30 dezembro, 2019

Ano Novo, vida nova OK

Olha o estouro, será que já estão a abrir o champanhe? Era falso alarme, ainda faltavam uns minutos para o final do ano.  O estouro foi um mistério logo esquecido. A sala parecia uma carga de índios, o andar fora alugado só para aquilo e era longe, nos Algarves. A festa começara na véspera da véspera e àquela hora já estavam todos avariados.  O Doc levara uma aparelhagem portátil e a música era pesada,  durante o dia rock e à noite electrónica e pimba a partir a cabeça nossa e dos vizinhos.

Faltavam poucos minutos para abraçar o Ano Novo. A meio da sala estava uma mesa larga cheia de doces, bolos e alguns croquetes que tinham sobrado e garrafas de bebida a meio ou vazias, até uma de água ainda por abrir. Os únicos copos limpos eram os cálices do champanhe, embora um já tivesse batom, vai-se lá saber porquê.

A Maria fazia montinhos de passas. Também era boa nos cocktails, fizera uns mojitos que tinham tudo, limão, açúcar, o indispensável hortelã e rum do amarelo que era o melhor. Só faltara a gasosa e aquilo felizmente caiu no molhado porque o pessoal tinha acabado a janta, mas deu um andamento do caraças para aguentar a noite.

O Ginjas dançava abraçado a uma garrafa de brandy e os outros saltavam e gritavam e empurravam-se, e iam à mesa petiscar e beber quase esquecidos do que estavam à espera.

Não havia televisão, cada um estava a contar o tempo pelos seus relógios. Tão bem o contaram que se festejou a passagem do ano três vezes, com duas contagens decrescentes, a segunda por teima de bêbados, porque parece que há sempre relógios mais certos que os outros e a terceira porque ao longe se ouviu uma grande algazarra. Os abraços, beijinhos e votos repetiam-se e depois foi o pessoal todo para a varanda bater com tachos e o que havia. De repente lembraram-se do champanhe e voltaram a correr.

O Quico agarrava a garrafa e a Maria distribuía as passas e os cálices. Vá lá abre essa cena, começaram a gritar. Com pressa rasgou a cobertura prateada, depois desapertou o arame  e muito lentamente, com os dois polegares foi empurrando a rolha para fora do gargalo para o champanhe não transbordar, mas a meio, quando sentiu a rolha a fugir, abanou aquilo e ouviu-se o estouro e o líquido jorrou alegremente. Aproximaram-se todos de cálice estendido e ao mesmo tempo ouviu-se uma explosão. O candeeiro do tecto, um candelabro de fancaria tristemente baleado pela rolha, caíra em cima da mesa e escavacara tudo. Safaram-se as bebidas que estavam numa ponta e uma travessa de arroz doce que estava na outra ponta.

O Quico riu-se e fez-se o brinde, viva o Ano Novo.

23 dezembro, 2019

Tesouro de Natal

As crianças procuravam o tesouro. Ele era maiorzito e ela mais novita. Todos os natais era o mesmo desassossego. Um deles lembrava-se, vamos ver dos presentes, e  remexiam toda a casa, até os cantos mais escuros que passavam despercebidos ou criavam medos o resto do ano. 
Demoravam-se num armário que havia no quarto dos pais, por cima do roupeiro da parede. Ele ia buscar um banco à cozinha e equilibrava-se e esticava-se e remexia, remexia e tentava ver bem lá no fundo, mas dizia não está aqui nada. Ela não acreditava e queria ver também. O irmão segurava-a, mas a miúda não chegava lá e zangava-se quando ele a puxava para baixo.
Abriam o roupeiro e viam debaixo da cama. Nada. Cada vez mais desconsolados, começavam a pensar que naquele ano não havia presentes, mas não desistiam e espiolhavam tudo, por cima dos móveis, por baixo das camas, abriam e fechavam gavetas e até arriscavam o frio da varanda para ir espreitar debaixo do tanque.  Acabavam por desistir, mas ela dizia não viste bem no armário, e ele, vi,vi, mas ia fazer uma segunda tentativa com ela à espreita. Nada.
Olhavam com desconfiança os pais, mas portavam-se muito bem e de vez em quando perguntavam à mãe, lembras-te dos presentes do acion man e da boneca e ela dizia já disse ao Menino Jesus e ele não se esquece, diz que traz, mas primeiro vai ver se vocês se portaram bem. E aí eles ficavam com medo pois nenhuma criança se porta sempre bem e eles bem o sabiam.
A pinheiro de Natal não tinha luzinhas, tinha umas fitas grinaldas brilhantes que pareciam uns cachecóis que se enrolavam nas ramagens. Pendurava-se também umas bolas às cores e completava-se o arranjo com um anjinho de braços abertos a meio e uma estrela em equilíbrio no topo. Era a Estrela de Natal.
Numa mesinha abria-se um presépio de figuras de barro. A Nossa Senhora tinha um manto azul e o José, barbas e um cajado. O Menino Jesus deitado numa cama de palhinhas tinha um pano à cintura. Eram protegidos por um telheiro onde cabiam ainda o burro e a vaca da tradição. Fazia-se um caminho entre o musgo para os Três Reis Magos, imponentes nos seus camelos, e uns pastores com um cão e um rebanho de ovelhas branquinhas ajoelhavam-se em adoração ao menino. O presépio era bem bonito, mas ao longo dos anos algumas figuras iam-se partindo. Os irmãos gostavam de brincar com as peças e de vez em quando perdia-se uma ovelha e um dia quebraram a cabeça e o cajado do José, mas o pai colou e ficou bem na mesma. 
Depois era a noite de Natal. Eles olhavam para o sítio das prendas que era junto do presépio e continuava vazio. Ao jantar era um alvoroço, não queriam comer e a pergunta repetia-se quando vem o Menino Jesus, e os pais bem tentavam acalmá-los e diziam que o Menino Jesus nunca se esquecia, mas tinha que se esperar pela manhã. Os petizes não se queriam deitar, nem adormecer e só o faziam quando os olhos já não podiam de sono. Acordavam cedo. Era Dia de Natal. O primeiro ia chamar o outro e corriam a acordar os pais e perguntavam numa algazarra, o Menino Jesus sempre veio, eu não ouvi nada, eu também não, vamos ver? A mãe e o pai depois de um beijinho diziam vão lá ver vá.
E depois de tanta dúvida e tanta inquietação lá estavam os embrulhos coloridos a rodear o presépio e eles, excitados e felizes, não se calavam até abrir tudo e começar a brincar com os brinquedos novos, naquele dia há tanto tempo desejado.

20 dezembro, 2019

Verde, código, verde

Boa tarde, precisa de sacos? Tem cartão da loja? Cupões de desconto?  Vai pagar com cartão? Já pode, verde, código, verde. Quer fatura com contribuinte? É o que está associado ao cartão? Não quer levar a nossa revista? Ou uma caixinha de bombons? Faz coleção das vinhetas para os copos? Já tem a caderneta  para os colar? Isto hoje está um inferno, ainda nem almocei e estou cá com uma dor de cabeça!
Boa tarde, sim, tenho cartão da loja, não tenho talões de desconto e vou pagar com cartão. A fatura é com o contribuinte que está associado ao cartão. Não, não quero a vossa revista, tenho muitas em casa e nem lhes toco. Bonbons também não quero, já estou servida, obrigada. Faço coleção das vinhetas sim, já estou a acabar a caderneta. De facto sim, está um inferno quero ver se não volto cá tão cedo. Eu também ainda não almocei, mas nem fome tenho. Se quiser um comprimido, tenho aqui.
Obrigada, vou aceitar.
Aqui está, fique com dois.
Muito obrigada, Feliz Natal e Boas Festas.
Igualmente para si e as melhoras!

Agora e sempre importa não descurarmos o contacto humano e a comunicação. Seja de que forma for!
 Boas festas!

11 dezembro, 2019

A preguiça



A preguiça… a mácula do não faz nenhum. Fica para amanhã ou depois. Agora não que ainda há muito tempo. Inércia é a palavra de ordem. Procrastinação… Ó delícia! Ó prazer! 

Nada disso! Há que ser sério porque o trabalho dignifica o Homem e quem quer comer, que transpire. E mais, quem não trabalha, torna-se apático e pode dar em maluco e isso é uma carga de trabalhos!! Trabalho! Trabalho! Trabalho! O antídoto para a preguiça. E isso já não é de hoje, essa ideia já vem da Grécia antiga. Vendo todos aqueles gregos gordos deitados de volta das mesas dos intermináveis banquetes, Esopo teve uma ideia (quase) genial ao escrever A cigarra e a formiga, como que a querer dizer “ Não mexam esses rabos gordos daí não, que depois choram a quererem ser uns Apolos” mas também “ Deixem-se estar aí a enfardar seus alarves, quando não houver mais nada que comer, toquem a lira e encham a barriga de doces melodias.” Mas adiantou alguma coisa? Nada! Sim, porque os gregos eram sábios, filósofos de primeira e sempre quiseram ser visionários e estar à frente (PRO) do amanhã (CRASTINUS). Por isso, quem somos nós para pôr em causa esta gente e querer transformar todos em laboriosas formigas?

Cigarra, continuar a cantar e a tocar a tua lira porque o trabalho mais duro do mundo é não fazer nada!

Imagem: A preguiça, Hieronymus Bosch

Início dos Tempos: Isso não, é pecado
Pecado mortal 1/7: O orgulho
Pecado mortal 2/7: A avareza
Pecado mortal 3/7: A inveja
Pecado mortal 4/7: A ira

09 dezembro, 2019

Compras de Natal. Corta e siga o filme


O Natal vinha aí acelerado, ou era véspera ou era um dia antes da véspera, para a história tanto faz. Tínhamos que comprar aquelas coisas que faltava comprar, no nosso caso tudo ou quase, só tínhamos uns ferrero em casa, mas eram do ano passado, já deviam estar escangalhados e estavam esquecidos dentro de uma almofada não sei porquê, e cheirava-me a chocolate todas as noites e eu pensava que era a minha anja da guarda e um dia enganei-me na almofada e acordei com uma dor de pescoço do caraças.

Bem, faltava-nos sabonetes, porque ir bem cheiroso para as festas de família era básico e então Natal caraças fogo, e chouriças e queijos e vinhaça, que já havia quem levasse pasteis de bacalhau, bolo rei e arroz doce, e eram as prendas, um carro e uma boneca para os filhos dos primos, uns putos ranhosos  e chatos que limpavam as mãos aos sofás e vinham para as minhas calças e segurava-os com a mão na testa e eles depois corriam pela casa a fazer de camião dos bombeiros. Aturava-os porque a mãe sorria e era uma alegria na festa, não vou dizer porquê, imaginem, é Natal, imaginem à vontade, que se lixe. Por mim tinha levado uns xanax aos putos, mas ainda não fabricavam. 

Havia ainda só um ou dois hipermercados e era um de Alfragide, acho que era Pão de Açucar que é um nome parvo, imaginem um pão de açúcar, mais valia chamar arrufada ou bola de berlim, mas assim se calhar tinham que pagar direitos de patentes e assim não, mas não deixa de ser uma porcaria de nome, por isso foi-se. Continente e Jumbo ainda lá vai, mas Pingo Doce é o máximo, faz-me lembrar doces de ovos e a mercearia do Sr. Manuel que nesta época só vendia bacalhau ás postas e Vinho do Porto martelado, mas do bom.

Toda a gente ia ali e era meio dia. Andámos uma hora para estacionar, ao sol. Imaginem sol no Natal, o Menino Jesus estava contra nós. Também só vi uma vez neve nesta terra e foi uns mijinhos que aquilo não era nada, uma lamazita, preferi ver uma vez um granizo, que aquilo sim, até dava para fazer gelados daqueles d'água, mas também andava tudo constipado e aquilo derreteu e ninguém aproveitou nada.

Não havia carrinhos à entrada, só gente e mais gente e estivemos à espera que alguém largasse um e depois foi tipo uma corrida, a parceira disse vai Arroz Doce, apanha. E fui e apanhei e depois fugi, porque veio um matulão atrás de mim que devia saber karaté, mas tropeçou nela e lixou-se e eu entretanto já tinha passado pelo meio da multidão enfurecida.

Atenção, aquilo ainda não era hiper ou essas porras das grandezas, era só super, isto era uma tristeza de terra banhada pelo sol e praia, quem me dera já o verão, e estava cheio de gente e de carrinhos, mas lá íamos andando com muita calma a empurrar o nosso. Virámos uma quina e entrámos no corredor central e pensámos vai-se andando, ela vai buscar as tretas e comida e eu a bebida e fica sempre um no carro, aquelas coisas de casais coordenados que parece que têm antenas como as abelhinhas e os zangões. O corredor estava apinhado e fomos e ao fim de dez metros parámos o carrinho e toda a gente parou. Tudo parado, tudo travado.

Bolas era um super-engarrafamento. Só vi um igual na última noite da Expo, que ninguém punha os pés no chão, o pessoal era uma mole humana que se mexia por inércia. Estas palavras aprendi nas legendas duns desenhos animados que passavam quando era puto, com um velho de barbas brancas, que explicava o mundo e não sei se aquilo era francês, mas que sabiam muita coisa sabiam, agora são os ingleses e os americas que sabem, só não sabem encontrar a saída para o buraco em que se meteram e vêm para aqui beber jolas e vinho tinto para esquecer.

Ninguém andava. Tudo parvo a controlar os outros ou a assobiar. Um maluco começou com com licença, com licença e ficou tudo a olhar para ele como se fosse maluco, então aquilo era carro encostado a carro e pessoas já dentro dos carros e uns abanavam uma bandeira de Portugal, como se estivessem perdidos no Oceano e nós ali à meia hora a olhar um para o outro e eu disse isto está uma merda não anda e ela disse vamos bazar vimos amanhã e eu disse que sim e deixámos o carrinho lá no meio e tinha no bolso uma campainha de bicicleta e lá conseguimos saltar por cima das caixas e sair e estava a chover. É claro que os putos levaram com os chocolates e agora já tão grandes, façam-se à vida.

Escrevi isto para que vos sirva de exemplo para não deixarem as coisas para a última, que eu aprendi com a idade e já combinei comprar as coisas no dia 22, que até dá jeito porque é domingo, e vou ao Colombo pela tardinha, com calma e faço as minhas compras. Quem vos avisa amigo é.

05 dezembro, 2019

Asas de amor

Pousa delicada na flor o seu beijo
Enche-se o jardim de cores e desejo

Esvoaça pura e inocente
Passa pela vida rapidamente

Efemeridade da natureza, renovação
Asas coloridas, voo de paixão

Flutua secretamente no ar
Leque de seda, pó fino de enfeitiçar

Pousa delicada o seu beijo na flor
Mensageira de morte… mensageira de amor.

03 dezembro, 2019

O tempo corre passo a passo

São quinze. Há uma rapariga que sabe tudo, há alguns que sabem muito, há outros que sabem mais ou menos que o suficiente e há um rapaz que não sabe nada. Esperam à porta pelo exame que começa às nove em ponto. 

A rapariga está aborrecida e impaciente, o tempo move-se lentamente, a porta da sala não abre e está cansada de rever os apontamentos. O rapaz olha o relógio minuto a minuto, para ele o tempo voa, preferia que a porta não se abrisse. Faz uma pergunta idiota à rapariga  e ela que o conhece bem, mais para passar o tempo do que para outra coisa, responde ao infeliz que não fixa nada da resposta. Afinal o tempo para saber já passou e se um o aproveitou para estudar o outro não o aproveitou, não interessa porquê.

É tão estranho este passar do tempo. Quando não se sente, parece que nada se fez, mas não é verdade, ficam os indícios. Por outro lado, quando se alonga no relógio, poucos indícios deixa .

Chega um a correr, afinal são dezasseis. É dos que sabe quase tudo. Se ali já estivesse, estaria impaciente com o vagar do tempo, mas perdera o autocarro. O seu tempo acelerara, mas o do autocarro mantivera-se estável entre os semáforos e o trânsito matinal e parou na paragem à hora que lhe era destinada. O jovem corre. Cheio de adrenalina e ansiedade, fica desiludido por a porta ainda estar fechada. Vicissitudes.

Entram dez minutos antes do exame. Secretária sim secretária não está um envelope com a prova. A professora diz calmamente, vão-se sentando nas mesas onde estão os envelopes... só os podem abrir quando disser... têm todos caneta? É uma professora simpática. Dentro do envelope têm duas folhas para rascunho... escrevam logo o vosso nome no cabeçalho para depois não se esquecerem. 

A rapariga senta-se na fila da frente. Pousa a caneta na mesa do seu lado direito e aguarda. Está concentrada, mas o tempo teima vagaroso, quer passar o saber à folha. No coração é diferente, tudo está acelerado, não acalma num dia destes.

O rapaz foge para a fila de trás. Para ele também o tempo não passa agora, quer livrar-se da angústia de não saber. Revira os bolsos até encontrar a caneta que começa a roer. Também o seu coração está oprimido.

A campainha toca e o relógio aponta nove horas. A professora diz podem começar e abrem-se os envelopes. Tira um livro de notas da mala. Sabe bem que tem que ter atenção à sala, por causa dos pedidos de apoio e dos eventuais copianços. Mas é experiente no multitasking que lhe permite duplicar ou triplicar o tempo, quando este se arrasta ou urge.

A rapariga passa os olhos pelo teste que são três folhas, a última só uma página. Lê e relê as perguntas porque sabe que é importante e confiante ataca a primeira, como se o tempo fosse uma constante. De vez em quando, este dá um pequeno salto em frente quando lhe surge alguma dúvida. Mas é só isso.

O rapaz vê uma tabela na 3ª página e começa por aí. As perguntas de sim ou não são rápidas e sabe que alguma há-se acertar, mas logo se apercebe que a ignorância é grande e a partir daí o tempo não tem dó, adianta-se a si próprio. Salta de pergunta em pergunta e pouco escreve e o que escreve é o que lhe passa pela cabeça. Pensa que lá pelo meio há-de acertar alguma coisa. De minuto a minuto olha o relógio da parede. Acaba o teste numa hora e nem o relê com medo do que fez. Fica angustiado à espera que passe o resto do tempo, que agora o castiga com lentidão.

A rapariga acorda do transe quando a professora anuncia que falta meia hora para o final. Esqueceu-se da sua regra número um, controlar o tempo. Preenche rapidamente a matriz, que deixara para o fim. Está consciente que poderá perder aí alguns pontos, mas é obrigatório reler o que escreveu e tem quinze minutos para o fazer. O tempo agora não estica, passa a correr e só revê metade das páginas.

O relógio na parede anuncia a campainha que toca e a professora recolhe os testes, bendizendo o fim daquela hora e meia quase perdida. Dois ou três deles não tinham escrito os cabeçalhos, há sempre quem viva num tempo à parte.

Ela sai insegura do que fez e vai confirmar com os colegas as respostas. Se ao menos tivesse tido mais tempo.

Ele sai seguro do que não fez. Se ao menos tivesse tido mais tempo... mas já entrou noutra escala, sai a correr, os amigos estão à espera para irem à praia .

30 novembro, 2019

Elegia do medo

O medo vai subindo a escada degrau a degrau. Lento. Tem tempo.
Aumentam os batimentos cardíacos. Acelera a respiração. Suam as mãos.
Do estado de alerta caminha para o sobressalto, experimenta o temor, a ansiedade. Conhece-se o sabor do terror. Amargo de boca.
A folha branca na ânsia de ser desflorada permanece intacta. Nada se move em cima dela.
A febre vai subindo, toma conta do corpo.
As sílabas cativas no arrepio gélido da espinha.
O terror que as palavras se tornem gastas… obsoletas… enjauladas.
O medo que a língua seja travada, a voz rouca… calada, as mãos sem vida.
Falta de ar…Sufoco. Pânico.
O esquecimento...a ruptura.
Receio de não saber construir enquanto outros manejam o verbo com mestria e eloquência.
...
Nem o ar fresco da noite desperta os sentidos. Tudo se desvanece sob o manto negro de pontos luminosos.
O grito insistente de uma gaivota parece anunciar uma tempestade.
As mãos tremem.
O medo continua a sua odisseia.Lento.
Tem tempo.

os poemas adormeceram no desassossego da idade.

fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais
curto e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me
as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas...e
nada escrevo.
o regresso à escrita terminou. a vida toda fodid@ – e
a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar.
a dor de todas as ruas vazias.
Al Berto, Horto de incêndio

28 novembro, 2019

A ira

Intenso e descontrolado sentimento de raiva, a ira é sem dúvida o pecado do conflito. Forte desejo de exteriorizar a insatisfação, a mágoa ou outras contrariedades é a mácula da erupção explosiva. Para os mais contidos e diplomatas uma erupção palavrosa mais ou menos pejorativa, para as gentes mais impulsivas, de pavio curto e com o diabo no corpo, o verbo poderá vir acompanhado de algumas manifestações de confronto físico, vulgo porrada. Quem nunca experimentou o sentimento da explosão que atire a primeira pedra (pensando bem, é melhor não para não dar mais intensidade à coisa e não incitar à violência!). Afinal, quem não sente não é filho de boa gente!
Por isso, em pleno século XXI, era da velocidade e do stress esmagador, não guardemos nada cá dentro e libertemos as más energias porque como diz o ditado “Depois da tempestade, vem a bonança”. Sem dúvida, uma excelente terapia para as novas doenças do novo milénio.

Imagem: La colère divine, Rembrandt

Início dos Tempos: Isso não, é pecado
Pecado mortal 1/7: O orgulho
Pecado mortal 2/7: A avareza
Pecado mortal 3/7: A inveja

25 novembro, 2019

Coisas de gente que escreve...

Embora haja sempre tanto para dizer,nem sempre a Musa se digna a brindar-nos com a sua visita.Ainda assim,é importante dar voz às palavras mesmo sendo pelas mãos de outros...

Esqueço-me de tudo, por isso escrevo, longe do terror ao sismo inesperado das estrelas, escrevo com a certeza de que tudo o que escrevo se apagará do papel no momento da minha morte (…) definha-se texto a texto, e nunca se consegue escrever o livro desejado. Morre-se com uma overdose de palavras, e nunca se escreve a não ser que se esteja viciado. morre-se, quando já não é necessário escrever seja o que for, mas o vício de escrever é ainda tão forte que o facto de já não escrever nos mantém vivos.(…)

Al Berto, O Medo

22 novembro, 2019

Route 66, Arizona, costa alentejana, meados de 80



Arroz Doce, só arranjas cenas destas, fogo. Ela estava lixada e eu também. Mandava vir, mas os olhos azuis completavam o céu e eu aparava os golpes todos. Deixa-te disso, estás a gastar o oxigénio, disse euFuzilou-me com o olhar. Pensei, para rebolar uma hora no pinhal, tudo bem, mas cinco minutos a caminhar e já está em brasa. Ela disse não penses que por pararmos cinco minutos no pinhal te safas, a culpa é tua de andarmos aqui à uma hora a caminhar. Era muito vocal. 

Íamos para uma festa de música numa praia alentejana e o ferry para a Troia fora-se antes do nosso tempo. Depois foi a vez do vai-vem para a festa que só vinha e ia uma vez. Eu disse logo, vamos à boleia, e ali estávamos de dedo esticado a caminho do mais para sul. O plano era sempre o mesmo. Se alguém parasse eu fingia que não existia e ela depois chamava-me e o pessoal do carro ficava entalado, ou levava dois no lugar de um ou bazava. Devia ser por eu não usar gravata. Naquela tarde ninguém passava, quer dizer, passou um Ford Cortina amarelo com um casal de velhos, deviam ter mais de 35. A mulher olhou para nós e pensou, deve andar fugido de Pinheiro da Cruz e ela é refém ou cúmplice. Continuaram. Depois passou uma carrinha cheia de porcos. Parou e fizemos de conta que não a víamos. Estamos lixados, pensei eu e ela disse estamos lixados, devíamos ter ido com os porcos. Ela era mais vocal.

Bem, começámos a ouvir um zumbido, depois um ronco e depois um trovão e começou tudo a tremer. Uma nuvem de pó vinha na nossa direcção. Grande azar chiça, tínhamos que levar com uma manada de búfalos. A ela passou-lhe a zanga e agarrou-se a mim. Uma sombra passou, ouvimos um chiar de travões e pneus. Parada mais a frente estava uma bomba. O condutor pôs a mão de fora a chamar-nos.

People, o carro era uma loucura, ocupava a estrada toda, era vermelho, com uma lista preta a subir do capot até à bagageira, jantes do aço a brilhar por baixo do pó, todo artilhado. Roncava, ele ia carregando no acelerador, impaciente. Querem boleia? perguntou e eu pensei sim claro, caraças, andávamos aqui a apanhar sol, e disse sim senhor. Ao fundo daquele capot que nunca mais acabava estava um cavalo prateado. Era um Mustang daqueles dos filmes americanos, estávamos na Route 66. O man era ruivo, forrado a couro tal era o bronze que comia as sardas. Tinha um rabo de cavalo e os dedos cheios de anéis e uma camisola de alças com o Rato Mickey. 

O tecto estava forrado de fotos de raparigas. Achei aquilo estranho, mas não era nada de pornos, só sorrisos e pernas bonitas, e dava bom ambiente. Uma foto em branco tinha uma faca do mato espetada que pendia do tecto. Devia ser para estar sempre à mão. No banco atrás estava uma  espingarda mesmo ao lado da garina. O gajo pouco falava e ela perguntou és caçador? e ele respondeu caçador, que merd@ é essa? e ela disse tens aqui uma espingarda, e ele respondeu que espingarda fod@-se? Percebi logo tudo, era um serial killer, mas parecia estar em negação. Do mal o menos. Fiquei a pensar que era o primeiro que conhecia pessoalmente. Fixe. Carregou no acelerador, o carro parecia um leão. Levantou a embraiagem e o carro saltou e o mundo passou a correr ao nosso lado. 

De repente disse segura aqui o volante e largou-o e eu todo deitado, quase sem ver a estrada, fiz o que pude a 160 à hora. Olhei para trás, ela estava branca, mas riu-se, era só adrenalina, Route 66 e tal. O pintas enrolou uma e disse acende aí. Aquilo começou a rodar e passados dois minutos estava tudo estalado a rir e ele carregou no acelerador e a faca do tecto caiu e ficou espetada na cabeceira do meu assento.

Tudo isto durou cinco minutos, o Mustang voava. Mais uma travagem acelerada e saltámos do carro. Sigam por aquele caminho, a praia é sempre em frente, disse o gajo. Um trovão e o carro já nem se via, só se sentia a roncar do escape e a deslocação do ar. A miúda disse o gajo tem pancada nos cornos e eu pensei mas o produto era bom e ela disse mas o produto era bom. Ela era mais vocal. Um cenóide do caraças, ninguém ia acreditar.

De repente estávamos no deserto do Arizona. Eram só cactos e mato. Um sinal cheio de chumbo apontava a praia. Um calor do caraças. A boca estava seca e já não ríamos. Cada passo era um esforço. Ninguém passava. Andávamos, não havia sombra e eu pensei já bebia uma fresquinha, e ela disse bebia agora uma fresquinha. Já referi, ela era mais vocal e acho que lia os meus pensamentos, fogo, tinha que me por a pau. Por outro lado era fixe, nem precisava de falar.

À beira do caminho estava uma casa, uma miragem. Uma tábua dizia "vinho". Ficámos a olhar um para o outro. Vamos lá Arroz Doce, ela era decidida. Bati à porta e apareceu um homem de barba negra de dois dias e de boina, o que me pôs de pé atrás. Devia já ser paranóia. Vão para a festa? perguntou. Vamos, disse eu, mas estamos com uma sede, já vimos a pé desde Troia. Eu falava pouco, mas gostava de exagerar. Entrem para provar do vinho, disse ele. Entrámos. A sala era fresca com naperons e bibelots por todo o lado, devia haver por ali uma mão de mulher. Encostada à parede uma espingarda. O homem trouxe uma garrafa de branco e começou a despejar nos copos. 

Ela era curiosa e perguntou a sua mulher não está? O homem respondeu bem falta me fazia, as últimas morreram dumas cáries. Eu olhava com ar de estronço e ia dando na vinhaça e ela não parava, é caçador? Caçador, porra, eu não a matei, não mato nada, e franziu mais o sobrolho e ela continuava, tem ali uma bela espingarda e ele, qual espingarda fod@-se? Boa, outro assassino em série em negação. No mesmo dia apanhámos dois, devia ser um recorde. A miúda riu-se, já estávamos todos toscos, queria lá saber e eu continuava a olhar feito estronço. O homem começou a contar histórias de cabritos e da cor da uva, mas tínhamos que ir andando que se fazia tarde e ele deu uma garrafa a cada um da zurrapa do quintal. A praia é já ali, disse. Fomos a beber pelo caminho, ríamos e uivava-mos e seguíamos aos saltinhos. Vimos o acampamento e o azul do mar atrás das dunas.

Que cena marada, em vinte quilómetros tínhamos passado pela Route 66, o deserto do Arizona, tínhamos conhecido e sobrevivido a dois assassinos em série e eu estava com tanta, tanta sede, que só me apetecia beber a água do mar.

20 novembro, 2019

As botas Reais de Alcobaça


Recorro de novo ao livro Fotografias de Lisboa, de Alberto Pimentel, e aos episódios insólitos e curiosos que nele nos apresenta. Este é um trecho do texto "Os burgaus", ou seja, os calhaus:

"Ignorava decerto o leitor ser costume que, indo os reis de Portugal em visitação ao mosteiro de Alcobaça, lhes dessem os monges, reconhecidos à concessão do padroado real, um par de botas ou sapatos à escolha dos sereníssemos hóspedes.

D. Afonso III reconheceu, porém, que era pesado o encargo, e absolveu da obrigação os monges pela carta seguinte:

Saibam todos os que virem a presente carta, que eu, Afonso, rei de Portugal e do Algarve, prometo, ordeno e concedo que doravante não pedirei nem exigirei ao mosteiro de Alcobaça botas, balegões, nem sapatos, como até aqui exigi; (…) e tenha a maldição de Deus e a minha aquele que dizer o contrário.

Dada em Lisboa, por ordem do rei, aos 3 de Novembro de 1314."

Vou contextualizar valendo-me das palavras de Frei Manuel dos Santos, cronista-mor do reino no Séc XVIII. D. Afonso Henriques, muito bem alcunhado de "O Conquistador", combateu os mouros em Santarém e apesar da grande inferioridade numérica conquistou a cidade. Tendo apelado ao apoio divino, como era costume na época, o Rei fizera um voto que se a vitória lhe sorrisse mandaria erguer um mosteiro no vale do Bom Jesus do Monte, e assim o fez, o atual Mosteiro de Alcobaça. Sempre próximos dos corações reais, os monges e abades do mosteiro foram beneficiados ao longo dos tempos por "grandes mercês em vida e grandes esmolas por morte".

Parece que os servos do mosteiro que iam a Lisboa em afazeres contavam aos monges que as ruas da cidade eram uma funesta combinação de lamas, calhaus e porcarias. Condoeram-se as almas religiosas das reais e gentis pessoas, que acreditavam andar muitas vezes descalços nas ruas da cidade para agradar ao povo e impuseram-se um foro. Sempre que o Rei fosse a Alcobaça seria presenteado com um par de sapatos ou botas à sua escolha. Dizia-se que era aí que se fazia o melhor calçado e de vez em quando lá ia o Rei visitar o mosteiro e trazer sapatos novos para si, à borla, e para a família também, a pagar ou não, isso não diz Frei Manuel.

Com o fim do foro o calçado de Alcobaça nunca mais foi o mesmo, mas conta o cronista que o neto do Rei, o ainda príncipe Afonso, que viria a ser o IV, andava pela cidade a sonhar com a sapataria do convento. O mito consolidou-se e passados uns bons séculos Dom João IV de visita a Alcobaça e provavelmente em tom de reinação real, lembrou a história dos sapatos aos frades que fizeram orelhas moucas. O Nobre Rei de lá saiu calçado como chegou. 

Portugal sempre foi famoso pelos seus sapatos, de bom preço e qualidade. Eu não me queixo, sempre me calcei por cá e embora nunca fosse a Alcobaça considero que tenho sido bem servido. Também já ouvi dizer, certamente por más línguas, ter havido quem em passeio por Itália se calçasse, país bem mais conceituado na indústria da moda, e só depois reparasse com dó na carteira na etiqueta Made in Portugal. 




17 novembro, 2019

A inércia


Sabe a pouco.  

Um reflexo mecânico do quotidiano, fruto das raízes que nos nutrem e quais nutrimos. Fungo parasita que nos transmite um bem-estar inquieto, um sedativo eterno que nos paralisa, propósito final de crescer e criar mais raízes, até por fim enjaular-nos em grades de conformidade. 
Aparentemente antíteses, a inércia e o movimento são irmãos perdidos, por vezes a primeira usa a segunda como máscara, um truque mestre que engana até as mais engenhosas vítimas. 
Por mais que rompamos a inércia com movimento original, eventualmente o mesmo se torna inércia, batalhando uma cruzada infinita contra a sua força.  

Será essa batalha em vão? Quantos mais confortos terrestres terão de morrer nela? Quantos mais sacrifícios ao altar de uma luta interna?   
Alguns desistem da luta, sucumbindo ao seu forte charme. Que delicioso charme... Será esta a solução?  

Não será, pois a nossa natureza nos guia contra ela, se sucumbirmos um sentimento inadequação se instalaenquanto uma força do fundo espera por gritar a vida, enfrentar os nossos maiores confortos e assim conquistar a inércia. Mas sabemos que depois ela voltará. E voltará. E voltará. 
É essa a luta, um inimigo imortal que apenas adormece com a sua derrota, vampiro imundo que nos assombra milenarmente.  

Mas sabe a muito!

A sua derrota é a melhor vitória, um sabor de ambrósia delicada que nos dedicou olimpo, uma invencibilidade temporária nos faz querer mais, e quiçá, a esperança de um dia cravar uma estaca de madeira no coração do monstro que nos assombra, dissolvendo o seu corpo em energia etérea...  
Uma ilusão. Apenas uma ilusão. Ah! Mas que bela ilusão! 

15 novembro, 2019

Ambivalência

Desenha-me um significado que não entendo este amor retratado à flor da pele e do ódio.
Acicata mais ainda esta tormenta avassaladora de emoções ambíguas que tenho vindo a experimentar, sentimentos contraditórios que me vêm consumindo, mas que fazem querer manter esta paixão que desafia a própria morte.
Amo esse teu lado negro e destrutivo, essa tua beleza agreste e selvagem alimentada por chuvas rigorosas, ventos fortes e tempestades. Inflama-me este sofrer.
Cheira a rosas vermelhas no jardim onde me perco nos labirintos retirados de contos fantásticos. O perfume inebriante das flores e o sopro forte nas árvores lembram-me o movimento sensual dos corpos na volúpia dos lençóis.
Aparências que se deformam e se transformam, gritos e sombras a que se sucedem cores musicais.
Estados de exaltação. Cenários oníricos. Metamorfoses.
Vertigem de loucura… Palpitações de pura emoção.
Alucinações... Desvarios... Delírios...
Tudo culpa dos vapores do álcool e dos paraísos artificiais.
Silêncio… Leveza… Tranquilidade…
Na verdade, anseio apenas afagar-te o cabelo com a ponta dos dedos, acariciar-te o rosto com as costas da mão, puxar-te para mim para que enlaçados possamos juntos ouvir o murmúrio das ondas e saborear o aroma fresco da maresia.

Guarda-me no teu abraço.

13 novembro, 2019

O ego, ai o ego!


O ego, ai o ego!

Não sei quem chama ao certo.
Sei que alguém me chama assim.
Quem chama está tão perto
que até faz parte de mim!

Sinto em mim esse alguém
e desse alguém não despego.
Sinto a vida dele, tão bem...
Aqui bem dentro: o meu ego!

Loucura d' egoísmo... dirão!
Não é loucura, é consciente.
Não é egoísmo, é pura razão,
que me torna tão diferente!

Sem o ego, somos tão iguais...
Com o ego, somos diferentes!
Sem o ego, ficamos banais...
Com o ego, ficamos luzentes!

Que atire a pedra bem primeiro
quem não sente um ego em si!
Um bom ego jamais é solteiro
de quem o abraça em frenesi!

Paulo J. Pinto
6/11/2019