28 fevereiro, 2020

Aurora

 

Sabes pai?
Estás a ver aquele vento colorido lá em cima?

É verde, azul e lilás?
Faz "wooosh" e "fuuum", mas como está a tocar nas estrelas não o conseguimos ouvir.

Sabes porque é que só aparece de vez em quando?

Quando uma pessoa especial nasce no mundo a natureza quer iluminar o escuro do céu com a luz que essa pessoa traz dentro.

Quero que sejas um urso polar e eu a tua cria, para podermos passar o tempo a olhar para o céu. E quero que o céu se ilumine connosco.

23 fevereiro, 2020

Há ouro no Tejo


Digo que o Tejo é rico em ouro, mas antevejo  algumas reticências sendo nós portugueses deveras crentes e desconfiados.

Diz-nos frei Nicolau de Oliveira, no Livro das Grandezas de Lisboa, datado de 1620:

 “(...) A segunda excelência [do Tejo] é de suas areias de ouro, de que, como acima fica dito, é mais abundante que abundante que todos os outros, como se vê em Plínio, livro terceiro, capítulo quarto, e não há que espantar que ainda hoje vemos resplandecer em suas areias muitas arestas e folhinhas de ouro, e tão fino, e tão puro que, querendo el-rei D. João o terceiro lhe fizessem um ceptro, mandou que lhe buscassem o ouro nas areias do Tejo, do qual se fez um, que os reis têm agora na mão, quando os coroam, ou fazem Cortes, e se guarda em o tesouro de Lisboa."

Plínio, o Jovem, filho de Plínio, o Velho, ficou para a história devido às mais de 700 epístolas que enviou ao Imperador Trajano  (séculos I e II da nossa era), curiosamente nascido na província romana da Hispânia Bética, cuja fronteira ladeava o nosso Guadiana.  As cartas, posteriormente agrupadas em livros, relatavam o quotidiano das gentes de Império e nelas se fez menção, pela primeira vez, ao emergente Cristianismo. 

Ora acreditamos que a riqueza de ouro no Tejo terá despertado a curiosidade do Imperador. Também despertou a dos Mouros que o exploraram, mas tal era a sua abundância que no século XVI, El-Rei D. João III, o Piedoso, fez moldar das folhas puras das minas de Almada, topónimo que significa "a mina, mineral ou metal", um ceptro real.

Situadas algures nas antigas terras da Adiça, Fonte da Telha, só fecharam as portas no século XIX,  não por falta do metal precioso, mas por falta de financiamento para uma escavação mais intensiva. O ouro anda por lá.

Não nado no Tejo nem por ele navego, mas nos dias de Sol, talvez a bordo de um cacilheiro, irei estar atento ao brilhar do ouro, num rio que sempre pensei ser de prata.

19 fevereiro, 2020

Assalto ao Pedro Nunes - Lisboa, anos 80


Aviso: Esta é uma história amoral, mas tudo aconteceu na mais perfeita inocência de uma juventude irrequieta. 

Estávamos no snack do Migas a combinar os planos para a noite, porque as noites eram sempre poucas e tínhamos que as aproveitar todas e também porque era sábado e estávamos a bombar adrenalina. 

O Puto lembrou-se "hoje há festa no Pedro Nunes" e eu disse "é só betinhos" . O pessoal do Pedro Nunes tinha a fama de betoso e era. No meu liceu também eram todos, menos eu, mas como não faziam festas a questão não se punha nesses termos. "Arroz Doce, bute aí, deixa-te de cenas, eu sei uma entrada secreta" e eu disse "então vamos" e fomos.

O Pedro Nunes ficava ali ao pé do Jardim da Estrela onde ainda fica e claro os gajos da associação à porta tiraram-nos a pinta de proto-punques-alucinados e cortaram-nos a entrada. O Puto começou logo ali a dar estrilho, "somos rapazes honrados, não nos vamos fazer às miúdas", o que por acaso era mentira, porque era sempre essa a intenção. Começaram a sair mais grunhos lá de dentro, uma segunda linha de defesa/ataque e pelo sim pelo não fomos andando.

É claro que eu disse logo, "então como é que é a treta da entrada secreta?" E ele respondeu "vamos ver dessa merda, disseram-me que é numa janela lá para trás", "então não sabes onde é", "não" e eu "Ok". O pior que podia acontecer era aparecerem a PSP, a GNR e os Bombeiros, mas que se lixe, as betinhas tinham um apelo interessante. 

Demos a volta ao edifício a olhar para cima e nada e só à terceira vez reparámos numa janela ao nível do chão. Devia dar para a cave, tinha luz acesa e ouvia-se a música. Mas não se via nada lá para dentro.

"Fogo, deve ser aqui" disse o Puto e eu concordei. Com um empurrão abrimos uma das bandas da janela, mas a outra estava trancada e só por ali não dava para passar. Era um sítio estranho, via-se um corredor com várias portas. Estavam lá duas garinas bem curtidas e o Puto fez o choradinho para abrirem o outro lado da janela e nesta altura já lá estávamos os dois com a cabeça entalada e elas riram-se, o que é sempre meio caminho andado. Uma estava receosa, mas a outra avançou, abriu o raio da outra banda da janela e o Puto despencou por ali abaixo e eu caí-lhe nos costados. "Foda-se Arroz Doce", e eu "cala-te meu, olha as garinas". 

Só então conseguimos ver o outro lado, que estava meio tapado por uma parede pequenita. Tinha espelhos e lavatórios e nesse mesmo instante saiu uma rapariga de uma das portas e começou aos berros "Ó socorro, estão aqui dois pervertidos". Pervertidos nós, que tínhamos acabado de perder a virgindade, enfim. Mas ela continuava, "Ó da guarda!" As garinas desapareceram e nós saímos e vimos cá fora na parede um boneco de uma menina de saias sentada num penico. Caraças tínhamos entrado pela casa de banho das miúdas. 

Mas já estávamos no meio da pista a tocar guitarras a fingir e a abanar a carola e depois a dançar ska, que era um pé para a frente e outro para atrás, tipo os Specials. Entretanto os namorados ajuramentados das betas não estavam a achar piada e foram chamar os gajos da porta e no meio de uma confusão que só nos deixou mal vistos, eu ainda gritei "esta música é uma merda", e o Puto queria avançar, tinha vindo d'África e tinha a mania que era guerreiro. Tivemos sorte em não levar um enxerto, mas demos com os beiços na calçada. 

As duas garinas da janela estavam cá fora encostadas ao gradeamento a fumar um cigarro e parece que à nossa espera. Eram mesmo baris, fomos fumar uma ao jardim e acabámos a noite no Jamaica a curtir bués.

Ele há males que vêm por bem.

17 fevereiro, 2020

Morfeu

person wearing hat carrying bag while standing in front of door

O que será viver uma vida de sonho?
Será o tornar desejos realidade e fazê-los parte da nossa vida?
Será o descobrir que quando crescemos os sonhos mudam? Descobrir que temos tudo o que precisamos?

Ou será paralisia? Ver vultos e sombras, dúvidas que se aproximam no escuro no momento que nos sentimos mais seguros?
Um pesadelo acordado? O que acontece quando não conseguimos voltar a sonhar?

Vivemos em duas fases na vida:
Quando adormecemos para sonhar, e quando sonhamos em adormecer.

14 fevereiro, 2020

A que sabem os teus lábios?


Na primavera os frutos encarnam nos botões dos ramos em flor. O renascer do tempo e os primeiros calores tentam poetas e amantes. O sol brilha entre as folhas e sentado à tua espera na esplanada junto ao lago aguardo que me perturbes e por dentro bato assustado quando entrevejo os teus lábios brilhantes. 

Vem o verão e os frutos empurram as pétalas,  crescem das flores fecundas e o doce derrete-se nas polpas. A terra quente e o mar dócil saúdam os corpos acobreados que flutuam na areia. O teu perfume estonteia-me ao fluir-te na pele e a imagem viva dos teus lábios, que não provei, é a ponta insana do universo.

Chega o outono, colhem-se os frutos a explodir de carnudos e solta-se a folha. Confundido com todo este estonteamento de estação pós estação preciso de provar que resta querer no mundo, mas sucumbo cansado ao desejo negado de sentir a que sabem os teus lábios. 

Cai o inverno e os frutos são memórias que sobrevivem em  potes e as árvores ramos despojados. O frio invadiu os teus lábios desmaiados e estranho como ignoram o calor dos meus, quando todos sabem que por químicas desconhecidas dois lábios gelados ardem em contacto.

Encosto-me às raízes junto ao lago e qual pensador de Rodin busco o porquê das coisas e nada faz sentido enquanto não souber a que sabem os teus lábios molhados.

11 fevereiro, 2020

As conversas parvas


Gosto de conversas parvas entre amigos. São as melhores do mundo.
Não, não são aquelas de circunstância que se têm para preencher silêncios, remendar desconfortos ou para não ficarmos mal após séculos de ausência.
Essas não, não interessam. As conversas parvas são aquelas em que não nos preocupamos se é preciso termos juízo ou não, se temos idade para dizer isto ou para dizer aquilo.
São aquelas em que trocamos a idade por sorrisos, caretas e gargalhadas a explodir. São trocas de palavras confortáveis sem preocupação com a entoação, a sintaxe, a semântica e o politicamente correto.
São fáceis, prazerosas, sabem a fim de tarde, a sol, a ar fresco. São bolinhas de sabão leves e coloridas, aviões e barquinhos de papel.
São balões a subir pelo céu azul.
Sabem a imperial fresca, algodão doce, caramelos de fruta. Dentro da sua leveza e simplicidade são as mais sérias do mundo.
Pensando agora com seriedade, porque se diz que são parvas se não verdade não são? Não têm nada de desadequado ou de inconveniente, de tonto ou de desinteressante.
São felizes, simplesmente.
São festivais de interrogações . O que é que foi? O que é que foi o quê? Eu é que pergunto o que é que foi? Porque me perguntas isso? Sei lá, estás a olhar para mim… assim. Assim como? Estou a olhar para ti normalmente, porquê não posso? Podes, claro que podes. Também estás a olhar para mim. Pois estou. E então porque fazes essa pergunta? Não sei. (E seguem-se gargalhadas terapêuticas.)
São repetições de rábulas humorísticas , canções partilhadas a ver quem imita melhor o original (ou quem pior se aproxima do melhor!). São desenhos em guardanapos de papel, bonecada em toalhas de restaurante .
São brincadeiras de quem não tem vergonha, de quem não teme o cabelo em desalinho, a roupa amassada, o ridículo.

Há conversas parvas que nos salvam o dia e às vezes até a vida. É verdade é.

A conversa mais séria que tive foi uma dessas… parvas. Acabou num abraço e salvou-me a vida.

09 fevereiro, 2020

A excitação das freiras


O miúdo andava no infantário das freiras. Ele gostava e por afinidade eu gostava também, embora às vezes me lembrasse do trauma da catequese, sim, porque eu fiz a catequese das freiras, mas foi naqueles anos em que os meninos não gostam das meninas e era eu e mais onze e elas estavam sempre a cochichar e com risinhos. Foi um inferno, depois passou. Adiante...

Andavam há meses a ensaiar para uma festa, acho que era de Natal. O miúdo vinha e contava tudo. Andava contente, embora não fosse muito dessas confusões. Nisso saía ao pai que também não gostava de confusões.

No dia do espectáculo aquilo encheu-se de pais e mães, hoje seria mais confuso com mães e mães e pais e pais e isso. Desde a entrada que as freiras avisavam que havia uma surpresa. Freiras com surpresas só podiam ser doces (mas estávamos em Lisboa e não Odivelas) ou um terço rezado em grupo. Havia de ser giro, tudo ali entalado a rezar o terço, mas eu já traçara um plano. Se chegasse a isso, tínhamos que ir levantar a roupa que estava a ameaçar chuva. 

O tempo ia passando e ele eram criancinhas com flauta, rábulas do menino Jesus, coros de Natal, essas coisas que vocês sabem. O nosso rebento entrou num coro e fiquei muito orgulhoso pois ficou o tempo todo a olhar para o lado onde estava uma santinha. No final, fez três vénias e tiveram que o ir buscar. Puto do caraças, levou aquilo a sério. 

A freira chefe veio ao microfone dizer "vamos fazer um intervalo de quinze minutos e depois há de vir a surpresa". Andavam excitadas, notava-se. Tendo em conta que a média de idades era acima dos 55 a excitação cansava-nos, mas ficava-lhes bem.

Viemos do intervalo todos a falar da surpresa, o que seria, parecia um segredo bem guardado do Vaticano. No palco havia movimento. Trouxeram uns dos mais novitos e sentaram-nos no chão em semicírculo. Saíram, a expectativa cresceu e lá detrás dos panos, no seu passo meio errante, meio navegante, entrou o Jorge Palma e sentou-se no chão no meio dos putos a cantar o Postal dos Correios. Todos nós acompanhávamos com palmas e eu estava de coração derretido. 

O Palma portou-se bem, parece que o filho dele era colega do meu. Aplaudimos muito e os putos pequenitos acordaram do torpor e começaram a subir pelo Palma acima, que levou meia dúzia ás cavalitas. 

As freiras estavam radiantes e confesso que esta foi uma das mais surpreendentes surpresas da minha vida, ainda maior do que quando vi um unicórnio a voar, mas disso não tenho a certeza.

Bem hajam as freiras do Patronato e o grande Jorge Palma.




06 fevereiro, 2020

Confissão


É assim que vivo, um dia de cada vez, no incógnito, numa espécie de anonimato voluntário.

Evito interrogações, poupo-me a respostas, torturo-me com fantasmas e dúvidas.
Escolhi assim, sigo o meu caminho. Certa ou errada, é a minha escolha.
Perco ainda muito tempo a ter medo do que poderá acontecer amanhã, ainda sabendo que é uma preocupação estéril, vazia. É espontâneo, é natural, mas é tempo perdido. E o tempo é um tesouro, perder tempo é perder tudo. Paga-se caro o desperdício. Ainda agora abri os olhos e já é hora de os fechar de novo. O dia inteiro cabe numa conversa de café, nas páginas de um livro ou numa melodia. Cada vez mais depressa chega o fim. Enquanto entidade abstrata e intangível , é estranho o tempo, não fosse ele impossível de definir. Cada um sabe o que faz com ele. Ele sabe o que com cada um de nós faz. 
Dói-me até dizer chega senti-lo a escapar-me por entre os dedos, ao perceber os sinais que me vai deixando de que tudo é efémero, de que tudo finda.
O tempo é como o amor, fodido. Pisca-nos o olho, seduz-nos, atordoa-nos, engole-nos , tritura-nos e rouba-nos a vida.
É uma flor, é um espinho.
Ainda há quem diga que devemos dar tempo ao tempo. Tretas! O tempo não nos pergunta nada, dá-nos o que bem entende. E nós bem mandados, aceitamos sem condições. Entre o primeiro choro e o último suspiro, existimos. 
Cada dia que passa é uma dádiva. Cada dia que passa é uma morte. No meio disto tudo, acontece a alegria da surpresa, do inesperado, o tempero da vida, o antidoto para a disrupção.
Tenho pavor do obsoleto, do ultrapassado, de não fazer mais parte…do vazio em geral.
Alimento-me de brisa, de sol, de vozes e de movimento.
Dependo de presenças, de barulho e de palavras. Muito. Muito mesmo. 
Perco-me com muita facilidade, demoro a encontrar a saída. 
Falo mal do tempo, mas agarro-me a ele com todas as forças. Desconfio do amor, no entanto não equaciono não o ter comigo. 
Conforta-me o calor do raio de sol que me ilumina, apazigua-me a doçura de um eco ao longe. 
Revigoram-me os sorrisos pueris, os olhos curiosos, a ingenuidade de palmo e meio, a irreverência dos heróis de capa e espada, a rebeldia em processo. 
Retempera-me o ritmo pelo corpo adentro, os movimentos desenfreados, a vida a pulsar, a catarse. 
Doem as ausências definitivas,as prolongadas, as curtas. Doem-me as ausências, ponto.
Aterroriza-me ainda a morte. Estou a aprender a pronunciar-lhe o nome, a falar sobre ela, a encará-la. Têm-me ensinado.
Preciso do choque frontal para perceber as coisas com clareza, para alterar, para reaver o equilíbrio, seguir em frente.
Amo incondicionalmente, do ódio não sei.

Sou um paradoxo, uma contradição...aparente simplicidade num novelo de complexidade.

E mais não digo.

Contei-lhe tudo à espera de uma resposta, mas ela limitou-se a olhar para mim.




04 fevereiro, 2020

Quero-te minha outra vez


Olho-te do outro lado, camuflado numa coluna. Sempre à mesma hora, em plataformas trocadas. Faz tempo que viajamos em sentidos contrários, como se os relógios rodassem inversos recomendando a mesma hora.

Que aperto no peito sinto quando te vejo de manhã e que raiva quando te revejo à tarde, uma visão tão improvável, mas sempre tão certa. Para onde vais? Como pode ele amar-te mais e melhor do que eu? Como pode ele tocar-te quando jurámos ser só dois? 

Ouves música, será que ainda ouves a nossa música ou também isso mudou? Conheço esse teu gesto, o cabelo curto roça os ombros e os brincos, sempre diferentes, surgem quando com o dedo seguras o cabelo atrás da orelha. Tão sensual, disse-to tanto, já não ouvias. Ficou-te porquê? Conheço todos os teus gestos.

Hoje vestes o casaco vermelho com dois botões. Sinto nos dedos o toque aveludado e o perfume misturado contigo, com o teu cheiro, que me transtornava quando abria os armários. Os lenços... Observo melhor, tanta coisa nova em ti e esse brilho nos olhos que tinhas perdido no nosso caminho. Já se esfumam na memória as curvas do teu corpo que tanto desejei e que agora são doutro. Canalha.

Um dia chamarei a tua atenção e o teu desdém sacrificará os restos do meu amor por ti. Mas não hoje, não ainda. Vou subindo as escadas cabisbaixo por dentro e rude por fora e enfrento mais uma manhã e à tarde vejo-te cansada e maldigo este final que me deixou do lado errado do cais. O teu mundo já não é o meu, mas como todas as pessoas que nos rodeiam aí e aqui, eles cruzam-se e confundem-se.

E porque quando a meu lado libertavas o teu corpo e te vestias suave para dormir, quando te chegavas ao meu ombro e sentia o teu tremor, o meu pensamento em ti era o melhor momento do meu dia?

Aguardando a vida, afago recordações em gargalos de cheiro a uvas ferrais e valdosas...