28 junho, 2019

O dia em que pedi um pedido


Um dos meus primeiros trabalhos, quer dizer, era mais um emprego, foi tirar passaportes no GC. Anos 80, havia a CEE, mas os portugas precisavam de passaporte e de visto para tudo que era sítio, mesmo na Europa. Éramos uns pelintras.

Lá no GC tínhamos um guiché só para nós, onde umas mulheres ou homens de mal com a vida não nos batiam porque não podiam, era só um guiché. Falo em nós porque éramos quase todos uns putos da mesma idade, tipo fugidos da escola e que trabalhávamos para empresas parecidas.

Entregávamos os papéis, ele era azul de 25 linhas, selado, assinaturas reconhecidas, carimbos e fotos à la minuta, sei lá, o pacote completo. Depois era rapidíssimo, um mês para o normal e sete dias úteis para a urgência. Os "dias úteis" é como nos preços, está escrito 9.99, nós dizemos que é 9, mas é 10.

Há sempre uma primeira vez em que o lirismo do sistema, bem à tona naqueles anos, nos encurrala num sítio qualquer. Um gajo precisou de um passaporte urgentíssimozissimo. Tipo de um dia para o outro. E eu à toa, lixado. E o patrão, trate disso, então, anda aqui a fazer o quê? E eu continuava à toa.

Cheguei ao GC com a papelada e estava lá o meu amigo, gajo d'Alfama, de bigodinho, que falava a cantar o fado e sempre a rir. E eu, porra, já viste esta cena, como é que desenrasco esta merd@, meu? E o gajo, é fácil, fogo, nunca pedistes um pedido? Anda comigo. O gajo era batido, era d'Alfama. Era também um baril.

Mas, porra, que raio, pedir um pedido? Atravessámos a rua para o prédio em frente onde se levantavam os passaportes num balcão, num primeiro andar. E o gajo disse, entra aí. Era uma porta do lado esquerdo do balcão. Estavam lá meia dúzia de putos que eu conhecia, alguns com muitos papéis, mas todos caladinhos. Tinha uma porta em frente. Quando chegou a minha vez, entrei.

Numa secretária pequenina, estava um homem enorme todo encurvado, de óculos embaciados, com pilhas de passaportes e papéis por tudo o que era tampo e não só. Não levantou a cabeça, só lhe via o cabelo empastado e o suor a escorrer para o fato dos Fanqueiros.

Fiquei parado à espera. Ao fim de uma eternidade perguntou, o que quer? e eu sem saber bem o que se passava ali, disse, vinha pedir um... pedido! E o homem disse, enfronhado na papelada, deixe aí e venha levantar amanhã. E assim fiz.

Foi uma das primeiras vezes que este país me pôs a mão por baixo.

26 junho, 2019

Escritos de sal

Sedenta de renovação e libertação, atirou os escritos à água. Origem de todas as coisas e para onde tudo retorna, a prima matéria haveria de saber que destino teriam todas aquelas estórias. Escrevera tantas vezes, sentada na areia, com o bloco no colo e o horizonte como pano de fundo. Não havia como não devolver às águas o que em tempos elas lhe tinham oferecido. Quanto mais olhava para aquela imensidão azul, mais vulnerável se sentia… uma embarcação frágil … um barco feito de um qualquer matutino esquecido num banco de jardim.
Ali, onde tantos tinham perdido a vida e desaparecido para junto de criaturas fantasiosas, outros tinham cruzado as águas com coragem e ousadia. Palco de cruéis piratas, intrépidos navegadores e esconderijo de conchas e peixes coloridos, o mar levava-lhe agora as palavras (umas put@s, outras pérolas). Deixou-se estar a vê-las partir, até que anoitecesse. Talvez alguma sereia se apoderasse delas e as transformasse num canto mágico.
Era hora. Descalçou-se, mas não se despiu. Entrou na água até que a espuma branca a cobrisse. Assim como as suas estórias, aquele era o seu Fado.

23 junho, 2019

100 posts é um número redondo e faz bem ao EGO


O blogue EGO Magazine tem tido um enorme sucesso, principalmente junto dos seus criadores e colaboradores, porque junto de leitores, mais para menos do que para mais, ok, a culpa é de haver muitos conteúdos na Internet, blá, blá, blá, ou seja, apesar de sermos bons nisto estamos um pouquinho aquém dos 2.000.000 de leitores, que pensávamos que já teríamos alcançado.

Considerando o acima escrito e o que se segue, julga-se importante sublinhar que o editor do espaço, Adriano Lisboa, na plena posse das suas faculdades mentais, espirituais e outras, decidiu realizar uma mudança radical no blogue, girá-lo 360º, e irá reagir como é seu costume, com intensa curiosidade ou renovado desinteresse, às inúmeras reclamações que se avizinham, devidas ao efeito que esta volta completa irá ter na vida dos leitores.

Bem, mas falando sério, mesmo sério, quero agradecer a todos os que me têm acompanhado, colaborado e incentivado nesta jornada, Lady Marian, As Mãos, Tarte, Arroz Doce e principalmente, em nome da equipa EGO-cêntrica, quero deixar aqui um grande obrigado a todos os que nos apoiam e seguem e aos outros que certamente virão.

Bem hajam e até ao post 101.

20 junho, 2019

Desaparição ou antes que morram as palavras

Pedi-te uma ideia emprestada. Acedeste na condição de que eu a devolvesse. Prometi fazê-lo, mas não cumpri e guardei-a para mim (era boa demais!). Escondi-a num lugar secreto e não a voltei a pôr no lugar. Assim que a tive comigo, vivi um instante de plenitude, um fascínio delirante. Sou uma ladra. Já o disse antes. Tiro aos outros e não devolvo nada. Sou uma artista decadente, mas ninguém precisa de saber. Faço decalques. Finjo que faço. Vivo num desequilíbrio vertiginoso temendo a queda final. É quase obscena esta abstinência de esforço mental. Este desapego à ação chega a ser prazeroso. Delícia este desmembrar de obrigações e de cansaços! Para quê viver num tumulto, se posso ter o deleite de graça? Até me arrepio com a ideia. Mais valem eufemismos desviados do que hipérboles vindas de mentes insanas.     
F***-se! (Que digo eu?) Mas que raio de conversa é esta?
A exaustão faz-me perder o tino. As obscenidades sobrepõem-se à doçura. A decadência afoga-me a lucidez. O tormento trespassa-me a alma, tolhe-me o pensamento. Regressem a harmonia e os murmúrios levados pelo vento. Dissipe-se o espesso nevoeiro, apazigúem-se as convulsões, feche-se a dor exposta. É hora de lamber as feridas, preciso de me recompor, escrever tudo numa letra pequenina para não deixar fugir nada, ninguém me roubar as palavras. Temo que as flores murchem e que esmoreçam as estrofes sôfregas de olhares curiosos e impressões.
Acalme-se a tempestade. Solte-se a brisa suave.


18 junho, 2019

O sol que me ilumina

silhouette of plant during sunset
Durante a noite caminhámos percorrendo o longo percurso,

aguentando a dor e a chuva e o calor.
Pelo caminho seguia-nos uma colónia de coelhos,
curiosos pela nossa peregrinação de dor.

Abriram-nos a porta no abrigo e deram promessas de paz e conforto.
Era mentira. A dor continuou, certeira, como um relógio.

A chuva não parava de cair lá fora e pouco conforto sentiamos cá dentro.
A noite passou sem praticamente conseguirmos dormir.
A dor não perdoou e ficou insuportável.
Os nossos anfitriões vieram em socorro,

estiveram connosco até ao fim.
E a dor acabou por atenuar.

Deixaste de ter vontade de estar dentro e quiseste sentir a chuva lá fora.
Mas estavas inerte, adormecido.
Ao veres que conseguias respirar acordaste.

Acordaste com um choro, que mais parecia um coro de uma sinfonia celestial.
O teu choro libertou lágrimas em faces há muito dormentes.
O teu choro acordou essas faces há muito dormentes.

A chuva parou quando nasceste.
A vida faz sentido quando a irradias,
porque és o sol que me ilumina.

16 junho, 2019

Sopro de vida...Sopro de morte


Corvos e pombos pousam nas pedras tumulares do jardim cujos bancos cobertos de musgo aguardam há muito o descanso dos amantes. Um demónio de pedra lança um olhar perverso ao anjo de mármore alvo, guardião de memórias em farrapos. Na sombra dos arbustos e das folhagens, perdem-se duas sombras em gozos e loucuras sensuais, no silêncio soturno daquele jardim de morte. Um aroma tenebroso paira no ar cerrado e quente. Debaixo da densa treva e das suas cintilações, caminha descalça e altiva. Os longos cabelos negros baloiçam escondendo as costas nuas que o veludo do vestido não cobre.
Segura vai embriagada de escuridão, carregada de dor e tristeza, um punhal na mão.
Nas veias o sangue pulsa forte, no peito a cadência dispara, acelerada. Frágil e bela prossegue imperturbável, tendo como cúmplice o feitiço da lua. Amo intensamente a palidez do seu semblante, a figura esbelta e recatada, o peito imaculado onde anseio repousar dos desgostos e dos gumes afiados. 
Pudesse eu deitá-la no mármore frio, tomá-la nos braços e devolver-lhe num beijo o sopro de vida quase extinto. Pudesse eu adormecer no seu regaço e abandonar-me para sempre com ela num abraço.


14 junho, 2019

Gotas de Saudade

Pequenas gotas voam no mar,
sobre o oceano para lá
e sobre a linha que se curva um pouco, para cá.

São de um vapor pequenino,
e a aventura da água é uma distância recta,
entre o céu e o mar e duas terras.

Seguem destinos opostos,
a pressa é tanta,
a corda que as prende estica, mas não rompe.

Puras, voam em molhos, 

são azedas sem risos,
só ânsias e recordações e desejos.

Puxadas a vento deslizam nas ondas
quando o vento levanta uma espuma branca,
e como um rio rolam no mar.

Buscam-se e sem nunca se ver,
chegam às pontas da infinita recta
tão curva que baralha a vista.

Mais uma gota de suor quente que desliza no peito,
mais uma gota de suor frio que gela a espinha.
Saudade.

12 junho, 2019

O retrato

Um dia, pedi-te que fizesses o meu retrato. Lembras-te? Lançaste-me um daqueles olhares interrogativos, mas não pronunciaste uma palavra.

Desenha-me, tenho medo que se esqueçam de mim quando já cá não estiver. Nem precisas de me fazer bela, apenas quero continuar viva aos olhos daqueles que me olharem. Fá-lo com giz branco numa grande folha negra, sem muitas expressões faciais, uma silhueta ou talvez uma figura em sombra chinesa. Não uses cores e não fixes a minha alma.

O retrato é o espelho da alma. O traço é a revelação da tua personalidade. Por que razão queres tu baralhar as pistas? Pretendes que te guardem na memória ou que te questionem quando já cá não estiveres para responderes. Que raio de delírio é esse?

Quero que me voltem a construir, depois que me desvendem e por fim que me voltem a amar.
Quero permanecer…

10 junho, 2019

10 de Junho, Portugal, Portugal


(...)
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
(...)


in Poemas de Alberto Caeiro, 

Ática, 1993

08 junho, 2019

Alucinações da madrugada

Sinto-me a ausentar-me.
O meu corpo continua enjaulado. O peso de uma sombra abate-se sobre mim e isola-me cada vez mais do resto do mundo.
Sou um ser noturno. Cresce uma dor incontrolável dentro de mim, preciso de outra menos intensa para aguentar a primeira. Sinto-me febril. Tenho o rosto lívido, transparente como os mortos têm. Parece que me vou apagando aos poucos.
Arrefeceu durante a noite. O frio era tanto que abri a janela toda para que entrasse e me penetrasse nos ossos. Não consegui pregar olho durante a noite. Insónia a insónia, vou memorizando as imagens que forram as paredes do quarto. Há fotografias, desenhos e esboços por todo o lado. Decidi deixar de pintar, mas nunca cheguei a arrumar nada. Continua tudo espalhado. As tintas estão secas, os pincéis duros e as telas amareladas.
O silêncio é angustiante na minha caverna urbana, mas é nele que me consigo encontrar. É na ausência de ruído que me vou metamorfoseando. A vertigem do silêncio dilatado sacode-me e obriga-me a pensar.
Penso tanto em algumas pessoas que sou tomada pelo nevoeiro da memória, os traços vão se esbatendo e aos poucos vou-me esquecendo delas. As imagens vão desfilando, no entanto surgem cada vez mais desfocadas. Pela janela aberta, entra um vento frio e salgado. Arrepio-me. Há já muito que ninguém me telefona ou me visita. Vou passando aqui as noites monótonas e iguais, escrevinhando coisas que acabo por queimar.
Tenho os lábios gretados e os olhos inchados. Dói-me o corpo todo, o peito principalmente. Era bom que, definitivamente, o sono me entorpecesse e me fizesse desmaiar numa dormência profunda que me apagasse da cabeça coisas até agora indeléveis.
Queria embriagar-me de álcool, de erva e de paixão. Passo a língua pelos lábios e afasto o cabelo dos olhos. Enrosco-me sobre mim mesma e estremeço à espera da manhã longínqua. Ainda faltam umas horas até o manto escuro de pontos luminosos se desvanecer. Fiz café que vou bebendo a escaldar de uma caneca branca. Acendo um cigarro que saboreio até o filtro quente me queimar os lábios já feridos. Tornei-me uma ladra. Roubo os outros, mas não me deixo roubar. Apodero-me das suas histórias, desconstruo-as e com elas produzo linguagens. Tenho de desprender o torpor das mãos. Lembro-me do puto que vi cair do quarto andar, estendido no chão, uma multidão à volta. Destroços de vida.
Encho a caneca de novo, o café sabe-me bem. Reúno os fragmentos de memória, dou-lhes um nome e faço-os reféns de uma folha de papel branca.
Acontece olhar-me no grande espelho do quarto durante longos minutos. Miro-me da cabeça aos pés a ver se algo mudou de um dia para o outro. Uma noite destas, refletiu-se um homem seminu, sem rosto. Vestia apenas uma camisa branca igual àquela que trago vestida agora. Quis tocar-lhe, mas ao toque dos dedos no espelho frio, desapareceu. Mais uma partida do álcool, de certeza!  Que pena, queria ter-lhe descoberto o rosto, a identidade. Sinto que volta. Temos coisas para dizer.
Amanhece.

07 junho, 2019

Mler If Dada - Sinto em Mim

O Ego também se faz de música. Fiquem com um grupo que marcou o Pop português pela inovação e beleza das suas composições. Ficou esquecido nas páginas da história musical deste país, mas não nestas.


06 junho, 2019

Arroz Doce no arco-íris

Londres, finais de 80. Trabalhava com dois gay num restaurante, um inglês e o outro brasileiro. Tinham “saído do armário” havia anos, se é que alguma vez lá tinham estado. O Jimmy era alto, muito louro e branquinho de lixívia, com um sotaque complicado e uma linguagem sardónica e contundente. Usava uma argola em cada orelha, que era tipo um sinal.

O Jimmy geria os turnos e punha sempre uma miúda australiana a servir no local melhor, leia-se os booth, onde se ganhavam mais gorjetas. Se eu reclamava , ele fazia um meneio com a mão, olhava-me de cima a baixo e com aquele voz rispidamente inocente, dizia-me, ela é estudante e eu é que mando, e virava-me as costas. De vez em quando, quando ela não estava, lá me calhava um booth. Ele era meu amigo, fora isso tratava-me bem.

O brasileiro era mais velho, quarentão, o Li. Bicha descarada, como ele se intitulava. Às vezes, ficavam atrás do balcão a cochichar e riam-se dos que entravam e ainda não tinham “saído do armário”. Eles lá sabiam. Não era raro o Jimmy pôr as mãos à cintura, tirar-me as medidas e virar-me as costas, como se eu não valesse a pena existir. Ria-me.

Vai longa a introdução. Naquela noite, estávamos na casa do Li, com o Jimmy, a minha miúda e uma brasileira amiga, a Gaia, a tentar acabar uma garrafa de uísque. Estávamos no bom caminho, mas aborrecidos. Eles queriam ir ao Heaven, a discoteca da moda, porque era a noite gay, e eu quis ir também e entre risos, fui autorizado pelas mulheres. Não havia perigo, eram só homens.

Os meus amigos levaram uma hora a preparar-se, maquilhagem, batom de brilho, um bom perfume, roupas atraentes, gel com fartura, sei lá. Como sempre, eu ia de preto, armado em punk portuga, provavelmente de monkey boots. Talvez com um risco no olho, a à la Robert Smith.

Lá fomos. Entrámos na discoteca e ouviu-se artilharia e bombas a rebentar por todo o lado. Mandámo-nos logo para o chão. Afinal, era uma noite temática e os rapazes estavam todos vestidos de guerreiros e soldados, por todo o lado havia simulacros de batalhas e redes de camuflagem e tudo o resto que se possa imaginar, exceto tanques, que não cabiam na porta.

O Jimmy e o Li ficaram mortificados, duas bichas borboletas no meio de todas aquelas bichas machonas (palavras deles), de coletes militares, cinturões de balas, capacetes, botas da tropa e isso.

Bem, fui para a pista e tal como às vezes acontecia no Trumps, fez-se uma roda à minha volta e choviam beijos de todos os lados. Quem era eu, aquela novidade, nitidamente fora do contexto? A coisa estava a aquecer, e embora bem bebido, saí da pista assim para o constrangido.

De repente tudo parou, e ao som do I Will Survive, da Gloria Gaynor, teve início um jogo. No meio do palco, (a disco tinha um palco…) estava um para-quedista de dois metros de altura com uns ombros de dois metros de largura, a segurar um escudo de um material rijo, tipo esponja.

Um a um, os rapazes corriam pela galeria, atravessavam o palco e atiravam-se de cabeça ao gigante, que facilmente os repelia para cima de um colchão, estrategicamente colocado no chão. Os gritos de incentivo e os aplausos eram generalizados, e eu ,de lado, observava aquela cena e não sabia o que pensar. Os meus amigos estavam sentados, com o ar desanimado de quem estava no sítio certo , mas no contexto errado.

Senti uma mão no ombro e um rapaz um pouco mais velho, de cabelo comprido e colete de couro por cima do tronco nu, convidou-me para tomar uma bebida. Eu fui, não fosse eu o Arroz Doce, e sentámo-nos no bar. Acredito que ele fosse atraente, era-o de certeza e acredito que também lhe fosse atraente. Perguntou o que eu queria, pediu dois whiskeys e colocou-me a mão na perna. Estupidamente, entrei em pânico e a primeira coisa que disse foi que não era gay. Ele disse, pois eu sei, e tirou a mão. Com um raio, metia-me em cada uma.

Passámos algum tempo a conversar, era extremamente simpático, e eu observava o suor que lhe escorria no peito. Retirei-me, na verdade já tinha bebido que chegasse e ele tinha visto que não seria eu a preencher-lhe a solidão da noite.

Fui ter com os meus amigos e o Li atirou, com o despeito próprio dos gay, que inveja, você foi com aquele moreninho lindo, cara, você é horrível, te odeio. O Jimmy levantou-se do banco e com um trejeito de pescoço, que me fez lembrar César a compor a capa, dirigiu-se para a saída e nós seguimo-lo.

Nunca mais tive turnos nos booth, mas até seguirmos os nossos caminhos fomos sempre bons amigos.

04 junho, 2019

O Polvo

brown octopus on black surface
Sentado na jangada vislumbras dois sóis de lés a lés.
Estás imóvel num oceano colorido e decides mergulhar.

Por cada cor que no corpo sentes, sentes uma sensação nova e diferente.
E sabe bem.

Quanto mais fundo nadas, mais funda e pesada a cor.
E sabe muito bem.

Quanto mais fundo nadas, menos diferença notas nas cores.
E já não sabe tão bem.

Quanto mais fundo nadas, mais ondulação causas.
E alertas o polvo.

Com toda esta cor à tua volta nem somas que aguas águas turvas de pensamentos.
Com toda esta turvação à volta nem reparas que por baixo de ti um vulto apareceu.
Com todo este escuro à tua volta nem sentes que te puxa para onde não há luz.
Com toda esta falta de luz nem sabes de que lado fica a superfície.
Com toda esta falta de ar afogas-te por te esqueceres de como voltar a respirar.

02 junho, 2019

Boa tarde, dá-me licença que me sente na sua mesa?

Estava calor naquela tarde de domingo. Viera de repente o sol depois de uma semana de chuva.

Passou o portão de ferro do jardim e foi à procura de um sítio para se sentar. Avistou uma esplanada para a qual se foi dirigindo à procura de um lugar à sombra. Infelizmente, não havia. Esperou uns segundos na esperança de que alguém se levantasse, mas sem sucesso. Olhou em volta e numa mesa mais afastada estava um homem de barba, camisa branca e óculos escuros ,a teclar furiosamente num computador portátil. Caminhou para lá e perguntou:

Boa tarde, dá-me licença que me sente na sua mesa? Já não há nenhuma livre e estou mesmo cansada.

O homem tirou os óculos para melhor a examinar e riu-se.

Porque se ri? Já vi que o incomodo. Desculpe.

Não se vá embora, tenho gosto em que se sente. Ri-me por causa da sua lata, nada demais. Fez-me lembrar alguém que conheci há tempos, também era assim. Às vezes, apetecia-me fazer o que acabou de fazer, mas não faço. Não me leve a mal, sente-se.

Prometo não perturbar a sua tranquilidade, parecia tão concentrado há bocado. Não quero de todo interromper. Escreve?

Para quem não queria interromper, você fala…

Peço desculpa é um defeito que tenho. Mas vou já pedir o café e enfiar a cara no meu livro.

Estou a brincar consigo! Eu cá não gosto de falar muito, mas gosto de ouvir. Perguntou-me se escrevo, sim escrevo. Olhe, ando às voltas com este texto há algum tempo e não tem sido nada fácil. Pedi a uma pessoa amiga que me ajudasse e que mandasse escrever sobre maçãs, em vez disso sugeriu que eu escrevesse uma saga. Pior a emenda que o soneto. Estou para aqui a falar consigo, mas nem sei o seu nome.

O meu é Mariana e o seu?

Muito prazer Mariana, sou o Luís. Na verdade, ninguém me trata por esse nome, todos me chamam pela minha alcunha.

Que engraçado e qual é, se é que pode revelar?

Chegue-se aqui que eu digo-lhe baixinho. É um alter ego, ninguém mais precisa de saber.

Luís segredou-lhe ao ouvido e Mariana riu-se:

Quem teria ideia de ter uma alcunha destas. Nunca tal me teria passado pela cabeça! Original, sem dúvida.

A Mariana gosta de ler pelo que vejo. E escrever?

Sim gosto de ler e de escrever também. As duas paixões completam-se. Não querendo ser pretensiosa, nem indiscreta quem sabe não o consigo ajudar com o seu texto. Quem é a personagem principal da sua saga? Quais são as suas características?

Olhe, a personagem é um homem de meia idade, as características ainda nem as defini, a única coisa que sei é que vive numa casa junto ao mar e tem um barco. O que lhe sei dizer é que, simultaneamente, escrevo sobre outra pessoa, aquela que conheci há tempos e é bem mais fácil. Sai tudo naturalmente, sem grandes artifícios!

Muito bem, então assim de repente diga-me cinco palavras que o caracterizam. Não pense muito, seja espontâneo.

Você tem com cada uma! Cinco características minhas? Isto, não é suposto ser uma autobiografia.

Vá lá, deixe-se disso! Quer escrever o seu texto ou não? Olhe uma delas nem precisar de dizer, é a teimosia. Agora faça o que quiser com isso, ou segue ou desconstrói. Ou a sua personagem é teimosa ou não.

Já vi onde quer chegar. A Mariana é curiosa, mas sim também é uma possibilidade de eu dar um avanço nisto. Ora assim de repente, diz a Mariana. Olhe o ceticismo, cada vez menos no geral, mais no particular, ainda assim, sim a descrença é algo que faz parte de mim. A afetividade, sou de afetos… com pouca gente, mas sim, entrego-me esperando que não me dececionem, caso contrário o ceticismo fica mais acentuado. A calma está em mim, gosto de fazer as coisas calmamente e de pensar de igual modo, gosto muito de silêncio, sabe? Sei que por vezes é mal interpretado, mas não quero saber, preciso dessa calma e desses silêncios. Mas também gosto de barulho, música barulhenta, guitarras principalmente, põem-me bem-disposto. A Mariana gosta de música?

Muito, sou muito eclética sabe? Há quem diga que já ouviu tudo, eu cá acho que há sempre coisas para ouvir. Mas não se disperse, concentre-se lá na sua autoanálise. Faltam duas características ou uma, tendo em conta que a teimosia é sem dúvida um traço da sua personalidade.

Sou teimoso sim e já que adivinhou, não quer tentar adivinhar outro traço?

Pode ser. Embora só o conheça há meia dúzia de minutos, o Luís parece me uma pessoa insegura. Engano-me?

Reservo-me o direito de não responder à sua pergunta. Sou um gajo complicado, não me leve a mal.

Não faz mal, não é nada fácil expormos-nos assim aos outros.  Afinal, nem sequer me conhece. Não precisa de dizer mais nada. Já deve ter material suficiente para dar vida à sua personagem. Pelo menos para começar. Também já está na hora de me ir embora. Os cafés ficam por minha conta.

Já vai? Por mim deixe-se estar, estou a gostar de conversar consigo. Costuma vir aqui muitas vezes?

Não, nem por isso, mas é um sítio agradável. Hei de voltar, quem sabe não voltamos a partilhar a mesa e a conversa. Tenho mesmo de ir. Obrigada pelo lugar e pela paciência.

Foi um prazer Mariana. Até um dia!

É isso. Até!