08 junho, 2019

Alucinações da madrugada

Sinto-me a ausentar-me.
O meu corpo continua enjaulado. O peso de uma sombra abate-se sobre mim e isola-me cada vez mais do resto do mundo.
Sou um ser noturno. Cresce uma dor incontrolável dentro de mim, preciso de outra menos intensa para aguentar a primeira. Sinto-me febril. Tenho o rosto lívido, transparente como os mortos têm. Parece que me vou apagando aos poucos.
Arrefeceu durante a noite. O frio era tanto que abri a janela toda para que entrasse e me penetrasse nos ossos. Não consegui pregar olho durante a noite. Insónia a insónia, vou memorizando as imagens que forram as paredes do quarto. Há fotografias, desenhos e esboços por todo o lado. Decidi deixar de pintar, mas nunca cheguei a arrumar nada. Continua tudo espalhado. As tintas estão secas, os pincéis duros e as telas amareladas.
O silêncio é angustiante na minha caverna urbana, mas é nele que me consigo encontrar. É na ausência de ruído que me vou metamorfoseando. A vertigem do silêncio dilatado sacode-me e obriga-me a pensar.
Penso tanto em algumas pessoas que sou tomada pelo nevoeiro da memória, os traços vão se esbatendo e aos poucos vou-me esquecendo delas. As imagens vão desfilando, no entanto surgem cada vez mais desfocadas. Pela janela aberta, entra um vento frio e salgado. Arrepio-me. Há já muito que ninguém me telefona ou me visita. Vou passando aqui as noites monótonas e iguais, escrevinhando coisas que acabo por queimar.
Tenho os lábios gretados e os olhos inchados. Dói-me o corpo todo, o peito principalmente. Era bom que, definitivamente, o sono me entorpecesse e me fizesse desmaiar numa dormência profunda que me apagasse da cabeça coisas até agora indeléveis.
Queria embriagar-me de álcool, de erva e de paixão. Passo a língua pelos lábios e afasto o cabelo dos olhos. Enrosco-me sobre mim mesma e estremeço à espera da manhã longínqua. Ainda faltam umas horas até o manto escuro de pontos luminosos se desvanecer. Fiz café que vou bebendo a escaldar de uma caneca branca. Acendo um cigarro que saboreio até o filtro quente me queimar os lábios já feridos. Tornei-me uma ladra. Roubo os outros, mas não me deixo roubar. Apodero-me das suas histórias, desconstruo-as e com elas produzo linguagens. Tenho de desprender o torpor das mãos. Lembro-me do puto que vi cair do quarto andar, estendido no chão, uma multidão à volta. Destroços de vida.
Encho a caneca de novo, o café sabe-me bem. Reúno os fragmentos de memória, dou-lhes um nome e faço-os reféns de uma folha de papel branca.
Acontece olhar-me no grande espelho do quarto durante longos minutos. Miro-me da cabeça aos pés a ver se algo mudou de um dia para o outro. Uma noite destas, refletiu-se um homem seminu, sem rosto. Vestia apenas uma camisa branca igual àquela que trago vestida agora. Quis tocar-lhe, mas ao toque dos dedos no espelho frio, desapareceu. Mais uma partida do álcool, de certeza!  Que pena, queria ter-lhe descoberto o rosto, a identidade. Sinto que volta. Temos coisas para dizer.
Amanhece.

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