13 julho, 2019

O número fascinante

O texto abaixo é belo e incomum. Já o reli vezes sem fim e deixa-me sempre a ponderar no que é o óbvio. Seguem-se algumas considerações após uma tradução livre do inglês.


"Qual é o meu número favorito? Nunca nisso pensei, mas, a fazê-lo, a minha resposta terá que ser o 3. O número 1 é o mais importante. Serve de prova que algo existe. Por outro lado, o zero é a descoberta mais sensacional, o conceito da não existência é prova da civilização humana. Depois do 1 vem o 2 em ordem de importância. O número 2 permite-nos dividir as coisas e ordenar os números. Estes três números (0, 1 e 2) seriam suficientes. Como número, o 3 é fascinante. Foi concebido embora não fosse necessário. Talvez nascesse de pura criatividade?"
Naoki Higashida

O que é a criatividade? É fazer algo pela primeira vez enquanto humano? É fazer algo pela primeira vez enquanto sujeito? É Arte? Tem que ser consciente? Ou poderá ser o movimento que criei quando o meu braço se estende para pegar a chávena do café?

Procurar responder a estes pensamentos e dúvidas que o meu cérebro criou será um acto criativo, apesar de alguém já o poder ter feito?

Creio que a excelência desse acto é o ser, não na acepção divina ou filosófica, mas na animal, na do corpo que todos os infinitésimos de segundo cria e se recria apenas para criar as batidas do coração, e de como este satisfeito o recompensa criando vida.

Texto original:

What’s your favorite number? I’ve never really thought about my favorite, but if pushed, my answer would be 3. The number 1 is the most important. It feels like proof that something is there. Then again, zero is the most amazing discovery. The concept of nothingness is proof of human civilization. After 1 comes 2 in order of importance. The number 2 lets us divide things and put numbers in order. These three numbers (0, 1 and 2) would have been sufficient. As a number, 3 is enchanting. It was created even though it wasn’t needed. Perhaps it was born out of creativity? 

11 julho, 2019

O Rei da Montanha



Por decreto real no topo desta montanha anunciaremos o veredicto final.
Que todos a nosso redor sejam testemunhas e juizes.
Perante nós testemunhas e juizes, acusamos-te dos seguintes crimes.

Acusamos-te de invasão.
Acusamos-te de subterfúgio.
Acusamos-te de usurpação.
Acusamos-te de vandalismo.

Por deliberação, tendo em conta testemunhos e provas, chegámos a uma decisão mútua. Perante nós testemunhas e juízes, vemos, testemunhamos, e julgamos o acusado.

O veredicto é culpa.

Invadiste o mais sagrado de alguém.
Escondeste as tuas intenções.
Roubaste empatia do trono.
Destruiste esperança.

Pela natureza hedionda dos crimes, decretamos a sentença máxima:
Duelo até à morte com a vida.

Que o tempo tenha misericórdia pela tua alma.

09 julho, 2019

Escrever, escrever-me, escrever-te…

De acordo com as palavras de Virginia Woolf, “Escrever é que é o verdadeiro prazer, ser lido é um prazer superficial”. Não posso deixar de concordar.
Embora, na verdade, a escrita seja também uma questão de EGO é antes de mais uma questão de intimidade, de entrega, de secretismo. É fruição.  É até, em alguns casos, vital.
Escrever é ,antes de mais, ter coisas para dizer. Construir histórias através da combinação de palavras aliada à sintaxe e à semântica (ou sem aliados, simplesmente porque também pode acontecer contar coisas com palavras soltas!) e sacudir o mundo trazendo ao de cima sentidos mais ou menos explícitos. Sim, porque a escrita também exige esforço. Não está lá tudo, às vezes é preciso construir e desconstruir. Pensar, redigir, apagar ou queimar, arrepender-se e voltar a fazer tudo de novo. Aí reside o verdadeiro prazer da escrita: a procura constante, a exigência, a beleza das palavras, o prazer, a frustração, a inspiração ou o vazio. Paradoxalmente o vazio é inspirador. Parece coisa de gente louca, mas é assim.
Se num primeiro momento idealizei este texto para ser uma reflexão e porque a escrita é também uma anarquia e por isso mo permite, decidi mudar-lhe o rumo e continuá-lo na primeira pessoa do singular porque é assim que tenho vontade de escrever neste preciso momento. Na verdade, apetece-me dizer poucas coisas, mas escrevê-las com cores, cheiros e emoções. Ainda que pouca gente as leia, já as imortalizei numa folha branca. Pouco me importa a quantidade de olhos que vão por elas passar, são minhas… até que alguém as queira tomar também como suas.
Escrever-me tem sido uma árdua tarefa que, no entanto, tem sido possível muito devagarinho. A maior parte das vezes a preto e branco, fruto das circunstâncias, mas também gosto de tons pastel e de quando em quando lá vou colorindo algumas palavras mais felizes.
Escrever-te é bem mais fácil e prazeroso, mas é preciso ter mais cuidado na escolha dos vocábulos, já dizia o poeta “São como um cristal, as palavras. Algumas, um punhal, um incêndio”.
Procuro guardar tudo com cuidado: as palavras e as pessoas. E para que possa ficar com as pessoas, preciso de saber mexer nas palavras com mestria e precaução. E quanto mais cor lhes der, melhor.
Sílabas presas num nó da garganta, expressões que habitam o coração ou palavras que nos esmurram o estômago, tudo merece a devida transcrição.
É preciso é que não se escreva só com palavras, mas com a pessoa inteira.

 Assim...Escrevo, escrevo-me, escrevo-te…


05 julho, 2019

Pontos de vista narrativos, homodiegese, heterodiegese, polifonia, um exercício


HOMODIEGESE
Saí de casa à hora do costume. Gostava de chegar cedo ao trabalho, aproveitar para pôr alguma coisa em ordem enquanto não começava a confusão. Pus as mãos nos bolsos, a brisa ensopada de orvalho gelava-as. Atravessei a rua com cuidado, era larga e prestava-se a velocidades exageradas.
Entrei no café, o da esplanada, onde à tarde via os do bairro velho a beber meios-uísques e cerveja, e os do bairro novo a beber café, a comer bolos e a comprar pão. - Bom dia! - Bom dia! Respondeu ela com o sorriso do costume, enquanto me tirava a bica. O aroma do café despertou-me, era o primeiro prazer do dia, acompanhado pelas palavras de circunstância que sempre trocávamos - Está frio! - Pois está, dão dez graus para hoje... - Assim não dá para ir à praia! - E sorrimos.
Entrei no carro, fiz marcha atrás, depois segui em frente até à rotunda e cruzei os vários sinais até virar à esquerda e depois logo à direita. Entrei pelo portão do jardim, seguindo o caminho estreito de saibro, até ao pequeno parque nas traseiras. O edifício estava frio, as lareiras estavam apagadas há séculos. Pensava sempre nisto quando ali chegava. Era já uma rotina. Liguei o aquecedor da sala, depois o computador e sorri enquanto ligava a máquina do café, antecipando o segundo prazer do dia.

HETERODIEGESE
Saía de casa sempre à mesma hora. Gostava de ir cedo para avançar algum trabalho antes dos colegas chegarem. Naquele dia, aqueceu as mãos nos bolsos, a aragem de Outubro já cortava, os carros escorriam orvalho. A rua larga era perigosa e requeria a sua atenção ao atravessar, a velocidade dos que por ali passavam era exagerada. O balcão do café estava ainda vazio, à espera dos vizinhos do bairro novo, que pediam uma bica e comiam um bolo. À tarde, os homens do bairro velho bebiam meios-uísques e cerveja na esplanada. - Um café, senhor?- ele gostava daquela empregada, que cheirava a pão fresco e o cumprimentava sempre com um sorriso, antecipando o prazer do aroma divinal e milagroso do café. - Está frio! - Pois está, dão dez graus para hoje...! - Assim não dá para ir à praia! - Após as palavras de circunstância, saiu a sorrir.
Entrou no carro, alheado das rotundas e dos sinais que tinha pela frente, até que, após uma curva mais apertada, fez pisca à direita e entrou por um portão de jardim, quase enferrujado. Era o roteiro do seu dia-a-dia. Um estreito caminho de pedra levou-o até ao pequeno parque nas traseiras, onde parou o carro. O edifício estava gelado, era antigo, pensava ele enquanto passava por salas com lareiras que nunca se acendiam, apressando-se para a sua, para ligar o aquecedor e o computador. Depois, antecipando um prazer renovado, ligou a máquina do café e sentou-se a sorrir para ela.

POLIFONIA
"Este frio gela-me as mãos" - pensava ao atravessar a rua, enquanto as recolhia nos bolsos. "Espero que não esteja lá ninguém ainda, o Ramiro com a treta da bola, não se consegue fazer nada."
O condutor abrandou contrafeito, já a pensar na lomba mais à frente - "Estes gajos, sempre descuidados, não devem ter pressa para chegar ao trabalho". 
"Olha lá vem ele, tem a mania que é engatatão". Ela sorriu-se enquanto se chegava ao forno. Eléctrico claro, mas mesmo assim aquecia.
 - Um café senhor?
- Pois, o costume. Está frio, nunca mais vamos à praia! - Piscou-lhe o olho.
"Deves estar a sonhar, pá". - Pois é, ainda ontem o meu namorado me disse o mesmo. É surfista.- Riu-se ao ver a cara que ele fez.
A miúda cheirava a pão e a cama. Bebeu o café ainda com mais prazer e à saída disparou - Fico sempre mais quente quando aqui entro, deve ser do seu forno.
Riram-se os dois.
“Que gelo neste carro. O volante está gelado, deixa-me calçar as luvas”. Acelerou. Os sinais ou diziam vermelho ou verde. O amarelo dizia sempre verde. Voltou à direita e entrou pelo portão do antigo edifício, onde trabalhava. “Raios, este portão qualquer dia cai…, está mesmo ferrugento” Acelerou mais uma vez, derrapando no saibro do caminho. Estacionou nas traseiras.
Resmungava enquanto atravessava os corredores, enregelado, “…as lareiras não se acendem sozinhas, não há dinheiro para nada, isto cada vez está pior”.
- Bom dia pá. Viste o Sporting? Aquele árbitro é um mafioso do caraças.
"Merda, já cá está o Ramiro ". Olhou para a máquina do café, procurando consolo...




03 julho, 2019

Os Capotes brigantes do Bairro Alto


A História truculenta do Bairro Alto, ideada em tempos absolutos de leis do mais forte, desvenda-se no pequeno trecho que transcrevo das Peregrinações em Lisboa, de Norberto de Araújo. Acrescento que a parte final da história, já a tinha lido no Memorial do Convento, do nosso Saramago, que também gostava de ler livros.

Norberto de Araújo chega à Rua da Vinha e fala-nos à porta do nº 20:
"Repara [NA dirige-se na sua obra a um interlocutor a que chama Dilecto], nesta espécie de largo, o pórtico da entrada, em arco de cantaria; (…) É uma adega e carvoaria sombria mas típica, antiquíssima, destas que remontam, escondidas e sem aura, ao século XVII, tempo em que seriam estalagens e casa de comidas. (…)

Segundo a tradição oral já recolhida em romances populares, e que certos indícios parecem confirmar, aqui se reuniam os Capotes Pretos do Infante D. Francisco, irmão de D. João V, bando que se travava de brigas nocturnas frequentes com os Capotes Brancos de Sebastião José de Carvalho e Melo, quando este, moço volteiro, não sonhava ainda ascender à diplomacia, que nele precedeu a actividade política de Secretário de Estado. (…)”

Agora pela Rua da Rosa:

“Aqui neste prédio nºs 148-154, está uma velha estalagem de recolha de saloias lavadeiras. (…) Ora segundo a tradição oral, foi aqui a taverna «estalajadeira», por onde nos começos do século XVIII Sebastião José, mais o bando de sequazes de brigas bairristas – nos quais o popular e o fidalgo se misturavam – tinham a sede nocturna dos Capotes Brancos, grupo, ao jeito do tempo, rival dos Capotes Pretos capitaneado pelo truculento Infante D. Francisco, Duque de Beja, senhor de trinta e sete vilas, e de onze alcaidarias, estoura-vergas e cruel, que certa vez para experimentar a sua pontaria alvejou e atirou ao mar um pobre marujo tranquilo na sua faina na verga do navio. (…)”

O Bairro Alto, local de emoções fortes, possuiu sempre uma aura de transgressão e de quebra de regras, e de perigos assomando das suas antigas estalagens, baiucas e tabernas, travestidas hoje em bares e mini-discos onde a juventude despeja shots, e em ruas por onde bebe litradas, na ânsia sôfrega de percorrer rapidamente o caminho entre a felicidade efémera e a insolvência física.



José Mário Branco cantou os capotes. Aqui está a letra.
Foto: Rua da Vinha ©terezinhabasso

01 julho, 2019

Cronos

És um ladrão!
Um gatuno!
Um canalha!

Estás à volta de tudo o que está à tua volta,
e tudo o que consegues alcançar, roubas.

Roubas um copo de vinho por dia, para roubares o dizer “Saúde!”
Roubas o que está na ponta da língua, para roubares a memória de ideias.
Roubas o que tanto trabalhei para obter, para roubares a sua utilidade.
Roubas amigos que por perto gostava de ter, para roubares a sua amizade.

Roubas a nossa força, a nossa saúde, o nosso bem estar.
Roubas porque sim e roubas porque não.

E no fim roubas-te a ti próprio, para roubar qualquer oportunidade de te roubar de volta.