17 abril, 2020

Era um vez um contador de histórias...

Raios partam este bicho que nunca mais desaparece e leva todos à sua frente! Ontem, levou o olhar doce de um dos maiores contadores de histórias. Luís Sepúlveda foi-se embora, mas deixou-nos as suas fábulas mágicas.  Assim, continuam a acompanhar-nos nesta demorada jornada de isolamento o caracol que descobriu a importância da lentidão, a gaivota desejosa de abrir as asas depois do gato a ter  com muito carinho, ensinado a voar, assim como o velho que, à espera de melhores dias, vai pacientemente lendo romances de amor e ainda o gato e o rato que por força das circunstâncias se tornaram amigos. E como estes tantos outros ficarão connosco para que possamos sempre relembrar aquele cujo sonho de criança era ter acesso às estantes gigantes das bibliotecas recheadas de livros. Tive o prazer de me sentar com ele uns minutos enquanto me deixava uma mensagem numa das suas obras e foi precisamente do poder do sonho na escrita que me falou durante o pouco tempo que me foi possível estar na sua presença.
A minha homenagem sentida a um contador de histórias, daqueles muito bons, que nos toca e nos conduz à reflexão através da magia das fábulas.

Nota: É feita alusão neste texto a algumas das obras do autor, a saber:

História do caracol que descobriu a importância da lentidão.
História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar.
O Velho que lia romances de amor.
História de um gato e de um rato que se tornaram amigos.
O Poder dos Sonhos.

14 abril, 2020

Amor virtual

Não podendo ser de outra forma, resta-nos o amor virtual.
Beijos, abraços e afetos tornaram-se reféns de visores digitais onde cada um de nós dá o seu melhor para que do outro lado chegue o calor adiado.
Não poder tocar em quem amamos parece absurdo, mas é real.
Se em tempos atrás o ecrã não era muito amigo do amor, comprometendo-o por vezes até, é hoje um precioso aliado que nos permite perceber que a pessoa amada está do outro lado e que estamos juntos apesar da distância que nos separa. É de facto tudo mais asséptico, distante, mas é o que temos e com essa nova realidade reinventam-se afetos, consolidam-se amores, matam-se saudades.
O tempo que nos faltava é agora em demasia, nem sabemos o que fazer com ele. Apenas queremos que acelere , que nos dê uma resposta célere, que nos devolva a vida.
Temos tempo, muito tempo para pensar naqueles que amamos e nas coisas que vamos dizer quando o reencontro for possível, nos abraços e beijos em espera, no afeto muitas vezes contido.
Imaginamos reencontros perfeitos e idílicos ainda sabendo que com a ânsia  e a pressa do reencontro se concretizarão em transparência e espontaneidade, sem grandes preocupações mas com muita vontade de colmatar os dias perdidos na névoa da incerteza, de retomar as histórias de amor que ficaram suspensas em tempos de sombra.
Ontem sonhávamos. Hoje estamos atordoados. Todos ansiamos pelo fim do torpor e  pela plenitude da vida que há de voltar um dia.
Até lá resta-nos flutuar na quietude dos dias e esperar pelo tumulto da vida que nos há de arrebatar.

Fica a sugestão da audição de Into my arms de Nick Cave não necessariamente durante a leitura, mas quando o leitor assim o entender.


04 abril, 2020

Liberdade Libertina - Lisboa, inícios de 90

Talvez se lembrem dos Ena Pá 2000, o conjunto do Manuel João Vieira (MJV), perseverante pré candidato à Presidência como o Obama foi até que um dia ganhou, por isso nunca se sabe. Sob um fundo pop/rock/tanguista e outros, cantavam-se histórias viçosas e viciosas, assim para o avacalhanço. Lembro-me anos mais tarde de aparecerem uns gajos a tocar umas músicas a imitar e de ouvir o MJV dizer que gostava muito, que pareciam os Ena Pá menos as c@r@lh@d@s e está tudo dito.

O Puto apareceu não sei donde para dar a notícia que os Ena Pá vão tocar em Algés e é à borliú. Fomos a correr. Era na altura do álbum És muita linda, que foi um êxito estrondoso na nossa terra, vários discos de platina. Estávamos lá em peso. 

A voz portentosa do MJV iniciou as hostilidades. Aplaudimos as bailarinas enapás, sempre ultra elegantes e sexis e o melhor guitarrista do mundo, Phil Mendrix, que se juntara à festa. O bom do João não cantou o hit single  "Rap Alentejano". Depois de remexer todos os bolsos e os soutiens das bailarinas disse que não encontrava o papel e não se lembrava a letra e então siga a festa.

O engraçado é que era uma noite de campanha eleitoral, os políticos às vezes distraíam-se, pensavam que os Ena Pá eram pimba e depois lixavam-se, como quando numa festa da cidade os contrataram para um concerto no Pavilhão Carlos Lopes e eles começaram o show com o inevitável “masturbação a bem da nação”. Na verdade o responsável político andava cansado, coitado, e saiu de fininho. Sei da história porque uma garina me contou e também porque vi. Faço sempre o contraditório, não vou em politiquices.

O concerto decorria na boa, sempre a subir, como o lixo techno dos anos 90. O público esganiçava a brejeirice dos clássicos "Menina Azul" e a "Titi fez-me um Tété", sem dúvida um leque ecléctico de experiências musicais. Curtia-se bem, mas aquilo era Algés, que agora parece uma feira de viadutos e naquela altura era umas terras de hortas reviradas e que só se atravessavam de galochas, e também morava gente à volta.

O MJV começou a repetir eles andam aí, eles andam aí. Não percebíamos, mas o concerto continuava e o pessoal berrava e pulava. Chegou a meia noite e com ela o primeiro aviso, era hora de parar dizia a PSP destacada. Mas o circo seguiu e multiplicavam-se os eles andam aí. Mais meia hora e vieram falar com a banda, que não podia ser assim e tal, um foi falar com o MJV que acho que não ouviu, continuou a cantar e a repetir eles andam aí

Bem, a banda saiu passado um quarto de hora e ele ficou, eles andam aí, eles andam aí e cantava e tocava. O pessoal estava passado, loucura total. Parecia o Elvis a cantar em Las Vegas.

E então cortaram a eletricidade. No palco via-se só a sombra do MJV e o people resistente assobiou os bófias que queriam estragar a party que tinham apagado luz e som. E o bom do João, com a sua voz trovejante e ironia sardónica, entre uns eles andam aí, foi buscar uma viola por ali perdida e continuou a cantar e a tocar para o pessoal, tipo unplugged, ou seja desligado.

Os PSP entrarem em palco outra vez e com jeitos mansos, afinal havia política por ali, entre algum palavreado, que se resumia da parte do MJV a eles andam aí, confiscaram a viola por entre assobios vigorosos do pessoal quase amotinado. 

Pois o rapaz continuou ainda uns dez minutos a cantar, embora há já algum tempo falhasse mais notas que acertava. Acho que esgotou o reportório. Por fim, baixou se à beira do palco, repetiu eles andam aí e foi-se, Deviam ser umas duas da matina.

Depois de pensar muito naquilo que ali aconteceu continuo sem saber o que pensar daquilo que ali aconteceu. Vi muitos vocalistas a cantar sobre transgressão e anarquia, mas o MJV naquele concerto mostrou-me não sei bem o quê, apenas senti-me menos impotente, mais confiante, livre e independente. 

Obrigado Manuel João Vieira, concerto para a vida.

01 abril, 2020

As flores II

Havia já uns dias que o pesado portão de ferro do jardim se encontrava fechado. Uma questão de força maior ao que diziam. Por entre as grades de metal, espreitava o silêncio sepulcral da natureza em sossego. Tentara subir o portão, mas era alto demais, não havia como saltar lá para dentro. Respondendo ao apelo da sua teimosia, insistira várias vezes, mas apenas conseguira uns valentes arranhões nas pernas e algum sangue à mistura. Sentia na pele o chamamento das violetas e dos lírios do vale que continuavam a crescer na sua ausência. Num desespero descontrolado, dava a volta ao jardim só para poder espreitar as flores, encostava a cabeça às grades para ao longe sentir-lhes a vida por entre as mãos. Amava tanto as flores quanto amava o seu homem. Fora naquele jardim que o vira pela primeira vez num tempo em que os dias eram mais longos, num entardecer de brisa e de sol. Gostara dos seus lábios finos que ansiava tocar de novo, assim como precisava desesperadamente de acariciar as suas flores.Em tempos,entrara no jardim, roubara as flores e fugira para as amar num lugar seguro. Em tempos, os seus lábios tocaram os do homem amado num beijo também ele roubado com sabor a violetas e lírios do vale. Na ausência do toque suave das flores e da pele, revia imagens suas para acalmar a dor. Sentia-as com prazer e apertava-as junto ao coração, desejando as flores e o homem amado que presos, cada um no seu jardim, quais espinhos ameaçadores, a feriam de saudade.

29 março, 2020

Acto de Deus e um vírus

Deus vaga entre a matéria negra, as velas do destino inchadas pelo vento estrelar, mais rápido que a luz que criou do choque do branco com o negro.

Deus forte, obtuso, rígido no Seu desígnio, predestinado, que não move um milímetro na decisão da rota que para Si traçou.

Deus numa viagem infinita, que percorre o Seu Universo de ponta a ponta, só porque sim, porque é Seu e depois volta para se aconchegar no seu berço e nos olhar com curiosidade.

Deus sem fim à vista, omnipotente quando nos comanda  como marionetas ou brinca e nos deixa nadar para longe das águas calmas e em braçadas suadas sair das águas de tempestade .

Deus que na Sua suprema vontade nos põe à prova e dizemos porque nos trazes tanta dor e sem se justificar, porque é Deus, abre-nos os olhos e vemos que de entre nós se levantam alguns, são heróis que se superam no combate e generosos com a sua vida travam batalhas e batalhas pelos outros, até vencer a vontade de Deus, que entretanto sempre soube a resposta à nossa pergunta: porque confio em vós. 

E assim se passam os dias sem história que não existem, mas acontecem, que são os dias em que Deus navega à velocidade de anos luz pelo seu Universo.

Foto: Gripe espanhola 1919/ NSW State Archives / Tara Majoor

26 março, 2020

Miasma




O crepúsculo aproxima-se!
Fechai as janelas e portas e portão.
Deitai-vos cedo,
Escrevei na escuridão.

Cobri-vos de banha de cobra,
Segui a palavra dos anciãos,
Pois Deus decerto nos castiga
Neste crepúsculo sem clarão.

Ficai dentro de casa,
No lar e solo materno.
Afastai o mau olhado
Da terra do crepúsculo eterno.

Sentis isolados, desesperados e sós
Pois o sol ainda demora.
O miasma paira sobre nós
Mas irá em boa-hora.

22 março, 2020

O meu coração lateja


O meu coração lateja,
Bomba sangue desenfreado,
A aorta potente,
As veias inchadas,
As artérias impacientes. 

Rios de sangue correm e enchem recantos escondidos, jorrando entre aurículas e ventrículos.
O meu coração bate e o eco é melodia. 

Anseio por luzes sempre acesas e portas sempre abertas. 
Diz-me e enfrento dias de brasa e chuva sem dó, 
Trouxeste-me do vácuo branco,
Não me deixes ficar baço,
quando em ti renasci brilhante.

20 março, 2020

As flores

Roubava as flores do jardim, violetas e lírios-do-vale e fugia a correr. Roubava-lhes também o aroma e, assim, castigava as flores apoderando-se da sua essência.Quase conseguia ouvir o seu pranto e ver as cores a desmaiarem de desgosto. Colhia-as com muito cuidado e logo que encontrava um lugar seguro, depositava-as no colo. Demorava-se a olhá-las e acariciava-as suavemente com a ponta dos dedos. Depois, pegava em cada uma delas e absorvia-as longamente até que o seu perfume penetrasse nas narinas e tomasse conta do seu ser. Terminado aquele ritual olfativo e em estado de extâse, estrafegava as flores violentamente num abraço e assim deixava-se ficar deitada no musgo fresco do jardim até que o sono a levasse, apertando as cores e os aromas roubados das flores que tanto amava.

17 março, 2020

Universus Infinitus


No ponto azul do Big Bang da Criação, enroscados num sofá, passo-te os dedos no pescoço e sei que gostas porque te encostas mais a mim. Relaxados e felizes, naquele momento o nosso amor é universal. 

Penso, estarão os físicos teóricos certos? Existirão universos paralelos infinitos, cheios de repetições e contradições? Pois se neste parti, então num outro fiquei e porque não, ele há tanto por saber. Mas acrescento em abstracto, se neles, universos, se moldam acções, porque não então emoções? Exemplifico:

Noutro sítio o Big Bang foi descoberta e no seu ponto azul somos adolescentes a quem passou o tempo do só dizer, e ao cruzar um páteo rebenta um primeiro beijo e damos as mãos. Nervosos e felizes, naquele momento o nosso amor é universal. 

Mais ao lado, noutro ponto azul explodido de um Big Bang sedutor, envolvidos nos nossos sucos cavalgamos as coxas em sincronia e os teus peitos eriçados pedem-me sempre mais fundo, mais fundo e talvez seja este o universo total pois juntos somos um só. Amantes doidos naquele momento o nosso amor é universal. 

Mesmo ao centro, num Big Bang que não terminou ainda, num ponto azul sempre em mudança, sorrimos porque o nosso filho nasceu e a ansiedade deu lugar à felicidade e o nosso amor abriu-se a uma vida a três. Naquele momento em que todas as cabeças se tocam e dois de nós choramos de felicidade e o terceiro porque existe, o nosso amor é universal. 

Tao difícil é o infinito que para quem nele pensa parece ter fim. 

E nos confins de uma nebulosa tão fria que faz duvidar do seu Big Bang, num ponto cinzento à sua sombra, sinto as tuas lágrimas a tombar na minha campa e naquele momento o teu amor condói o universo e morto, choro em sintonia.

10 março, 2020

3ª Guerra Metal (Lisboa/1980)


Portugal era a última flatulência do rock. Alvin Lee, John Mayal e outros vinham cá ao cu de judas, já velhotes, ganhar uns cobres e até um dia veio a tótó da Joan Baez que obrigou o pavilhão a sentar no chão senão não dava o concerto e estávamos todos toscos, hippie é esta merda? E eu levantei-me e perguntei se podia ir à casa de banho e ela what? what? e a coisa ficou por ali porque me puxaram para baixo. Vá gozar com os portugas para o caraças.

Os heavy metal também vinham. Vi os White Snake, o Ted Nugent e até as Girlschool. Não fazia o meu tipo, mas papávamos tudo o que aparecia e depois também havia aqueles solos hipnóticos de bateria que duravam 30 minutos e que agora já não fazem porque não sabem. Aquilo é que era bater nas peles. O resto do show eram uns gajos de cabeleiras de caracóis, spandex de lantejoulas e foguetes a saltar do meio das pernas. 

Naquele dia a banda era qualquer coisa hard-rock inglês, os U.F.O.. Nunca tinha ouvido nem nunca mais ouvi falar deles. Foi no Pavilhão de Alvalade. 

Caía a noite e a confusão ateava. O pavilhão era pequeno como o raio e a produção como costume tinha vendido bilhetes a mais. A fila para entrar dava até ao Campo Grande, mas mesmo assim havia muito pessoal a rondar sem bilhete, incluindo nós, tal era a fome de música ao vivo. Agora a putalhada passa o Verão nos festivais e nem agradece. Vão é trabalhar prás minas de sal, tristeza.

O ar anunciava tumultos múltiplos e em redor preparava-se a 3ª guerra metal. Os seguranças estavam a ver que não era só fumaça e fecharam as portas assim sem avisar e ficou muito pessoal cá fora, inclusive gajos com bilhete. Era vê-los a deitar-se ao portão, pontapés ou cabeçada, valia tudo. Alguém gritou olha a bófia e fugimos todos para o mato, que naquele tempo Alvalade era um estádio no meio das hortas. Mas qual bófia qual quê, os seguranças que se safassem. Se o Sporting adivinhasse tinha pagado os gratificados. 

Já se ouvia o som dos U.F.O. a pesar lá dentro, que raio de nome para uma banda, e nós cá fora a espumar pela boca até que um reparou que uma das paredes da bancada do pavilhão encostava à do campo de treino. Ao cimo, onde as duas bancadas se seguravam na parede havia umas janelas. Tinham tirado os vidros e posto uns contraplacados a tapar. Pior a emenda que o soneto.

E prontos, alguém se lembrou vamos rebentar aquela merda, e eu não percebi bem, mas pereceu-me boa a ideia. Subimos pela bancada de fora acima e começámos a trabalhar na serradura. Puxa daqui, empurra dali, pimba, taruz, e aquilo começou a ceder e de repente éramos uns trinta a saltar para a bancada de dentro, como uns ratos enfeitiçados pelo solo de bateria que já corria.

Descemos aos tropeções pelo meio de quem estava e eu, que não vou dizer o meu nome porque não sei se esta merda já prescreveu, fiz uma finta de râguebi a um dos seguranças que bufava por ali acima para agarrar o pessoal. Em dez segundos tinha-me perdido no meio da plateia, enquanto a guerra continuava na bancada.

O solo foi razoável, ainda fiquei uns quinze minutos a abanar a carola. Os da banda viram que aquilo era terra de índios, tocaram, fizeram por agradar com uns encores o que não era difícil com a miséria a que estávamos habituados, receberam os 100 contos do contrato e bazaram naquela mesma noite. 

Para não me esquecer daquele sucedido, fiz um bilhete em cartolina, onde escrevi U.F.O. o sítio, e em letras garrafais BORLA.

Eram tempos em que se confundia vandalismo com anarquia e desde que não houvesse sangue, e raramente havia, estava-se bem.

02 março, 2020

Azul



Madrugada serena e fria
Bússola desnorteada
Espuma do mar vadia
Estrela do mar roubada
Azul…

Fresca brisa, água gelada
Voo de gaivotas tardio
Búzio de voz calada
Deita-se o sol no rio
Azul…

De todas as cores do mundo
És tristeza, melancolia
Do espectro o mais profundo
Sossego e calmaria
Azul…

Na imensidão do céu
Nas palavras de um escrito
Em tudo aquilo que é meu
Azul… o infinito.

28 fevereiro, 2020

Aurora

 

Sabes pai?
Estás a ver aquele vento colorido lá em cima?

É verde, azul e lilás?
Faz "wooosh" e "fuuum", mas como está a tocar nas estrelas não o conseguimos ouvir.

Sabes porque é que só aparece de vez em quando?

Quando uma pessoa especial nasce no mundo a natureza quer iluminar o escuro do céu com a luz que essa pessoa traz dentro.

Quero que sejas um urso polar e eu a tua cria, para podermos passar o tempo a olhar para o céu. E quero que o céu se ilumine connosco.

23 fevereiro, 2020

Há ouro no Tejo


Digo que o Tejo é rico em ouro, mas antevejo  algumas reticências sendo nós portugueses deveras crentes e desconfiados.

Diz-nos frei Nicolau de Oliveira, no Livro das Grandezas de Lisboa, datado de 1620:

 “(...) A segunda excelência [do Tejo] é de suas areias de ouro, de que, como acima fica dito, é mais abundante que abundante que todos os outros, como se vê em Plínio, livro terceiro, capítulo quarto, e não há que espantar que ainda hoje vemos resplandecer em suas areias muitas arestas e folhinhas de ouro, e tão fino, e tão puro que, querendo el-rei D. João o terceiro lhe fizessem um ceptro, mandou que lhe buscassem o ouro nas areias do Tejo, do qual se fez um, que os reis têm agora na mão, quando os coroam, ou fazem Cortes, e se guarda em o tesouro de Lisboa."

Plínio, o Jovem, filho de Plínio, o Velho, ficou para a história devido às mais de 700 epístolas que enviou ao Imperador Trajano  (séculos I e II da nossa era), curiosamente nascido na província romana da Hispânia Bética, cuja fronteira ladeava o nosso Guadiana.  As cartas, posteriormente agrupadas em livros, relatavam o quotidiano das gentes de Império e nelas se fez menção, pela primeira vez, ao emergente Cristianismo. 

Ora acreditamos que a riqueza de ouro no Tejo terá despertado a curiosidade do Imperador. Também despertou a dos Mouros que o exploraram, mas tal era a sua abundância que no século XVI, El-Rei D. João III, o Piedoso, fez moldar das folhas puras das minas de Almada, topónimo que significa "a mina, mineral ou metal", um ceptro real.

Situadas algures nas antigas terras da Adiça, Fonte da Telha, só fecharam as portas no século XIX,  não por falta do metal precioso, mas por falta de financiamento para uma escavação mais intensiva. O ouro anda por lá.

Não nado no Tejo nem por ele navego, mas nos dias de Sol, talvez a bordo de um cacilheiro, irei estar atento ao brilhar do ouro, num rio que sempre pensei ser de prata.

19 fevereiro, 2020

Assalto ao Pedro Nunes - Lisboa, anos 80


Aviso: Esta é uma história amoral, mas tudo aconteceu na mais perfeita inocência de uma juventude irrequieta. 

Estávamos no snack do Migas a combinar os planos para a noite, porque as noites eram sempre poucas e tínhamos que as aproveitar todas e também porque era sábado e estávamos a bombar adrenalina. 

O Puto lembrou-se "hoje há festa no Pedro Nunes" e eu disse "é só betinhos" . O pessoal do Pedro Nunes tinha a fama de betoso e era. No meu liceu também eram todos, menos eu, mas como não faziam festas a questão não se punha nesses termos. "Arroz Doce, bute aí, deixa-te de cenas, eu sei uma entrada secreta" e eu disse "então vamos" e fomos.

O Pedro Nunes ficava ali ao pé do Jardim da Estrela onde ainda fica e claro os gajos da associação à porta tiraram-nos a pinta de proto-punques-alucinados e cortaram-nos a entrada. O Puto começou logo ali a dar estrilho, "somos rapazes honrados, não nos vamos fazer às miúdas", o que por acaso era mentira, porque era sempre essa a intenção. Começaram a sair mais grunhos lá de dentro, uma segunda linha de defesa/ataque e pelo sim pelo não fomos andando.

É claro que eu disse logo, "então como é que é a treta da entrada secreta?" E ele respondeu "vamos ver dessa merda, disseram-me que é numa janela lá para trás", "então não sabes onde é", "não" e eu "Ok". O pior que podia acontecer era aparecerem a PSP, a GNR e os Bombeiros, mas que se lixe, as betinhas tinham um apelo interessante. 

Demos a volta ao edifício a olhar para cima e nada e só à terceira vez reparámos numa janela ao nível do chão. Devia dar para a cave, tinha luz acesa e ouvia-se a música. Mas não se via nada lá para dentro.

"Fogo, deve ser aqui" disse o Puto e eu concordei. Com um empurrão abrimos uma das bandas da janela, mas a outra estava trancada e só por ali não dava para passar. Era um sítio estranho, via-se um corredor com várias portas. Estavam lá duas garinas bem curtidas e o Puto fez o choradinho para abrirem o outro lado da janela e nesta altura já lá estávamos os dois com a cabeça entalada e elas riram-se, o que é sempre meio caminho andado. Uma estava receosa, mas a outra avançou, abriu o raio da outra banda da janela e o Puto despencou por ali abaixo e eu caí-lhe nos costados. "Foda-se Arroz Doce", e eu "cala-te meu, olha as garinas". 

Só então conseguimos ver o outro lado, que estava meio tapado por uma parede pequenita. Tinha espelhos e lavatórios e nesse mesmo instante saiu uma rapariga de uma das portas e começou aos berros "Ó socorro, estão aqui dois pervertidos". Pervertidos nós, que tínhamos acabado de perder a virgindade, enfim. Mas ela continuava, "Ó da guarda!" As garinas desapareceram e nós saímos e vimos cá fora na parede um boneco de uma menina de saias sentada num penico. Caraças tínhamos entrado pela casa de banho das miúdas. 

Mas já estávamos no meio da pista a tocar guitarras a fingir e a abanar a carola e depois a dançar ska, que era um pé para a frente e outro para atrás, tipo os Specials. Entretanto os namorados ajuramentados das betas não estavam a achar piada e foram chamar os gajos da porta e no meio de uma confusão que só nos deixou mal vistos, eu ainda gritei "esta música é uma merda", e o Puto queria avançar, tinha vindo d'África e tinha a mania que era guerreiro. Tivemos sorte em não levar um enxerto, mas demos com os beiços na calçada. 

As duas garinas da janela estavam cá fora encostadas ao gradeamento a fumar um cigarro e parece que à nossa espera. Eram mesmo baris, fomos fumar uma ao jardim e acabámos a noite no Jamaica a curtir bués.

Ele há males que vêm por bem.

17 fevereiro, 2020

Morfeu

person wearing hat carrying bag while standing in front of door

O que será viver uma vida de sonho?
Será o tornar desejos realidade e fazê-los parte da nossa vida?
Será o descobrir que quando crescemos os sonhos mudam? Descobrir que temos tudo o que precisamos?

Ou será paralisia? Ver vultos e sombras, dúvidas que se aproximam no escuro no momento que nos sentimos mais seguros?
Um pesadelo acordado? O que acontece quando não conseguimos voltar a sonhar?

Vivemos em duas fases na vida:
Quando adormecemos para sonhar, e quando sonhamos em adormecer.

14 fevereiro, 2020

A que sabem os teus lábios?


Na primavera os frutos encarnam nos botões dos ramos em flor. O renascer do tempo e os primeiros calores tentam poetas e amantes. O sol brilha entre as folhas e sentado à tua espera na esplanada junto ao lago aguardo que me perturbes e por dentro bato assustado quando entrevejo os teus lábios brilhantes. 

Vem o verão e os frutos empurram as pétalas,  crescem das flores fecundas e o doce derrete-se nas polpas. A terra quente e o mar dócil saúdam os corpos acobreados que flutuam na areia. O teu perfume estonteia-me ao fluir-te na pele e a imagem viva dos teus lábios, que não provei, é a ponta insana do universo.

Chega o outono, colhem-se os frutos a explodir de carnudos e solta-se a folha. Confundido com todo este estonteamento de estação pós estação preciso de provar que resta querer no mundo, mas sucumbo cansado ao desejo negado de sentir a que sabem os teus lábios. 

Cai o inverno e os frutos são memórias que sobrevivem em  potes e as árvores ramos despojados. O frio invadiu os teus lábios desmaiados e estranho como ignoram o calor dos meus, quando todos sabem que por químicas desconhecidas dois lábios gelados ardem em contacto.

Encosto-me às raízes junto ao lago e qual pensador de Rodin busco o porquê das coisas e nada faz sentido enquanto não souber a que sabem os teus lábios molhados.

11 fevereiro, 2020

As conversas parvas


Gosto de conversas parvas entre amigos. São as melhores do mundo.
Não, não são aquelas de circunstância que se têm para preencher silêncios, remendar desconfortos ou para não ficarmos mal após séculos de ausência.
Essas não, não interessam. As conversas parvas são aquelas em que não nos preocupamos se é preciso termos juízo ou não, se temos idade para dizer isto ou para dizer aquilo.
São aquelas em que trocamos a idade por sorrisos, caretas e gargalhadas a explodir. São trocas de palavras confortáveis sem preocupação com a entoação, a sintaxe, a semântica e o politicamente correto.
São fáceis, prazerosas, sabem a fim de tarde, a sol, a ar fresco. São bolinhas de sabão leves e coloridas, aviões e barquinhos de papel.
São balões a subir pelo céu azul.
Sabem a imperial fresca, algodão doce, caramelos de fruta. Dentro da sua leveza e simplicidade são as mais sérias do mundo.
Pensando agora com seriedade, porque se diz que são parvas se não verdade não são? Não têm nada de desadequado ou de inconveniente, de tonto ou de desinteressante.
São felizes, simplesmente.
São festivais de interrogações . O que é que foi? O que é que foi o quê? Eu é que pergunto o que é que foi? Porque me perguntas isso? Sei lá, estás a olhar para mim… assim. Assim como? Estou a olhar para ti normalmente, porquê não posso? Podes, claro que podes. Também estás a olhar para mim. Pois estou. E então porque fazes essa pergunta? Não sei. (E seguem-se gargalhadas terapêuticas.)
São repetições de rábulas humorísticas , canções partilhadas a ver quem imita melhor o original (ou quem pior se aproxima do melhor!). São desenhos em guardanapos de papel, bonecada em toalhas de restaurante .
São brincadeiras de quem não tem vergonha, de quem não teme o cabelo em desalinho, a roupa amassada, o ridículo.

Há conversas parvas que nos salvam o dia e às vezes até a vida. É verdade é.

A conversa mais séria que tive foi uma dessas… parvas. Acabou num abraço e salvou-me a vida.

09 fevereiro, 2020

A excitação das freiras


O miúdo andava no infantário das freiras. Ele gostava e por afinidade eu gostava também, embora às vezes me lembrasse do trauma da catequese, sim, porque eu fiz a catequese das freiras, mas foi naqueles anos em que os meninos não gostam das meninas e era eu e mais onze e elas estavam sempre a cochichar e com risinhos. Foi um inferno, depois passou. Adiante...

Andavam há meses a ensaiar para uma festa, acho que era de Natal. O miúdo vinha e contava tudo. Andava contente, embora não fosse muito dessas confusões. Nisso saía ao pai que também não gostava de confusões.

No dia do espectáculo aquilo encheu-se de pais e mães, hoje seria mais confuso com mães e mães e pais e pais e isso. Desde a entrada que as freiras avisavam que havia uma surpresa. Freiras com surpresas só podiam ser doces (mas estávamos em Lisboa e não Odivelas) ou um terço rezado em grupo. Havia de ser giro, tudo ali entalado a rezar o terço, mas eu já traçara um plano. Se chegasse a isso, tínhamos que ir levantar a roupa que estava a ameaçar chuva. 

O tempo ia passando e ele eram criancinhas com flauta, rábulas do menino Jesus, coros de Natal, essas coisas que vocês sabem. O nosso rebento entrou num coro e fiquei muito orgulhoso pois ficou o tempo todo a olhar para o lado onde estava uma santinha. No final, fez três vénias e tiveram que o ir buscar. Puto do caraças, levou aquilo a sério. 

A freira chefe veio ao microfone dizer "vamos fazer um intervalo de quinze minutos e depois há de vir a surpresa". Andavam excitadas, notava-se. Tendo em conta que a média de idades era acima dos 55 a excitação cansava-nos, mas ficava-lhes bem.

Viemos do intervalo todos a falar da surpresa, o que seria, parecia um segredo bem guardado do Vaticano. No palco havia movimento. Trouxeram uns dos mais novitos e sentaram-nos no chão em semicírculo. Saíram, a expectativa cresceu e lá detrás dos panos, no seu passo meio errante, meio navegante, entrou o Jorge Palma e sentou-se no chão no meio dos putos a cantar o Postal dos Correios. Todos nós acompanhávamos com palmas e eu estava de coração derretido. 

O Palma portou-se bem, parece que o filho dele era colega do meu. Aplaudimos muito e os putos pequenitos acordaram do torpor e começaram a subir pelo Palma acima, que levou meia dúzia ás cavalitas. 

As freiras estavam radiantes e confesso que esta foi uma das mais surpreendentes surpresas da minha vida, ainda maior do que quando vi um unicórnio a voar, mas disso não tenho a certeza.

Bem hajam as freiras do Patronato e o grande Jorge Palma.




06 fevereiro, 2020

Confissão


É assim que vivo, um dia de cada vez, no incógnito, numa espécie de anonimato voluntário.

Evito interrogações, poupo-me a respostas, torturo-me com fantasmas e dúvidas.
Escolhi assim, sigo o meu caminho. Certa ou errada, é a minha escolha.
Perco ainda muito tempo a ter medo do que poderá acontecer amanhã, ainda sabendo que é uma preocupação estéril, vazia. É espontâneo, é natural, mas é tempo perdido. E o tempo é um tesouro, perder tempo é perder tudo. Paga-se caro o desperdício. Ainda agora abri os olhos e já é hora de os fechar de novo. O dia inteiro cabe numa conversa de café, nas páginas de um livro ou numa melodia. Cada vez mais depressa chega o fim. Enquanto entidade abstrata e intangível , é estranho o tempo, não fosse ele impossível de definir. Cada um sabe o que faz com ele. Ele sabe o que com cada um de nós faz. 
Dói-me até dizer chega senti-lo a escapar-me por entre os dedos, ao perceber os sinais que me vai deixando de que tudo é efémero, de que tudo finda.
O tempo é como o amor, fodido. Pisca-nos o olho, seduz-nos, atordoa-nos, engole-nos , tritura-nos e rouba-nos a vida.
É uma flor, é um espinho.
Ainda há quem diga que devemos dar tempo ao tempo. Tretas! O tempo não nos pergunta nada, dá-nos o que bem entende. E nós bem mandados, aceitamos sem condições. Entre o primeiro choro e o último suspiro, existimos. 
Cada dia que passa é uma dádiva. Cada dia que passa é uma morte. No meio disto tudo, acontece a alegria da surpresa, do inesperado, o tempero da vida, o antidoto para a disrupção.
Tenho pavor do obsoleto, do ultrapassado, de não fazer mais parte…do vazio em geral.
Alimento-me de brisa, de sol, de vozes e de movimento.
Dependo de presenças, de barulho e de palavras. Muito. Muito mesmo. 
Perco-me com muita facilidade, demoro a encontrar a saída. 
Falo mal do tempo, mas agarro-me a ele com todas as forças. Desconfio do amor, no entanto não equaciono não o ter comigo. 
Conforta-me o calor do raio de sol que me ilumina, apazigua-me a doçura de um eco ao longe. 
Revigoram-me os sorrisos pueris, os olhos curiosos, a ingenuidade de palmo e meio, a irreverência dos heróis de capa e espada, a rebeldia em processo. 
Retempera-me o ritmo pelo corpo adentro, os movimentos desenfreados, a vida a pulsar, a catarse. 
Doem as ausências definitivas,as prolongadas, as curtas. Doem-me as ausências, ponto.
Aterroriza-me ainda a morte. Estou a aprender a pronunciar-lhe o nome, a falar sobre ela, a encará-la. Têm-me ensinado.
Preciso do choque frontal para perceber as coisas com clareza, para alterar, para reaver o equilíbrio, seguir em frente.
Amo incondicionalmente, do ódio não sei.

Sou um paradoxo, uma contradição...aparente simplicidade num novelo de complexidade.

E mais não digo.

Contei-lhe tudo à espera de uma resposta, mas ela limitou-se a olhar para mim.




04 fevereiro, 2020

Quero-te minha outra vez


Olho-te do outro lado, camuflado numa coluna. Sempre à mesma hora, em plataformas trocadas. Faz tempo que viajamos em sentidos contrários, como se os relógios rodassem inversos recomendando a mesma hora.

Que aperto no peito sinto quando te vejo de manhã e que raiva quando te revejo à tarde, uma visão tão improvável, mas sempre tão certa. Para onde vais? Como pode ele amar-te mais e melhor do que eu? Como pode ele tocar-te quando jurámos ser só dois? 

Ouves música, será que ainda ouves a nossa música ou também isso mudou? Conheço esse teu gesto, o cabelo curto roça os ombros e os brincos, sempre diferentes, surgem quando com o dedo seguras o cabelo atrás da orelha. Tão sensual, disse-to tanto, já não ouvias. Ficou-te porquê? Conheço todos os teus gestos.

Hoje vestes o casaco vermelho com dois botões. Sinto nos dedos o toque aveludado e o perfume misturado contigo, com o teu cheiro, que me transtornava quando abria os armários. Os lenços... Observo melhor, tanta coisa nova em ti e esse brilho nos olhos que tinhas perdido no nosso caminho. Já se esfumam na memória as curvas do teu corpo que tanto desejei e que agora são doutro. Canalha.

Um dia chamarei a tua atenção e o teu desdém sacrificará os restos do meu amor por ti. Mas não hoje, não ainda. Vou subindo as escadas cabisbaixo por dentro e rude por fora e enfrento mais uma manhã e à tarde vejo-te cansada e maldigo este final que me deixou do lado errado do cais. O teu mundo já não é o meu, mas como todas as pessoas que nos rodeiam aí e aqui, eles cruzam-se e confundem-se.

E porque quando a meu lado libertavas o teu corpo e te vestias suave para dormir, quando te chegavas ao meu ombro e sentia o teu tremor, o meu pensamento em ti era o melhor momento do meu dia?

Aguardando a vida, afago recordações em gargalos de cheiro a uvas ferrais e valdosas...