03 julho, 2019

Os Capotes brigantes do Bairro Alto


A História truculenta do Bairro Alto, ideada em tempos absolutos de leis do mais forte, desvenda-se no pequeno trecho que transcrevo das Peregrinações em Lisboa, de Norberto de Araújo. Acrescento que a parte final da história, já a tinha lido no Memorial do Convento, do nosso Saramago, que também gostava de ler livros.

Norberto de Araújo chega à Rua da Vinha e fala-nos à porta do nº 20:
"Repara [NA dirige-se na sua obra a um interlocutor a que chama Dilecto], nesta espécie de largo, o pórtico da entrada, em arco de cantaria; (…) É uma adega e carvoaria sombria mas típica, antiquíssima, destas que remontam, escondidas e sem aura, ao século XVII, tempo em que seriam estalagens e casa de comidas. (…)

Segundo a tradição oral já recolhida em romances populares, e que certos indícios parecem confirmar, aqui se reuniam os Capotes Pretos do Infante D. Francisco, irmão de D. João V, bando que se travava de brigas nocturnas frequentes com os Capotes Brancos de Sebastião José de Carvalho e Melo, quando este, moço volteiro, não sonhava ainda ascender à diplomacia, que nele precedeu a actividade política de Secretário de Estado. (…)”

Agora pela Rua da Rosa:

“Aqui neste prédio nºs 148-154, está uma velha estalagem de recolha de saloias lavadeiras. (…) Ora segundo a tradição oral, foi aqui a taverna «estalajadeira», por onde nos começos do século XVIII Sebastião José, mais o bando de sequazes de brigas bairristas – nos quais o popular e o fidalgo se misturavam – tinham a sede nocturna dos Capotes Brancos, grupo, ao jeito do tempo, rival dos Capotes Pretos capitaneado pelo truculento Infante D. Francisco, Duque de Beja, senhor de trinta e sete vilas, e de onze alcaidarias, estoura-vergas e cruel, que certa vez para experimentar a sua pontaria alvejou e atirou ao mar um pobre marujo tranquilo na sua faina na verga do navio. (…)”

O Bairro Alto, local de emoções fortes, possuiu sempre uma aura de transgressão e de quebra de regras, e de perigos assomando das suas antigas estalagens, baiucas e tabernas, travestidas hoje em bares e mini-discos onde a juventude despeja shots, e em ruas por onde bebe litradas, na ânsia sôfrega de percorrer rapidamente o caminho entre a felicidade efémera e a insolvência física.



José Mário Branco cantou os capotes. Aqui está a letra.
Foto: Rua da Vinha ©terezinhabasso

2 comentários:

  1. Anónimo16:57

    "(...) Infante D. Francisco, Duque de Beja, senhor de trinta e sete vilas, e de onze alcaidarias, estoura-vergas e cruel, que certa vez para experimentar a sua pontaria alvejou e atirou ao mar um pobre marujo tranquilo na sua faina na verga do navio. (…)” É magnífico o estilo desta prosa, o seu casticismo (usando a expressão de Unamuno) com que se ordenam os vocábulos vernáculos e a sintaxe límpida e cheia de força, que em poucas linhas é capaz de narrar um pequeno conto. Tem o sal ático e os ritmos portugueses! Dou os parabéns à Ego Magazine por publicar regularmente textos de tão elevada qualidade!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. O seu comentário e o apoio que nele nos concede dá-nos alento e motiva-nos a continuar. Obrigado.

      Eliminar