29 março, 2020

Acto de Deus e um vírus

Deus vaga entre a matéria negra, as velas do destino inchadas pelo vento estrelar, mais rápido que a luz que criou do choque do branco com o negro.

Deus forte, obtuso, rígido no Seu desígnio, predestinado, que não move um milímetro na decisão da rota que para Si traçou.

Deus numa viagem infinita, que percorre o Seu Universo de ponta a ponta, só porque sim, porque é Seu e depois volta para se aconchegar no seu berço e nos olhar com curiosidade.

Deus sem fim à vista, omnipotente quando nos comanda  como marionetas ou brinca e nos deixa nadar para longe das águas calmas e em braçadas suadas sair das águas de tempestade .

Deus que na Sua suprema vontade nos põe à prova e dizemos porque nos trazes tanta dor e sem se justificar, porque é Deus, abre-nos os olhos e vemos que de entre nós se levantam alguns, são heróis que se superam no combate e generosos com a sua vida travam batalhas e batalhas pelos outros, até vencer a vontade de Deus, que entretanto sempre soube a resposta à nossa pergunta: porque confio em vós. 

E assim se passam os dias sem história que não existem, mas acontecem, que são os dias em que Deus navega à velocidade de anos luz pelo seu Universo.

Foto: Gripe espanhola 1919/ NSW State Archives / Tara Majoor

26 março, 2020

Miasma




O crepúsculo aproxima-se!
Fechai as janelas e portas e portão.
Deitai-vos cedo,
Escrevei na escuridão.

Cobri-vos de banha de cobra,
Segui a palavra dos anciãos,
Pois Deus decerto nos castiga
Neste crepúsculo sem clarão.

Ficai dentro de casa,
No lar e solo materno.
Afastai o mau olhado
Da terra do crepúsculo eterno.

Sentis isolados, desesperados e sós
Pois o sol ainda demora.
O miasma paira sobre nós
Mas irá em boa-hora.

22 março, 2020

O meu coração lateja


O meu coração lateja,
Bomba sangue desenfreado,
A aorta potente,
As veias inchadas,
As artérias impacientes. 

Rios de sangue correm e enchem recantos escondidos, jorrando entre aurículas e ventrículos.
O meu coração bate e o eco é melodia. 

Anseio por luzes sempre acesas e portas sempre abertas. 
Diz-me e enfrento dias de brasa e chuva sem dó, 
Trouxeste-me do vácuo branco,
Não me deixes ficar baço,
quando em ti renasci brilhante.

20 março, 2020

As flores

Roubava as flores do jardim, violetas e lírios-do-vale e fugia a correr. Roubava-lhes também o aroma e, assim, castigava as flores apoderando-se da sua essência.Quase conseguia ouvir o seu pranto e ver as cores a desmaiarem de desgosto. Colhia-as com muito cuidado e logo que encontrava um lugar seguro, depositava-as no colo. Demorava-se a olhá-las e acariciava-as suavemente com a ponta dos dedos. Depois, pegava em cada uma delas e absorvia-as longamente até que o seu perfume penetrasse nas narinas e tomasse conta do seu ser. Terminado aquele ritual olfativo e em estado de extâse, estrafegava as flores violentamente num abraço e assim deixava-se ficar deitada no musgo fresco do jardim até que o sono a levasse, apertando as cores e os aromas roubados das flores que tanto amava.

17 março, 2020

Universus Infinitus


No ponto azul do Big Bang da Criação, enroscados num sofá, passo-te os dedos no pescoço e sei que gostas porque te encostas mais a mim. Relaxados e felizes, naquele momento o nosso amor é universal. 

Penso, estarão os físicos teóricos certos? Existirão universos paralelos infinitos, cheios de repetições e contradições? Pois se neste parti, então num outro fiquei e porque não, ele há tanto por saber. Mas acrescento em abstracto, se neles, universos, se moldam acções, porque não então emoções? Exemplifico:

Noutro sítio o Big Bang foi descoberta e no seu ponto azul somos adolescentes a quem passou o tempo do só dizer, e ao cruzar um páteo rebenta um primeiro beijo e damos as mãos. Nervosos e felizes, naquele momento o nosso amor é universal. 

Mais ao lado, noutro ponto azul explodido de um Big Bang sedutor, envolvidos nos nossos sucos cavalgamos as coxas em sincronia e os teus peitos eriçados pedem-me sempre mais fundo, mais fundo e talvez seja este o universo total pois juntos somos um só. Amantes doidos naquele momento o nosso amor é universal. 

Mesmo ao centro, num Big Bang que não terminou ainda, num ponto azul sempre em mudança, sorrimos porque o nosso filho nasceu e a ansiedade deu lugar à felicidade e o nosso amor abriu-se a uma vida a três. Naquele momento em que todas as cabeças se tocam e dois de nós choramos de felicidade e o terceiro porque existe, o nosso amor é universal. 

Tao difícil é o infinito que para quem nele pensa parece ter fim. 

E nos confins de uma nebulosa tão fria que faz duvidar do seu Big Bang, num ponto cinzento à sua sombra, sinto as tuas lágrimas a tombar na minha campa e naquele momento o teu amor condói o universo e morto, choro em sintonia.

10 março, 2020

3ª Guerra Metal (Lisboa/1980)


Portugal era a última flatulência do rock. Alvin Lee, John Mayal e outros vinham cá ao cu de judas, já velhotes, ganhar uns cobres e até um dia veio a tótó da Joan Baez que obrigou o pavilhão a sentar no chão senão não dava o concerto e estávamos todos toscos, hippie é esta merda? E eu levantei-me e perguntei se podia ir à casa de banho e ela what? what? e a coisa ficou por ali porque me puxaram para baixo. Vá gozar com os portugas para o caraças.

Os heavy metal também vinham. Vi os White Snake, o Ted Nugent e até as Girlschool. Não fazia o meu tipo, mas papávamos tudo o que aparecia e depois também havia aqueles solos hipnóticos de bateria que duravam 30 minutos e que agora já não fazem porque não sabem. Aquilo é que era bater nas peles. O resto do show eram uns gajos de cabeleiras de caracóis, spandex de lantejoulas e foguetes a saltar do meio das pernas. 

Naquele dia a banda era qualquer coisa hard-rock inglês, os U.F.O.. Nunca tinha ouvido nem nunca mais ouvi falar deles. Foi no Pavilhão de Alvalade. 

Caía a noite e a confusão ateava. O pavilhão era pequeno como o raio e a produção como costume tinha vendido bilhetes a mais. A fila para entrar dava até ao Campo Grande, mas mesmo assim havia muito pessoal a rondar sem bilhete, incluindo nós, tal era a fome de música ao vivo. Agora a putalhada passa o Verão nos festivais e nem agradece. Vão é trabalhar prás minas de sal, tristeza.

O ar anunciava tumultos múltiplos e em redor preparava-se a 3ª guerra metal. Os seguranças estavam a ver que não era só fumaça e fecharam as portas assim sem avisar e ficou muito pessoal cá fora, inclusive gajos com bilhete. Era vê-los a deitar-se ao portão, pontapés ou cabeçada, valia tudo. Alguém gritou olha a bófia e fugimos todos para o mato, que naquele tempo Alvalade era um estádio no meio das hortas. Mas qual bófia qual quê, os seguranças que se safassem. Se o Sporting adivinhasse tinha pagado os gratificados. 

Já se ouvia o som dos U.F.O. a pesar lá dentro, que raio de nome para uma banda, e nós cá fora a espumar pela boca até que um reparou que uma das paredes da bancada do pavilhão encostava à do campo de treino. Ao cimo, onde as duas bancadas se seguravam na parede havia umas janelas. Tinham tirado os vidros e posto uns contraplacados a tapar. Pior a emenda que o soneto.

E prontos, alguém se lembrou vamos rebentar aquela merda, e eu não percebi bem, mas pereceu-me boa a ideia. Subimos pela bancada de fora acima e começámos a trabalhar na serradura. Puxa daqui, empurra dali, pimba, taruz, e aquilo começou a ceder e de repente éramos uns trinta a saltar para a bancada de dentro, como uns ratos enfeitiçados pelo solo de bateria que já corria.

Descemos aos tropeções pelo meio de quem estava e eu, que não vou dizer o meu nome porque não sei se esta merda já prescreveu, fiz uma finta de râguebi a um dos seguranças que bufava por ali acima para agarrar o pessoal. Em dez segundos tinha-me perdido no meio da plateia, enquanto a guerra continuava na bancada.

O solo foi razoável, ainda fiquei uns quinze minutos a abanar a carola. Os da banda viram que aquilo era terra de índios, tocaram, fizeram por agradar com uns encores o que não era difícil com a miséria a que estávamos habituados, receberam os 100 contos do contrato e bazaram naquela mesma noite. 

Para não me esquecer daquele sucedido, fiz um bilhete em cartolina, onde escrevi U.F.O. o sítio, e em letras garrafais BORLA.

Eram tempos em que se confundia vandalismo com anarquia e desde que não houvesse sangue, e raramente havia, estava-se bem.

02 março, 2020

Azul



Madrugada serena e fria
Bússola desnorteada
Espuma do mar vadia
Estrela do mar roubada
Azul…

Fresca brisa, água gelada
Voo de gaivotas tardio
Búzio de voz calada
Deita-se o sol no rio
Azul…

De todas as cores do mundo
És tristeza, melancolia
Do espectro o mais profundo
Sossego e calmaria
Azul…

Na imensidão do céu
Nas palavras de um escrito
Em tudo aquilo que é meu
Azul… o infinito.