Olho-te do outro lado, camuflado numa coluna. Sempre à mesma hora, em plataformas trocadas. Faz tempo que viajamos em sentidos contrários, como se os relógios rodassem inversos recomendando a mesma hora.
Que aperto no peito sinto quando te vejo de manhã e que raiva quando te revejo à tarde, uma visão tão improvável, mas sempre tão certa. Para onde vais? Como pode ele amar-te mais e melhor do que eu? Como pode ele tocar-te quando jurámos ser só dois?
Ouves música, será que ainda ouves a nossa música ou também isso mudou? Conheço esse teu gesto, o cabelo curto roça os ombros e os brincos, sempre diferentes, surgem quando com o dedo seguras o cabelo atrás da orelha. Tão sensual, disse-to tanto, já não ouvias. Ficou-te porquê? Conheço todos os teus gestos.
Hoje vestes o casaco vermelho com dois botões. Sinto nos dedos o toque aveludado e o perfume misturado contigo, com o teu cheiro, que me transtornava quando abria os armários. Os lenços... Observo melhor, tanta coisa nova em ti e esse brilho nos olhos que tinhas perdido no nosso caminho. Já se esfumam na memória as curvas do teu corpo que tanto desejei e que agora são doutro. Canalha.
Um dia chamarei a tua atenção e o teu desdém sacrificará os restos do meu amor por ti. Mas não hoje, não ainda. Vou subindo as escadas cabisbaixo por dentro e rude por fora e enfrento mais uma manhã e à tarde vejo-te cansada e maldigo este final que me deixou do lado errado do cais. O teu mundo já não é o meu, mas como todas as pessoas que nos rodeiam aí e aqui, eles cruzam-se e confundem-se.
E porque quando a meu lado libertavas o teu corpo e te vestias suave para dormir, quando te chegavas ao meu ombro e sentia o teu tremor, o meu pensamento em ti era o melhor momento do meu dia?
Aguardando a vida, afago recordações em gargalos de cheiro a uvas ferrais e valdosas...
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