30 novembro, 2019

Elegia do medo

O medo vai subindo a escada degrau a degrau. Lento. Tem tempo.
Aumentam os batimentos cardíacos. Acelera a respiração. Suam as mãos.
Do estado de alerta caminha para o sobressalto, experimenta o temor, a ansiedade. Conhece-se o sabor do terror. Amargo de boca.
A folha branca na ânsia de ser desflorada permanece intacta. Nada se move em cima dela.
A febre vai subindo, toma conta do corpo.
As sílabas cativas no arrepio gélido da espinha.
O terror que as palavras se tornem gastas… obsoletas… enjauladas.
O medo que a língua seja travada, a voz rouca… calada, as mãos sem vida.
Falta de ar…Sufoco. Pânico.
O esquecimento...a ruptura.
Receio de não saber construir enquanto outros manejam o verbo com mestria e eloquência.
...
Nem o ar fresco da noite desperta os sentidos. Tudo se desvanece sob o manto negro de pontos luminosos.
O grito insistente de uma gaivota parece anunciar uma tempestade.
As mãos tremem.
O medo continua a sua odisseia.Lento.
Tem tempo.

os poemas adormeceram no desassossego da idade.

fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais
curto e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me
as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas...e
nada escrevo.
o regresso à escrita terminou. a vida toda fodid@ – e
a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar.
a dor de todas as ruas vazias.
Al Berto, Horto de incêndio

28 novembro, 2019

A ira

Intenso e descontrolado sentimento de raiva, a ira é sem dúvida o pecado do conflito. Forte desejo de exteriorizar a insatisfação, a mágoa ou outras contrariedades é a mácula da erupção explosiva. Para os mais contidos e diplomatas uma erupção palavrosa mais ou menos pejorativa, para as gentes mais impulsivas, de pavio curto e com o diabo no corpo, o verbo poderá vir acompanhado de algumas manifestações de confronto físico, vulgo porrada. Quem nunca experimentou o sentimento da explosão que atire a primeira pedra (pensando bem, é melhor não para não dar mais intensidade à coisa e não incitar à violência!). Afinal, quem não sente não é filho de boa gente!
Por isso, em pleno século XXI, era da velocidade e do stress esmagador, não guardemos nada cá dentro e libertemos as más energias porque como diz o ditado “Depois da tempestade, vem a bonança”. Sem dúvida, uma excelente terapia para as novas doenças do novo milénio.

Imagem: La colère divine, Rembrandt

Início dos Tempos: Isso não, é pecado
Pecado mortal 1/7: O orgulho
Pecado mortal 2/7: A avareza
Pecado mortal 3/7: A inveja

25 novembro, 2019

Coisas de gente que escreve...

Embora haja sempre tanto para dizer,nem sempre a Musa se digna a brindar-nos com a sua visita.Ainda assim,é importante dar voz às palavras mesmo sendo pelas mãos de outros...

Esqueço-me de tudo, por isso escrevo, longe do terror ao sismo inesperado das estrelas, escrevo com a certeza de que tudo o que escrevo se apagará do papel no momento da minha morte (…) definha-se texto a texto, e nunca se consegue escrever o livro desejado. Morre-se com uma overdose de palavras, e nunca se escreve a não ser que se esteja viciado. morre-se, quando já não é necessário escrever seja o que for, mas o vício de escrever é ainda tão forte que o facto de já não escrever nos mantém vivos.(…)

Al Berto, O Medo

22 novembro, 2019

Route 66, Arizona, costa alentejana, meados de 80



Arroz Doce, só arranjas cenas destas, fogo. Ela estava lixada e eu também. Mandava vir, mas os olhos azuis completavam o céu e eu aparava os golpes todos. Deixa-te disso, estás a gastar o oxigénio, disse euFuzilou-me com o olhar. Pensei, para rebolar uma hora no pinhal, tudo bem, mas cinco minutos a caminhar e já está em brasa. Ela disse não penses que por pararmos cinco minutos no pinhal te safas, a culpa é tua de andarmos aqui à uma hora a caminhar. Era muito vocal. 

Íamos para uma festa de música numa praia alentejana e o ferry para a Troia fora-se antes do nosso tempo. Depois foi a vez do vai-vem para a festa que só vinha e ia uma vez. Eu disse logo, vamos à boleia, e ali estávamos de dedo esticado a caminho do mais para sul. O plano era sempre o mesmo. Se alguém parasse eu fingia que não existia e ela depois chamava-me e o pessoal do carro ficava entalado, ou levava dois no lugar de um ou bazava. Devia ser por eu não usar gravata. Naquela tarde ninguém passava, quer dizer, passou um Ford Cortina amarelo com um casal de velhos, deviam ter mais de 35. A mulher olhou para nós e pensou, deve andar fugido de Pinheiro da Cruz e ela é refém ou cúmplice. Continuaram. Depois passou uma carrinha cheia de porcos. Parou e fizemos de conta que não a víamos. Estamos lixados, pensei eu e ela disse estamos lixados, devíamos ter ido com os porcos. Ela era mais vocal.

Bem, começámos a ouvir um zumbido, depois um ronco e depois um trovão e começou tudo a tremer. Uma nuvem de pó vinha na nossa direcção. Grande azar chiça, tínhamos que levar com uma manada de búfalos. A ela passou-lhe a zanga e agarrou-se a mim. Uma sombra passou, ouvimos um chiar de travões e pneus. Parada mais a frente estava uma bomba. O condutor pôs a mão de fora a chamar-nos.

People, o carro era uma loucura, ocupava a estrada toda, era vermelho, com uma lista preta a subir do capot até à bagageira, jantes do aço a brilhar por baixo do pó, todo artilhado. Roncava, ele ia carregando no acelerador, impaciente. Querem boleia? perguntou e eu pensei sim claro, caraças, andávamos aqui a apanhar sol, e disse sim senhor. Ao fundo daquele capot que nunca mais acabava estava um cavalo prateado. Era um Mustang daqueles dos filmes americanos, estávamos na Route 66. O man era ruivo, forrado a couro tal era o bronze que comia as sardas. Tinha um rabo de cavalo e os dedos cheios de anéis e uma camisola de alças com o Rato Mickey. 

O tecto estava forrado de fotos de raparigas. Achei aquilo estranho, mas não era nada de pornos, só sorrisos e pernas bonitas, e dava bom ambiente. Uma foto em branco tinha uma faca do mato espetada que pendia do tecto. Devia ser para estar sempre à mão. No banco atrás estava uma  espingarda mesmo ao lado da garina. O gajo pouco falava e ela perguntou és caçador? e ele respondeu caçador, que merd@ é essa? e ela disse tens aqui uma espingarda, e ele respondeu que espingarda fod@-se? Percebi logo tudo, era um serial killer, mas parecia estar em negação. Do mal o menos. Fiquei a pensar que era o primeiro que conhecia pessoalmente. Fixe. Carregou no acelerador, o carro parecia um leão. Levantou a embraiagem e o carro saltou e o mundo passou a correr ao nosso lado. 

De repente disse segura aqui o volante e largou-o e eu todo deitado, quase sem ver a estrada, fiz o que pude a 160 à hora. Olhei para trás, ela estava branca, mas riu-se, era só adrenalina, Route 66 e tal. O pintas enrolou uma e disse acende aí. Aquilo começou a rodar e passados dois minutos estava tudo estalado a rir e ele carregou no acelerador e a faca do tecto caiu e ficou espetada na cabeceira do meu assento.

Tudo isto durou cinco minutos, o Mustang voava. Mais uma travagem acelerada e saltámos do carro. Sigam por aquele caminho, a praia é sempre em frente, disse o gajo. Um trovão e o carro já nem se via, só se sentia a roncar do escape e a deslocação do ar. A miúda disse o gajo tem pancada nos cornos e eu pensei mas o produto era bom e ela disse mas o produto era bom. Ela era mais vocal. Um cenóide do caraças, ninguém ia acreditar.

De repente estávamos no deserto do Arizona. Eram só cactos e mato. Um sinal cheio de chumbo apontava a praia. Um calor do caraças. A boca estava seca e já não ríamos. Cada passo era um esforço. Ninguém passava. Andávamos, não havia sombra e eu pensei já bebia uma fresquinha, e ela disse bebia agora uma fresquinha. Já referi, ela era mais vocal e acho que lia os meus pensamentos, fogo, tinha que me por a pau. Por outro lado era fixe, nem precisava de falar.

À beira do caminho estava uma casa, uma miragem. Uma tábua dizia "vinho". Ficámos a olhar um para o outro. Vamos lá Arroz Doce, ela era decidida. Bati à porta e apareceu um homem de barba negra de dois dias e de boina, o que me pôs de pé atrás. Devia já ser paranóia. Vão para a festa? perguntou. Vamos, disse eu, mas estamos com uma sede, já vimos a pé desde Troia. Eu falava pouco, mas gostava de exagerar. Entrem para provar do vinho, disse ele. Entrámos. A sala era fresca com naperons e bibelots por todo o lado, devia haver por ali uma mão de mulher. Encostada à parede uma espingarda. O homem trouxe uma garrafa de branco e começou a despejar nos copos. 

Ela era curiosa e perguntou a sua mulher não está? O homem respondeu bem falta me fazia, as últimas morreram dumas cáries. Eu olhava com ar de estronço e ia dando na vinhaça e ela não parava, é caçador? Caçador, porra, eu não a matei, não mato nada, e franziu mais o sobrolho e ela continuava, tem ali uma bela espingarda e ele, qual espingarda fod@-se? Boa, outro assassino em série em negação. No mesmo dia apanhámos dois, devia ser um recorde. A miúda riu-se, já estávamos todos toscos, queria lá saber e eu continuava a olhar feito estronço. O homem começou a contar histórias de cabritos e da cor da uva, mas tínhamos que ir andando que se fazia tarde e ele deu uma garrafa a cada um da zurrapa do quintal. A praia é já ali, disse. Fomos a beber pelo caminho, ríamos e uivava-mos e seguíamos aos saltinhos. Vimos o acampamento e o azul do mar atrás das dunas.

Que cena marada, em vinte quilómetros tínhamos passado pela Route 66, o deserto do Arizona, tínhamos conhecido e sobrevivido a dois assassinos em série e eu estava com tanta, tanta sede, que só me apetecia beber a água do mar.

20 novembro, 2019

As botas Reais de Alcobaça


Recorro de novo ao livro Fotografias de Lisboa, de Alberto Pimentel, e aos episódios insólitos e curiosos que nele nos apresenta. Este é um trecho do texto "Os burgaus", ou seja, os calhaus:

"Ignorava decerto o leitor ser costume que, indo os reis de Portugal em visitação ao mosteiro de Alcobaça, lhes dessem os monges, reconhecidos à concessão do padroado real, um par de botas ou sapatos à escolha dos sereníssemos hóspedes.

D. Afonso III reconheceu, porém, que era pesado o encargo, e absolveu da obrigação os monges pela carta seguinte:

Saibam todos os que virem a presente carta, que eu, Afonso, rei de Portugal e do Algarve, prometo, ordeno e concedo que doravante não pedirei nem exigirei ao mosteiro de Alcobaça botas, balegões, nem sapatos, como até aqui exigi; (…) e tenha a maldição de Deus e a minha aquele que dizer o contrário.

Dada em Lisboa, por ordem do rei, aos 3 de Novembro de 1314."

Vou contextualizar valendo-me das palavras de Frei Manuel dos Santos, cronista-mor do reino no Séc XVIII. D. Afonso Henriques, muito bem alcunhado de "O Conquistador", combateu os mouros em Santarém e apesar da grande inferioridade numérica conquistou a cidade. Tendo apelado ao apoio divino, como era costume na época, o Rei fizera um voto que se a vitória lhe sorrisse mandaria erguer um mosteiro no vale do Bom Jesus do Monte, e assim o fez, o atual Mosteiro de Alcobaça. Sempre próximos dos corações reais, os monges e abades do mosteiro foram beneficiados ao longo dos tempos por "grandes mercês em vida e grandes esmolas por morte".

Parece que os servos do mosteiro que iam a Lisboa em afazeres contavam aos monges que as ruas da cidade eram uma funesta combinação de lamas, calhaus e porcarias. Condoeram-se as almas religiosas das reais e gentis pessoas, que acreditavam andar muitas vezes descalços nas ruas da cidade para agradar ao povo e impuseram-se um foro. Sempre que o Rei fosse a Alcobaça seria presenteado com um par de sapatos ou botas à sua escolha. Dizia-se que era aí que se fazia o melhor calçado e de vez em quando lá ia o Rei visitar o mosteiro e trazer sapatos novos para si, à borla, e para a família também, a pagar ou não, isso não diz Frei Manuel.

Com o fim do foro o calçado de Alcobaça nunca mais foi o mesmo, mas conta o cronista que o neto do Rei, o ainda príncipe Afonso, que viria a ser o IV, andava pela cidade a sonhar com a sapataria do convento. O mito consolidou-se e passados uns bons séculos Dom João IV de visita a Alcobaça e provavelmente em tom de reinação real, lembrou a história dos sapatos aos frades que fizeram orelhas moucas. O Nobre Rei de lá saiu calçado como chegou. 

Portugal sempre foi famoso pelos seus sapatos, de bom preço e qualidade. Eu não me queixo, sempre me calcei por cá e embora nunca fosse a Alcobaça considero que tenho sido bem servido. Também já ouvi dizer, certamente por más línguas, ter havido quem em passeio por Itália se calçasse, país bem mais conceituado na indústria da moda, e só depois reparasse com dó na carteira na etiqueta Made in Portugal. 




17 novembro, 2019

A inércia


Sabe a pouco.  

Um reflexo mecânico do quotidiano, fruto das raízes que nos nutrem e quais nutrimos. Fungo parasita que nos transmite um bem-estar inquieto, um sedativo eterno que nos paralisa, propósito final de crescer e criar mais raízes, até por fim enjaular-nos em grades de conformidade. 
Aparentemente antíteses, a inércia e o movimento são irmãos perdidos, por vezes a primeira usa a segunda como máscara, um truque mestre que engana até as mais engenhosas vítimas. 
Por mais que rompamos a inércia com movimento original, eventualmente o mesmo se torna inércia, batalhando uma cruzada infinita contra a sua força.  

Será essa batalha em vão? Quantos mais confortos terrestres terão de morrer nela? Quantos mais sacrifícios ao altar de uma luta interna?   
Alguns desistem da luta, sucumbindo ao seu forte charme. Que delicioso charme... Será esta a solução?  

Não será, pois a nossa natureza nos guia contra ela, se sucumbirmos um sentimento inadequação se instalaenquanto uma força do fundo espera por gritar a vida, enfrentar os nossos maiores confortos e assim conquistar a inércia. Mas sabemos que depois ela voltará. E voltará. E voltará. 
É essa a luta, um inimigo imortal que apenas adormece com a sua derrota, vampiro imundo que nos assombra milenarmente.  

Mas sabe a muito!

A sua derrota é a melhor vitória, um sabor de ambrósia delicada que nos dedicou olimpo, uma invencibilidade temporária nos faz querer mais, e quiçá, a esperança de um dia cravar uma estaca de madeira no coração do monstro que nos assombra, dissolvendo o seu corpo em energia etérea...  
Uma ilusão. Apenas uma ilusão. Ah! Mas que bela ilusão! 

15 novembro, 2019

Ambivalência

Desenha-me um significado que não entendo este amor retratado à flor da pele e do ódio.
Acicata mais ainda esta tormenta avassaladora de emoções ambíguas que tenho vindo a experimentar, sentimentos contraditórios que me vêm consumindo, mas que fazem querer manter esta paixão que desafia a própria morte.
Amo esse teu lado negro e destrutivo, essa tua beleza agreste e selvagem alimentada por chuvas rigorosas, ventos fortes e tempestades. Inflama-me este sofrer.
Cheira a rosas vermelhas no jardim onde me perco nos labirintos retirados de contos fantásticos. O perfume inebriante das flores e o sopro forte nas árvores lembram-me o movimento sensual dos corpos na volúpia dos lençóis.
Aparências que se deformam e se transformam, gritos e sombras a que se sucedem cores musicais.
Estados de exaltação. Cenários oníricos. Metamorfoses.
Vertigem de loucura… Palpitações de pura emoção.
Alucinações... Desvarios... Delírios...
Tudo culpa dos vapores do álcool e dos paraísos artificiais.
Silêncio… Leveza… Tranquilidade…
Na verdade, anseio apenas afagar-te o cabelo com a ponta dos dedos, acariciar-te o rosto com as costas da mão, puxar-te para mim para que enlaçados possamos juntos ouvir o murmúrio das ondas e saborear o aroma fresco da maresia.

Guarda-me no teu abraço.

13 novembro, 2019

O ego, ai o ego!


O ego, ai o ego!

Não sei quem chama ao certo.
Sei que alguém me chama assim.
Quem chama está tão perto
que até faz parte de mim!

Sinto em mim esse alguém
e desse alguém não despego.
Sinto a vida dele, tão bem...
Aqui bem dentro: o meu ego!

Loucura d' egoísmo... dirão!
Não é loucura, é consciente.
Não é egoísmo, é pura razão,
que me torna tão diferente!

Sem o ego, somos tão iguais...
Com o ego, somos diferentes!
Sem o ego, ficamos banais...
Com o ego, ficamos luzentes!

Que atire a pedra bem primeiro
quem não sente um ego em si!
Um bom ego jamais é solteiro
de quem o abraça em frenesi!

Paulo J. Pinto
6/11/2019

11 novembro, 2019

De peito feito

"Everythin', everythin', everythin's gonna be alright this mornin' "* 

A pronúncia era meio estranha, mas o sentimento estava lá.

Ele olhava-se ao espelho da casa de banho e passava a mão pela barba já com 3 dias. "Não vou fazer. Um homem tem barba, caraças! E eu sou um homem, não sou um p@neleiro". A última frase era a justificação para metade das coisas que fazia.

Veste a t-shirt do trabalho e bebe o café manhoso num frasco de vidro ("chávenas é p'ra meninos"). Sai porta fora, faz uma festa ao cão antes de fechar o portão de casa e entrar no carro. A manhã estava fria, já com as cores de Outono em toda a sua força. Liga o rádio do carro e ao fim de duas músicas desliga. "Isto é que é música? Geração mais careta!". O blues man da Beira Interior, além de muito másculo, acha que só ele sabe o que é música boa.

Sai do carro, o andar é meio trôpego. Não que tenha bebido, mas já começava a ter uma barriga saliente e passar horas todos os dias no carro tinham-no deixado com o andar gracioso de um trolha tocado a ácido. Quando tinha estado no seu auge, ali uns poucos anos antes dos 30, poderia ter tido todas as gajas que quisesse. Resmas de gajas. Até lhe ligavam de madrugada e ofereciam-se para lhe pagar quartos para ele lhes ir lá dar o cházinho... Mas ele dizia sempre que não, que tinha namorada.

Do alto da serra, fora do carro, via um manto de nuvens redondas e brancas a cobrir o céu por cima do vale. "Parecem carneirinhos, fónix. Lá em Lisboa não têm disto." Tira uma foto para pôr no Facebook. De caminho vê que a mulher com quem andava agora já lhe tinha enviado várias mensagens, em tom cada vez mais chateado. Começava com "bom dia, babe <3" e ao fim de umas horas sem resposta já ia em "não valho nada para ti, pois não?!".

"Olha esta agora, querem ver... Está a chegar o fim de semana está na altura de se passar. Espera aí que eu também esperei 9 meses p'ra nascer! Ainda por cima casada. Vai dormir com o teu marido, pá, não me chateies!" Isto pensava ele, não escrevia. Apesar de tudo considerava-se um senhor e a gaja era um bocado chata, mas batia umas boas punhet@s e tinha um andar meio requebrado quando estava de vestido. "Estás toda gostosa" dizia-lhe ele.

Hora do almoço e o nosso herói atraca num restaurante. Avia a sopa, limpa a travessa com jardineira de vitela e batata frita, acaba com uma tigelada e ainda vai para o café. Liga à gaja. "Babe, coméquiééé? Fogo, comi que nem um boi! Eu sou assim, baby: um bon vivant! Ehehehe".

Antes de pegar no carro fuma mais um cigarro, o quarto ou quinto do dia. A gaja preocupava-se com ele e dava-lhe nas orelhas por fumar. O tabaco fazia a voz dele meio rouca meio suave, uma voz que lhe acordava partes do corpo que ela tinha pensado, antes, que já não iam sentir grande coisa. Na verdade tinha muito medo do cancro: tinha perdido pessoas para o cigarro e não o queria perder também. Mas ele dizia-lhe que era rijo, um lusitano, descendente directo de Viriato!

Quando estavam juntos era bom, muito bom. Tudo fluía com a intensidade de um filme porno, mas com a classe de um filme francês, daqueles que só os intelectuais gostam de ver. Depois ia cada um para seu lado e começava o drama. Ela queria atenção, ele dizia que era complicado. "Não consigo estar sempre a escrever como tu. Fico cansado de estar muito tempo a olhar para o telemóvel. E no computador então tenho de estar numa posição marada para escrever, não dá." Ela sabia que o cansaço não lhe atingia o olhos quando andava a ver boazonas no Instagram. Mas, porra, gostava dele. Só era pena que fosse tão bronco.

"I'm a maaaaan! I'm a full grown man!"

Ele orgulhava-se de sempre ter sido fiel às mulheres que lhe passaram na vida. "Nunca pus os cornos a nenhuma", começava ele antes de desfiar a lista de queixas relativas às mulheres portuguesas. "A mulher só quer é praia! Não há nenhuma que queira vir para aqui! Ar puro, água limpas, boa qualidade de vida... mas a mulher só quer é praia! Não há nenhuma que tenha vontade nem visão para ajudar a construir um país!". Isto era o princípio de um solilóquio de 20 minutos de queixas.

Não compreendia que não houvesse nenhuma mulher que o quisesse - mas querer a sério. Uma relação de suor com suor, sangue com sangue, como ele dizia. Tinha a gaja, casada, mas essa nunca iria deixar a vida que tinha para ficar com ele. "Eu? Se fosse mulher eu não me escapava! Se estivéssemos na altura dos homens das cavernas eu tinha algumas 4 ou 5 mulheres só para mim! Mas não! As mulheres não têm visão. Até ficam com homens que as maltratam, são até capazes de as matar, mas elas não se vão embora!".

De computador aberto em cima da mesa da sala, deitado no sofá a ver televisão, o nosso herói adormece. Sozinho, pelo 15° inverno consecutivo.
*Sugere-se ouvir o tema *Mannish boy" de Muddy Waters para estabelecer a devida ambiência. 

C. S. Lima 

07 novembro, 2019

Lascívia

O apimentar da circunstância;
Enaltece a chama da vida;
O prazer jamais será uma manigância;
Sentir e amar procurarão sempre uma saída...

Socialmente somos segregados;
Se a luxúria abraçarmos;
Porém não se sintam culpados;
No deleite se esculpem os agrados...

O sexo é tabu;
Paradoxo sem noção;
Já para não falar do nu;
Olhos tapados não caem em perdição...

Assim governo e religião;
Manipulam as suas marionetas;
Sedentas de conforto e pão;
Engolem todas as tretas...

Mas e quando o corpo exasperar?
Não se lhe pode negar uma pulsão;
O desejo jamais pode eternamente aguardar;
Por um rebuscado guião...

A história evidenciou os resilientes;
Que através da arte efervescente;
Vislumbraram propósitos magnificentes;
Desassombrando assim a lascívia fervilhante…

Leandro Emanuel Pereira

05 novembro, 2019

Isolamento Temporário

O sofrimento é o sentimento mais solitário que existe, disse ela triste e só. Ninguém vê a nossa dor, ninguém avalia ao grau de miséria interna que sentimos, que vivemos, que experienciamos. Dói e pronto. É só nosso. Pessoal e intransmissível. Empático, sim; visível, sim; solitário, definitivamente. A dor não se partilha como se partilha uma piada ou uma gargalhada, uma notícia de última hora ou resultado eleitorais. A dor faz o próximo fugir, ausentar-se, arranjar desculpas para não ter de estar perto nem de sentir o que faz doer. O que dói dentro de nós nasce cá dentro, vive cá dentro e nunca morre cá dentro. Permanece em nós e torna-se parte de nós, sem que os outros sintam, vejam ou queiram saber. Morre quando morremos.

Verdes Anos

02 novembro, 2019

Antilha

 blue and white-petaled flowers

Um último encontro, uma despedida.
Quem me dera que fosse de outra forma.
Tu vais para onde o alquimista te diz.
Eu vou para onde o vento me leva.

Tão perto estamos, tão longe nos sentimos.

Com lágrimas de alegria celebramos companhia.
Com lágrimas de amor celebramos devoção.
Com lágrimas de ódio celebramos família.
Com lágrimas de tristeza celebramos inevitabilidade.
Com lágrimas nostálgicas celebramos saudade.

Lágrimas verdes, lágrimas azuis.
Lágrimas.