17 abril, 2020

Era um vez um contador de histórias...

Raios partam este bicho que nunca mais desaparece e leva todos à sua frente! Ontem, levou o olhar doce de um dos maiores contadores de histórias. Luís Sepúlveda foi-se embora, mas deixou-nos as suas fábulas mágicas.  Assim, continuam a acompanhar-nos nesta demorada jornada de isolamento o caracol que descobriu a importância da lentidão, a gaivota desejosa de abrir as asas depois do gato a ter  com muito carinho, ensinado a voar, assim como o velho que, à espera de melhores dias, vai pacientemente lendo romances de amor e ainda o gato e o rato que por força das circunstâncias se tornaram amigos. E como estes tantos outros ficarão connosco para que possamos sempre relembrar aquele cujo sonho de criança era ter acesso às estantes gigantes das bibliotecas recheadas de livros. Tive o prazer de me sentar com ele uns minutos enquanto me deixava uma mensagem numa das suas obras e foi precisamente do poder do sonho na escrita que me falou durante o pouco tempo que me foi possível estar na sua presença.
A minha homenagem sentida a um contador de histórias, daqueles muito bons, que nos toca e nos conduz à reflexão através da magia das fábulas.

Nota: É feita alusão neste texto a algumas das obras do autor, a saber:

História do caracol que descobriu a importância da lentidão.
História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar.
O Velho que lia romances de amor.
História de um gato e de um rato que se tornaram amigos.
O Poder dos Sonhos.

14 abril, 2020

Amor virtual

Não podendo ser de outra forma, resta-nos o amor virtual.
Beijos, abraços e afetos tornaram-se reféns de visores digitais onde cada um de nós dá o seu melhor para que do outro lado chegue o calor adiado.
Não poder tocar em quem amamos parece absurdo, mas é real.
Se em tempos atrás o ecrã não era muito amigo do amor, comprometendo-o por vezes até, é hoje um precioso aliado que nos permite perceber que a pessoa amada está do outro lado e que estamos juntos apesar da distância que nos separa. É de facto tudo mais asséptico, distante, mas é o que temos e com essa nova realidade reinventam-se afetos, consolidam-se amores, matam-se saudades.
O tempo que nos faltava é agora em demasia, nem sabemos o que fazer com ele. Apenas queremos que acelere , que nos dê uma resposta célere, que nos devolva a vida.
Temos tempo, muito tempo para pensar naqueles que amamos e nas coisas que vamos dizer quando o reencontro for possível, nos abraços e beijos em espera, no afeto muitas vezes contido.
Imaginamos reencontros perfeitos e idílicos ainda sabendo que com a ânsia  e a pressa do reencontro se concretizarão em transparência e espontaneidade, sem grandes preocupações mas com muita vontade de colmatar os dias perdidos na névoa da incerteza, de retomar as histórias de amor que ficaram suspensas em tempos de sombra.
Ontem sonhávamos. Hoje estamos atordoados. Todos ansiamos pelo fim do torpor e  pela plenitude da vida que há de voltar um dia.
Até lá resta-nos flutuar na quietude dos dias e esperar pelo tumulto da vida que nos há de arrebatar.

Fica a sugestão da audição de Into my arms de Nick Cave não necessariamente durante a leitura, mas quando o leitor assim o entender.


04 abril, 2020

Liberdade Libertina - Lisboa, inícios de 90

Talvez se lembrem dos Ena Pá 2000, o conjunto do Manuel João Vieira (MJV), perseverante pré candidato à Presidência como o Obama foi até que um dia ganhou, por isso nunca se sabe. Sob um fundo pop/rock/tanguista e outros, cantavam-se histórias viçosas e viciosas, assim para o avacalhanço. Lembro-me anos mais tarde de aparecerem uns gajos a tocar umas músicas a imitar e de ouvir o MJV dizer que gostava muito, que pareciam os Ena Pá menos as c@r@lh@d@s e está tudo dito.

O Puto apareceu não sei donde para dar a notícia que os Ena Pá vão tocar em Algés e é à borliú. Fomos a correr. Era na altura do álbum És muita linda, que foi um êxito estrondoso na nossa terra, vários discos de platina. Estávamos lá em peso. 

A voz portentosa do MJV iniciou as hostilidades. Aplaudimos as bailarinas enapás, sempre ultra elegantes e sexis e o melhor guitarrista do mundo, Phil Mendrix, que se juntara à festa. O bom do João não cantou o hit single  "Rap Alentejano". Depois de remexer todos os bolsos e os soutiens das bailarinas disse que não encontrava o papel e não se lembrava a letra e então siga a festa.

O engraçado é que era uma noite de campanha eleitoral, os políticos às vezes distraíam-se, pensavam que os Ena Pá eram pimba e depois lixavam-se, como quando numa festa da cidade os contrataram para um concerto no Pavilhão Carlos Lopes e eles começaram o show com o inevitável “masturbação a bem da nação”. Na verdade o responsável político andava cansado, coitado, e saiu de fininho. Sei da história porque uma garina me contou e também porque vi. Faço sempre o contraditório, não vou em politiquices.

O concerto decorria na boa, sempre a subir, como o lixo techno dos anos 90. O público esganiçava a brejeirice dos clássicos "Menina Azul" e a "Titi fez-me um Tété", sem dúvida um leque ecléctico de experiências musicais. Curtia-se bem, mas aquilo era Algés, que agora parece uma feira de viadutos e naquela altura era umas terras de hortas reviradas e que só se atravessavam de galochas, e também morava gente à volta.

O MJV começou a repetir eles andam aí, eles andam aí. Não percebíamos, mas o concerto continuava e o pessoal berrava e pulava. Chegou a meia noite e com ela o primeiro aviso, era hora de parar dizia a PSP destacada. Mas o circo seguiu e multiplicavam-se os eles andam aí. Mais meia hora e vieram falar com a banda, que não podia ser assim e tal, um foi falar com o MJV que acho que não ouviu, continuou a cantar e a repetir eles andam aí

Bem, a banda saiu passado um quarto de hora e ele ficou, eles andam aí, eles andam aí e cantava e tocava. O pessoal estava passado, loucura total. Parecia o Elvis a cantar em Las Vegas.

E então cortaram a eletricidade. No palco via-se só a sombra do MJV e o people resistente assobiou os bófias que queriam estragar a party que tinham apagado luz e som. E o bom do João, com a sua voz trovejante e ironia sardónica, entre uns eles andam aí, foi buscar uma viola por ali perdida e continuou a cantar e a tocar para o pessoal, tipo unplugged, ou seja desligado.

Os PSP entrarem em palco outra vez e com jeitos mansos, afinal havia política por ali, entre algum palavreado, que se resumia da parte do MJV a eles andam aí, confiscaram a viola por entre assobios vigorosos do pessoal quase amotinado. 

Pois o rapaz continuou ainda uns dez minutos a cantar, embora há já algum tempo falhasse mais notas que acertava. Acho que esgotou o reportório. Por fim, baixou se à beira do palco, repetiu eles andam aí e foi-se, Deviam ser umas duas da matina.

Depois de pensar muito naquilo que ali aconteceu continuo sem saber o que pensar daquilo que ali aconteceu. Vi muitos vocalistas a cantar sobre transgressão e anarquia, mas o MJV naquele concerto mostrou-me não sei bem o quê, apenas senti-me menos impotente, mais confiante, livre e independente. 

Obrigado Manuel João Vieira, concerto para a vida.

01 abril, 2020

As flores II

Havia já uns dias que o pesado portão de ferro do jardim se encontrava fechado. Uma questão de força maior ao que diziam. Por entre as grades de metal, espreitava o silêncio sepulcral da natureza em sossego. Tentara subir o portão, mas era alto demais, não havia como saltar lá para dentro. Respondendo ao apelo da sua teimosia, insistira várias vezes, mas apenas conseguira uns valentes arranhões nas pernas e algum sangue à mistura. Sentia na pele o chamamento das violetas e dos lírios do vale que continuavam a crescer na sua ausência. Num desespero descontrolado, dava a volta ao jardim só para poder espreitar as flores, encostava a cabeça às grades para ao longe sentir-lhes a vida por entre as mãos. Amava tanto as flores quanto amava o seu homem. Fora naquele jardim que o vira pela primeira vez num tempo em que os dias eram mais longos, num entardecer de brisa e de sol. Gostara dos seus lábios finos que ansiava tocar de novo, assim como precisava desesperadamente de acariciar as suas flores.Em tempos,entrara no jardim, roubara as flores e fugira para as amar num lugar seguro. Em tempos, os seus lábios tocaram os do homem amado num beijo também ele roubado com sabor a violetas e lírios do vale. Na ausência do toque suave das flores e da pele, revia imagens suas para acalmar a dor. Sentia-as com prazer e apertava-as junto ao coração, desejando as flores e o homem amado que presos, cada um no seu jardim, quais espinhos ameaçadores, a feriam de saudade.