23 dezembro, 2018

As renas do Pai Natal voam!


O bonacheirão barbudo barrigudo, de bochechas rosadas a combinar com a fatiota, diz-se que anda num trenó cheio de brinquedos e puxado por renas voadoras.

Um dia encontrei o duende do fim do arco-íris. É um espertalhaço, deu-me a escolher entre o pote de ouro ou um segredo. Deixei o pote e escolhi o segredo. Quem resiste a um segredo contado por um duende? Era Natal, contou-me o segredo das renas voadoras, tal como se segue:

Existe um grupo de elfos, daqueles que trabalham com o Pai Natal, que se especializou na recolha de sonhos. Na Primavera espalham-nos pelos campos verdes da Lapónia e no Inverno juntam-nos aos líquenes que afloram à neve. 

As renas, com muito cuidado para não os pisar, deles se alimentam e crescem garbosas, com as suas galhardas bem fortes, o peito largo e possante e os cascos rijos, que deixam marcas no gelo. O Pai Natal ama as suas renas e não raras vezes é visto com uma mão cheia de sonhos a alimentá-las, uma a uma. Pára, murmura-lhes coisas ao ouvido e as cores da aurora boreal ficam mais nítidas.

Uma noite por ano, aquela que nós sabemos, as renas, com o peito cheio de sonhos, levantam voo e à velocidade do luar, levam o Pai Natal a espalhar Alegria e Felicidade pelo mundo.

As renas voam no céu e as meninas e os meninos, que de manhã brincam e à tarde brincam também e à noite, ao colo da mãe ou do pai, escrevem cartas ao Pai Natal e com esperanças e certezas, adormecem e sonham com ele, com os brinquedos e com as renas a voar, não sabem, nem é importante que saibam, que são os seus sonhos que movem o mundo.

Isto contou-me o duende e quem sou eu para duvidar.

21 dezembro, 2018

Terapia


Após uma longa espera e um diagnóstico de tensão arterial em alta, deram-lhe um comprimido colorido para esconder debaixo da língua. Mas que raio pensa este gajo que me está a dar? A merda de um smartie? Vamos-lá-despachar-isto-menina-que-a-fila-ainda-é-longa-e-o-meu-turno-acaba-às-quatro!

Ando eu a descontar para esta merda uma vida inteira e espero três horas para este gajo gozar com a minha cara!



Sentou-se no carro, pronta a ser conduzida a casa. Tirou a receita já amachucada da mala que o médico lhe tinha rabiscado curiosamente com uma caligrafia bem legível. 


ESCREVA MAIS, FAZ BEM À ALMA E MELHOR À CARTEIRA!

Esboçou um sorriso e decidiu que ia seguir à risca a prescrição médica. Sem qualquer restrição!

19 dezembro, 2018

O Jardim dos Suicidas


Ao lado direito do Elevador da Glória está o Jardim de São Pedro de Alcântara, um dos miradouros mais celebrados da cidade, ponto de passagem obrigatório para turistas e curiosos. A Baixa Pombalina e as colinas orientais estendem-se ao olhar.


Num extremo do gradeamento que suporta o observante, encontramos umas escadinhas de pedra que nos conduzem ao patamar abaixo.  Acredite-se ou não, este local foi vazadouro de lixos e de animais mortos (!) nos anos que se seguiram ao grande terramoto. Só em 1835, depois de atulhado por iniciativa da Guarda Real da Polícia, devido ao cheiro nauseabundo que por aí pairava, se construiu o jardim, o qual encerra memórias trágicas e outras.

Das primeiras conta Luís Pastor de Macedo:

“(…) Mas ao passo que Lisboa desfrutava duma encantadora janela escancarada sobre si mesma e um jardim deliciosíssimo de copado arvoredo, dispunha também de um sítio esplêndido para a tentação dos suicidas. E essa aprazível e pitoresca varanda de parapeito de alvenaria com um metro de altura e com poiais de cantaria para que o visitante curioso pudesse sentar-se e gozar regaladamente o belo panorama, passou a ser procurada de maneira desenfreada por todos os desiluduidos que espectaculosamente queriam deixar este mundo.

E tantos foram ali os suicídios, tanto barulho se fez na Imprensa, tantos clamores subiram às esferas municipais, que a Câmara, já de posse da administração do jardim desde 1839, por resolução de 12 de Maio de 1864, mandou substituir o parapeito por uma grade, parte da qual pertencera ao antigo palácio da Inquisição. (...)”

De suicidas se fartava a futura Rua das Taipas e assim se explica o súbito arrepio, frio e pastoso, que percorre a espinha do desprevenido mictante, que depois de uma noite de folia no devassado Bairro Alto, desce ao jardim e sem vergonha aí se permite aliviar os seus fluidos.


Este texto completa-se com o "O Jardim dos Enamorados", que aparecerá por aqui noutro dia.

17 dezembro, 2018

Inacabado II

Que vidas suspensas se geraram,

São folhas, sem raízes que as segurem,

Vão vagando ao sabor de um vento que não as deixa pousar,

Giram à beira de um poço, coladas como mãos dadas por cima de um fosso.

Por entre uma névoa que não levanta e um pôr do sol que não termina, o abalo de um sismo alimenta corações que batem encurralados numa porta que não cede,

São folhas de um livro inacabado que não se dá, nem se diz...

15 dezembro, 2018

Olhos de céu e arco-íris

Gostava de me sentar ao teu lado no muro de pedra a fumar cigarros roubados do maço que o teu pai deixava um pouco por toda a casa.
Era bom estar ali contigo sem relógios, nem regras. Adorava aquela desorganização toda!
Havia pouco que fazer naquela casa enorme no meio do mato, mas inventávamos tantas coisas.
Até tínhamos feito um pacto: seríamos inseparáveis.
Mas… falhaste-me.
Ficaram-me os teus olhos cheios de céu e um sabor a água de menta e arco-íris.


12 dezembro, 2018

A discoteca, as ninfas e o castigo dos céus


Algures no West End londrino (zona de turistas e portugas à aventura), entrámos numa discoteca (Heaven/Hell, é escolher). Eu andava atrelado a uma mulher que gostava de mim (depois fiz merda (não fosse eu o Arroz Doce)).

A música da época (Rick Astley e Kylie Minogue e esses) convidava à dança (aquilo era uma discoteca!). A pista estava cheia (turistas e estrangeirados como eu). Dançávamos em roda (aquela treta dos amigos), e eu (Arroz Doce), sem me aperceber (já bezano), fui-me afastando para norte (atracão magnética).

Quatro adolescentes (de idade feita ok (não são essas da foto)) da terra do sol (cabelos louros, olhos azuis), com o calor e as feromonas que emanavam dos corpos suados e sensuais que me atingiam como cometas e a frescura dos lábios entreabertos de desejo (fogo) dançavam e eu fui parar ao meio delas (rimo-nos muito) e estava afogueado e a escaldar com aquelas peles a rodarem efervescentes a centímetros da minha (feliz).

Assim fiquei (pois), extasiado (confesso que também bastante túrgido), quando numa missão de resgate (sem aviso), entrou no círculo a minha monitora (benza-a Deus), que me sorriu (fiquei apavorado), e numa dança frenética e robótica distribuiu em cada passo cotoveladas e caneladas às deusas nórdicas (fod@-se, larguem o meu homem!) que se foram diluindo na multidão (trinta segundos tinham-se pirado).

Andei uns dias a pão e água (calha a todos), mas em retrospectiva foi engraçado (esqueço-me de tudo mas não me esqueci desta).

11 dezembro, 2018

Uma nota só



Gostava de ser música, só isso.
Uma nota só, um sol, um dó, um si bemol.
Guitarra ou piano tanto fazia, trompete, melodia, distorção com mel ou limão.
Uma nota fecundada ao ritmo dos flancos, das coxas rasgada.
Uma nota franca, transparente, que fizesse tossir de encanto, por vezes de espanto.
E claro, com muita sensibilidade e alguma verdade.


07 dezembro, 2018

Improviso



Incorrigível indiligente...Imensurável imobilidade...
Invejável inércia!
Haja incumprimento, indisciplina... o ideal!
Imagens imutáveis. Inquietude.
Invisível imunidade à insanidade.
Idílio com a indolência.
Que indelicadeza toda esta ironia! Indispensável,contudo.
Impaciente ilusionista a quem a imperfeição e o infernal impasse incomodam!
Impulsividade...intrepidez!

In ativo , afinal!

05 dezembro, 2018

O encanto da Sofia

A Sofia era única, a Sofia era um feitiço. Eu gostava da Sofia. 

A Sofia não dava beijinhos. Chegava com um high five e um "Tudo bem?". Eu detestava aquilo, queria abraça-la e beijá-la, mas também detestava o ritual beijoqueiro e então gostava daquilo, era ela. Lembro-me da constante que era o seu sorriso e de como dizia "Ganda maluco!!!!! Atina", e ria, ria sempre, quando o nosso tino se desatinava um pouco mais. 

A Sofia tinha o cabelo comprido, aos caracóis, muitos caracóis, que prendia atrás e por vezes, sem querer, deixava correr pelo ombro até ao seu decote bordado. Tinha um colete preto e um pescoço esguio e na curva do queixo tocavam as missangas dos seus brincos. Sempre vi luz nos olhos da Sofia e mesmo acompanhado esperava a sua voz. Gostava de a ter por perto, era bom. Segurava-me a alma.

A Sofia tinha umas sapatilhas pretas com bordados e flores e saias rodadas, com aqueles espelhinhos que brilhavam e com mais rendas e bordados de cores fortes e escuras, porque afinal éramos diferentes e até vestir o vermelho, ou o preto, era um desafio ao marasmo do Portugal em que vivíamos.

Eu gostava das meninas com saias rodadas e lenços da Palestina ao pescoço, como a Sofia.

A Sofia era perfeita, quase perfeita. Eu gostava da Sofia, a Sofia gostava de outro...

03 dezembro, 2018

A Inteligência e as suas aplicações práticas


O Dilbert vai no corredor e passa por alguém a varrer o chão.

A pessoa vira-se para ele e pergunta - Ouvi dizer que tem um QI altíssimo, não quer fazer parte da Mensa?

Da Mensa? - responde o Dilbert - Mas a Mensa não é aquela associação de pessoas altamente inteligentes?

Responde o outro - É, eu sou o presidente!

Pergunta o Dilbert - Então se é o presidente da Mensa como acabou aqui a varrer o chão?

Ao que o outro responde - A inteligência tem menos aplicações práticas do que se pensa...

E eu sigo o meu dia...

01 dezembro, 2018

Episódio Cigano

Tínhamos vinte e poucos, parava um cigano lá no bairro. Não me lembro do nome, vou-lhe chamar Miro, que fui ver ao Google e é nome cigano. O Miro andava de fatinho, gravata e  risco ao meio, como andavam antes dos brincos do Quaresma e dos penteados do Ronaldo.

Não era dali, mas conhecia os gadjôs, bebia umas imperiais, comia uns tremoços, etc.. Era desconfiado, até os pintas só lhe falavam quando ele queria. Vá-se lá saber porquê, atinou connosco uns tempos, viu que não havia ali  nada e bazou.

Lembro-me que uma noite teimou de ir buscar uns trocos. Nunca o vi fazer rien. Acho que a casa era o banco, a mulher vendia nas feiras com a família e ele ia buscar papel ou então umas t-shirts que despachava por ali. Isto foi há trinta anos, não havia cá Zaras nem cenas dessas.

(naquele tempo metade das palavras começavam por “c” ou “f”, mas como podem estar putos a ver isto e prometi ao Lisboa, vou-me controlar)

Ainda hoje não sei porque fui com ele, até porque já tinha sido martelado pelos ciganos. O Miro morava numas casas ocupadas ali à Picheleira. Ia-se por um caminho, meio terra, meio cascalho, sem luzes, tudo às escuras.

Ao cimo, estavam uns vinte ciganos a fazer a festa, à volta de uma grande fogueira. Viam-se viúvos de fato preto, chapéus e barbas brancas, e putos daqueles que andavam sempre a desafiar o people na rua e ninguém fazia nada, porque depois vinha a família toda e eu, que já vira cenas maradas, deu-me para filosofar, haveria mesmo vida após a morte como lera num livro qualquer? 

Calaram-se quando passámos, a olhar de lado para o gadjô, ou seja, a minha pessoa. A filosofia foi-se e pensei no meu testamento, mas não havia nada, tinha desbundado tudo. O Milo não ligou nenhuma, subiu um par de escadas, ouviu-se uma gritaria e desceu com um par de soutiens ou uma milena ou coisa que o valha.

Passámos a fogueira de volta e sentiu-se a tensão a crescer naquelas caras distorcidas pelo fumo, que me olhavam com um desdém silencioso e ameaçador. Vinte metros à frente, já as pernas não me tremiam tanto, ouviram-se três palavras vindas de trás. Claro que não entendi, mas deixei de respirar quando o Miro rodou, com passos ferozes chegou-se à fogueira e com voz altiva e de raiva começou a desancar nos outros todos. Estava à toa. Não percebia nada do que ele dizia num caló portuga, mas vi a cena toda e fiquei ali especado de pé e desmaiado. Era um menino.

Aquilo durou uma eternidade, mais ou menos um minuto, até ver que os ciganos não respondiam palavra, nada, niente, nem pio. O Miro voltou e só disse, vamos. Passado um quilómetro, quando voltei a respirar, perguntei-lhe, ó meu que se passou ali, o que foi aquela merda?

O Miro disse que era assim, que fazer aquilo era uma obrigação de vida de cigano, senão a família perdia a honra e isso não podia acontecer e disse também que os (aqui entra uma palavra começada por "f") a todos, (aqui entra uma palavra começada por "c"). Nunca perguntei o que ali se tinha dito. Estava vivo, o pessoal estava à espera e íamos curtir. 


Algumas palavras - parava: andava por ali; gadjô: não cigano; bazou: foi embora; fazer rien: fazer nada; papel: dinheiro; martelado: lixado (eufemismo); desbundar: cometer excessos; milena: nota de mil escudos; caló: linguagem cigana; merda: ainda se usa;