O
meu corpo continua enjaulado. O peso de uma sombra abate-se sobre mim e
isola-me cada vez mais do resto do mundo.
Sou
um ser noturno. Cresce uma dor incontrolável dentro de mim, preciso de outra
menos intensa para aguentar a primeira. Sinto-me febril. Tenho o rosto lívido,
transparente como os mortos têm. Parece que me vou apagando aos poucos.
Arrefeceu
durante a noite. O frio era tanto que abri a janela toda para que entrasse e me
penetrasse nos ossos. Não consegui pregar olho durante a noite. Insónia a
insónia, vou memorizando as imagens que forram as paredes do quarto. Há
fotografias, desenhos e esboços por todo o lado. Decidi deixar de pintar, mas
nunca cheguei a arrumar nada. Continua tudo espalhado. As tintas estão secas,
os pincéis duros e as telas amareladas.
O
silêncio é angustiante na minha caverna urbana, mas é nele que me consigo
encontrar. É na ausência de ruído que me vou metamorfoseando. A vertigem do silêncio
dilatado sacode-me e obriga-me a pensar.
Penso
tanto em algumas pessoas que sou tomada pelo nevoeiro da memória, os traços vão
se esbatendo e aos poucos vou-me esquecendo delas. As imagens vão desfilando,
no entanto surgem cada vez mais desfocadas. Pela janela aberta, entra um vento
frio e salgado. Arrepio-me. Há já muito que ninguém me telefona ou me visita. Vou
passando aqui as noites monótonas e iguais, escrevinhando coisas que acabo por
queimar.
Tenho
os lábios gretados e os olhos inchados. Dói-me o corpo todo, o peito
principalmente. Era bom que, definitivamente, o sono me entorpecesse e me
fizesse desmaiar numa dormência profunda que me apagasse da cabeça coisas até
agora indeléveis.
Queria
embriagar-me de álcool, de erva e de paixão. Passo a língua pelos lábios e
afasto o cabelo dos olhos. Enrosco-me sobre mim mesma e estremeço à espera da
manhã longínqua. Ainda faltam umas horas até o manto escuro de pontos luminosos se desvanecer. Fiz café que vou bebendo a escaldar de uma caneca branca. Acendo um
cigarro que saboreio até o filtro quente me queimar os lábios já feridos.
Tornei-me uma ladra. Roubo os outros, mas não me deixo roubar. Apodero-me das
suas histórias, desconstruo-as e com elas produzo linguagens. Tenho de
desprender o torpor das mãos. Lembro-me do puto que vi cair do quarto andar,
estendido no chão, uma multidão à volta. Destroços de vida.
Encho
a caneca de novo, o café sabe-me bem. Reúno os fragmentos de memória, dou-lhes
um nome e faço-os reféns de uma folha de papel branca.
Acontece
olhar-me no grande espelho do quarto durante longos minutos. Miro-me da cabeça
aos pés a ver se algo mudou de um dia para o outro. Uma noite destas,
refletiu-se um homem seminu, sem rosto. Vestia apenas uma camisa branca igual
àquela que trago vestida agora. Quis tocar-lhe, mas ao toque dos dedos no
espelho frio, desapareceu. Mais uma partida do álcool, de certeza! Que pena, queria ter-lhe descoberto o rosto, a
identidade. Sinto que volta. Temos coisas para dizer.
Amanhece.
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