?", "Um anjo pendurado no meio das relíquias." Os meus olhos estavam raiados e ela ficou receosa "não é a mesma coisa, sei bem. Às vezes minto, aprendi com o doutor."

Desci as escadas e resolvi ir a algum sítio pensar. Apanhei um táxi. "Esse cabelo deve estar cheio de piolhos! Para onde vamos? Para onde vamos? Olhe que não pode fumar e ponha o cinto. Não pago multas nenhumas.", "Leve-me ao Príncipe Real." Não podia encostar-me por causa do anjo e o taxista olhava-me com desconfiança. Saí e ele disse "costumo roubar aos estrangeiros e às vezes aos portugueses, é só merdas de viagens" e quando segui gritou "tem um anjo nas costas". Virei-me e benzia-se.

Isto deu-me uma ideia que devia ter sido a primeira de todas o que só demonstrava que a padeira tinha razão quando disse que eu era um idiota antes de me vender três carcaças e confessar que às vezes misturava as farinhas do pão novo e do antigo e de começar a fungar quando viu o anjo nas minhas costas. Em casa pus manteiga no pão, bebi um copo de leite e tomei um benuron, mal não fazia. 

Saí. No elevador entrou uma vizinha. "Nunca lhe disse mas você com essa barriga parece um bidon, bom dia vizinho.", "Bom dia vizinha.", "O que tem nas costas?" O anjo estava calcado na parede, tinha-me esquecido dele. Mostrei-lhe. "Mas você tem um anjo às costas!", "Pois é.", "Onde o arranjou?", "Acho que me escolheu." E veio a conversa do costume "vamos lá acima que não está ninguém em casa, só a senhora dos rissóis, mas é surda e eu vou fazendo os meus engates, espero que não seja pecado." Interessante, foi a primeira vez que ouvi a palavra, pecado.

Mas calhava bem porque decidira ir à igreja falar com o padre, que devia ter sido a primeira coisa a fazer. Entretanto, os comentários na rua sucediam-se "olha tem um anjo às costas, é ladrão, deve-o ter roubado nalgum poial" etc.. E o anjo que não dizia nada para me ajudar. Mais à frente uma voz berrava "arrependam-se pecadores, o dia do Juízo Final está perto!" e alguém perguntou "está a falar do quê?" e o outro mais calmo "do fim do mundo, vem aí o fim do mundo", "OK, e ainda dá tempo para ir beber um café?", "Acho que sim.", "Então até já." O homem recomeçou com a história do fim do mundo. Eu passara despercebido, mas quando viu o anjo gritou "sou viciado em sexo!"

Entretanto cheguei à igreja. O padre estava sentado nas escadas a fumar um cigarro. "Você deve andar metido na droga" disse antes de perguntar "o que o trás à Casa de Deus meu irmão?", "Preciso de si senhor padre, tenho um anjo às costas.", "Vamos já ver isso meu irmão." Entrámos e sentámo-nos no banco corrido. A Virgem, o Menino e uma variedade de santos olhavam-nos. "Deixe ver. Pois é verdade, tem um anjo às costas, mas olhe este não reconheço, deve ser um novo.", "E pode-me ajudar senhor padre?", "Em quê?" Irra já parecia o médico e o psicólogo. "Com o anjo que tenho às costas!", "À sim, já vi, você foi escolhido, para quê, não sei bem, é o primeiro caso que vejo." Eu estava baralhado e o anjo tocava a harpa. "Quer-se confessar?", "Está bem." Depois de contar a história da minha vida reparei que ele dormitava. Bati na madeira e ele deu um salto. "Muito bem, não lhe vou dar penitências, o anjo saberá melhor o que fazer consigo, mas acredite, como já disse foi escolhido.", "Para quê senhor padre?", "Olhe não sei bem, mas vá passando por cá. Tem telemóvel? Vou ligar ao Vaticano, pode ser que eles saibam e depois ligo-lhe, mas têm tanto que fazer, não é como eu aqui desterrado, isto é uma seca se não fosse o vinho da sacristia e a sra. Alberta que vem cá limpar as teias de aranha." Despediu-me com duas palmadas nas costas, provavelmente na testa do anjo, mas talvez fossem amigos agora. 

Saí da igreja e sentei-me num banco de jardim. Que fazer da vida? E o anjo que continuava calado. Um indigente veio pedir um cigarro e sentou-se ao meu lado. "Tem um anjo às costas.", "Eu sei, só não sei o que fazer.", "Também já tive um." Olhei para o homem, não acreditava no que tinha ouvido. "A sério?", "Acha que ia brincar com uma coisa destas!", "E o que fez? Ajude-me por favor, estou perdido e desesperado." O anjo começou a cantarolar. "Olhe, deixe andar, há coisas na vida que ninguém consegue explicar. Eu andei obcecado e acabei por largar tudo, e agora estou mais feliz que nunca e não dou ouvidos a ninguém." Pensei se haveria ali alguma mensagem sublimar. "E o anjo?", "Um dia destes vai-se embora, veio só matar saudades.", "Do quê, das minhas costas?", "Não, das dele!

Dei-lhe o maço de tabaco, agradeci e levantei-me. 
Saíra-me um peso das costas.

Sem comentários:

Enviar um comentário