22 novembro, 2019

Route 66, Arizona, costa alentejana, meados de 80



Arroz Doce, só arranjas cenas destas, fogo. Ela estava lixada e eu também. Mandava vir, mas os olhos azuis completavam o céu e eu aparava os golpes todos. Deixa-te disso, estás a gastar o oxigénio, disse euFuzilou-me com o olhar. Pensei, para rebolar uma hora no pinhal, tudo bem, mas cinco minutos a caminhar e já está em brasa. Ela disse não penses que por pararmos cinco minutos no pinhal te safas, a culpa é tua de andarmos aqui à uma hora a caminhar. Era muito vocal. 

Íamos para uma festa de música numa praia alentejana e o ferry para a Troia fora-se antes do nosso tempo. Depois foi a vez do vai-vem para a festa que só vinha e ia uma vez. Eu disse logo, vamos à boleia, e ali estávamos de dedo esticado a caminho do mais para sul. O plano era sempre o mesmo. Se alguém parasse eu fingia que não existia e ela depois chamava-me e o pessoal do carro ficava entalado, ou levava dois no lugar de um ou bazava. Devia ser por eu não usar gravata. Naquela tarde ninguém passava, quer dizer, passou um Ford Cortina amarelo com um casal de velhos, deviam ter mais de 35. A mulher olhou para nós e pensou, deve andar fugido de Pinheiro da Cruz e ela é refém ou cúmplice. Continuaram. Depois passou uma carrinha cheia de porcos. Parou e fizemos de conta que não a víamos. Estamos lixados, pensei eu e ela disse estamos lixados, devíamos ter ido com os porcos. Ela era mais vocal.

Bem, começámos a ouvir um zumbido, depois um ronco e depois um trovão e começou tudo a tremer. Uma nuvem de pó vinha na nossa direcção. Grande azar chiça, tínhamos que levar com uma manada de búfalos. A ela passou-lhe a zanga e agarrou-se a mim. Uma sombra passou, ouvimos um chiar de travões e pneus. Parada mais a frente estava uma bomba. O condutor pôs a mão de fora a chamar-nos.

People, o carro era uma loucura, ocupava a estrada toda, era vermelho, com uma lista preta a subir do capot até à bagageira, jantes do aço a brilhar por baixo do pó, todo artilhado. Roncava, ele ia carregando no acelerador, impaciente. Querem boleia? perguntou e eu pensei sim claro, caraças, andávamos aqui a apanhar sol, e disse sim senhor. Ao fundo daquele capot que nunca mais acabava estava um cavalo prateado. Era um Mustang daqueles dos filmes americanos, estávamos na Route 66. O man era ruivo, forrado a couro tal era o bronze que comia as sardas. Tinha um rabo de cavalo e os dedos cheios de anéis e uma camisola de alças com o Rato Mickey. 

O tecto estava forrado de fotos de raparigas. Achei aquilo estranho, mas não era nada de pornos, só sorrisos e pernas bonitas, e dava bom ambiente. Uma foto em branco tinha uma faca do mato espetada que pendia do tecto. Devia ser para estar sempre à mão. No banco atrás estava uma  espingarda mesmo ao lado da garina. O gajo pouco falava e ela perguntou és caçador? e ele respondeu caçador, que merd@ é essa? e ela disse tens aqui uma espingarda, e ele respondeu que espingarda fod@-se? Percebi logo tudo, era um serial killer, mas parecia estar em negação. Do mal o menos. Fiquei a pensar que era o primeiro que conhecia pessoalmente. Fixe. Carregou no acelerador, o carro parecia um leão. Levantou a embraiagem e o carro saltou e o mundo passou a correr ao nosso lado. 

De repente disse segura aqui o volante e largou-o e eu todo deitado, quase sem ver a estrada, fiz o que pude a 160 à hora. Olhei para trás, ela estava branca, mas riu-se, era só adrenalina, Route 66 e tal. O pintas enrolou uma e disse acende aí. Aquilo começou a rodar e passados dois minutos estava tudo estalado a rir e ele carregou no acelerador e a faca do tecto caiu e ficou espetada na cabeceira do meu assento.

Tudo isto durou cinco minutos, o Mustang voava. Mais uma travagem acelerada e saltámos do carro. Sigam por aquele caminho, a praia é sempre em frente, disse o gajo. Um trovão e o carro já nem se via, só se sentia a roncar do escape e a deslocação do ar. A miúda disse o gajo tem pancada nos cornos e eu pensei mas o produto era bom e ela disse mas o produto era bom. Ela era mais vocal. Um cenóide do caraças, ninguém ia acreditar.

De repente estávamos no deserto do Arizona. Eram só cactos e mato. Um sinal cheio de chumbo apontava a praia. Um calor do caraças. A boca estava seca e já não ríamos. Cada passo era um esforço. Ninguém passava. Andávamos, não havia sombra e eu pensei já bebia uma fresquinha, e ela disse bebia agora uma fresquinha. Já referi, ela era mais vocal e acho que lia os meus pensamentos, fogo, tinha que me por a pau. Por outro lado era fixe, nem precisava de falar.

À beira do caminho estava uma casa, uma miragem. Uma tábua dizia "vinho". Ficámos a olhar um para o outro. Vamos lá Arroz Doce, ela era decidida. Bati à porta e apareceu um homem de barba negra de dois dias e de boina, o que me pôs de pé atrás. Devia já ser paranóia. Vão para a festa? perguntou. Vamos, disse eu, mas estamos com uma sede, já vimos a pé desde Troia. Eu falava pouco, mas gostava de exagerar. Entrem para provar do vinho, disse ele. Entrámos. A sala era fresca com naperons e bibelots por todo o lado, devia haver por ali uma mão de mulher. Encostada à parede uma espingarda. O homem trouxe uma garrafa de branco e começou a despejar nos copos. 

Ela era curiosa e perguntou a sua mulher não está? O homem respondeu bem falta me fazia, as últimas morreram dumas cáries. Eu olhava com ar de estronço e ia dando na vinhaça e ela não parava, é caçador? Caçador, porra, eu não a matei, não mato nada, e franziu mais o sobrolho e ela continuava, tem ali uma bela espingarda e ele, qual espingarda fod@-se? Boa, outro assassino em série em negação. No mesmo dia apanhámos dois, devia ser um recorde. A miúda riu-se, já estávamos todos toscos, queria lá saber e eu continuava a olhar feito estronço. O homem começou a contar histórias de cabritos e da cor da uva, mas tínhamos que ir andando que se fazia tarde e ele deu uma garrafa a cada um da zurrapa do quintal. A praia é já ali, disse. Fomos a beber pelo caminho, ríamos e uivava-mos e seguíamos aos saltinhos. Vimos o acampamento e o azul do mar atrás das dunas.

Que cena marada, em vinte quilómetros tínhamos passado pela Route 66, o deserto do Arizona, tínhamos conhecido e sobrevivido a dois assassinos em série e eu estava com tanta, tanta sede, que só me apetecia beber a água do mar.

3 comentários:

  1. Anónimo17:07

    Uma doideira com D grande esta Venham mais aventuras do Arroz Doce!

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    1. Do inesperado ouvi um rugido que me gelou as veias. Era ele que procurava. As pernas tremeram e no nariz senti o seu odor animal. Sorrateiro aproximei-me.
      Estava deitado e pareceu não dar por mim, mas de repente, num salto gigante, ficou a dois metros da minha cara e rugiu de novo. Tudo abanou. Senti que era o meu último dia e apertei-me para não urinar as calças. Mas não avançou mais, alguma coisa lhe travava o caminho. Ainda tive tempo para reparar que era belo, possante e elegante...
      Ela perguntou, gostaste do tigre? e eu respondi, ó mãe quero um gelado.
      Ora bem!

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  2. Anónimo21:58

    E depois?.. Conta mais Arroz Doce!

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