29 abril, 2019

Hoje ou amanhã ou nunca

Éramos putos da noite, não parávamos em casa. Ele era trabalho, dar uma volta, ir jantar e basar logo. Saíamos sem destino, quer dizer, que não fosse o café ou a cervejaria da esquina ou a gruta.

Mas isto pouco vem ao caso, vamos à história que é para isso que me pagam e esta até é bem triste. Se não fosse hoje, amanhã não a escrevia, nem nunca.

Eu e o puto R. passávamos à noite no meu antigo liceu, a meter conversa com as miúdas que lá andavam. Foi uma fase.

Havia uma que me partia a cabeça. Tinha um ar misterioso e só falava por monossílabos e às vezes dissílabos.  Lembro-me da franja quase a tapar os olhos, como se usava, e das pestanas também. Era um conjunto muito agradável para fazer olhinhos.

Ela era um flirt total, sorria mas não ria. Eu ia aumentando o nível de treta, pois estava a ficar para trás, que o puto R já andava com a amiga. Esta coisa dos pares dava sempre jeito, mas quando um se safava e o outro ficava apeado era uma treta.

Depois de muito penar, quase uma semana, estávamos os dois sentados numas escadas do pátio, eu na treta, canção do bandido e tal, e ela a pestanejar muito lentamente. Parecia que estava a dizer sim. Inclinei-me para a beijar e ela retraiu-se. Pensei que era acanhamento. Meio a brincar perguntei - Hoje não? Ela não respondeu. Continuei, já a fazer beicinho - Amanhã? E ela a rir pela primeira vez, na minha cara e da minha cara, soltou um impiedoso - Nunca!!!

Toma lá, vai apanhar Arroz Doce, tinhas a mania e foste gozado na maior. Fiquei lixado e desapareci dali algum tempo. Hoje lembro-me do muito que gostava dos dissílabos dela.

Devia ser aquela coisa das hormonas vocais.

27 abril, 2019

As manas Picoas

Quis o destino e os meus pais que também eu nascesse na Maternidade Alfredo da Costa, ali às Picoas, topónimo popular de origem curiosa.

Conta-nos José Pedro Machado, no seu Dicionário Onomástico Etimológico, que havia por ali uma quinta que tinha como proprietárias duas senhoras, talvez irmãs, talvez solteironas. O seu pai era Picão de apelido e o povo, por graça ou por maldade, chamou-lhes «as Picoas» de onde ficou o topónimo.

Nas Memórias Paroquiais de 1758, o sítio das Picoas aparece integrado na freguesia de São Sebastião da Pedreira, entretanto banalizada para Avenidas Novas. Ao cimo da colina, junto à Igreja de São Sebastião, a meio do caminho que ligava o antigo Chafariz de Andaluz a Palhavã, que hoje é mais ou menos onde fica a António Augusto de Aguiar, gozavam-se os ares aprazíveis e lavados pelo vento.

Vivi nas Picoas muito tempo. Só saí para conhecer mundo e voltei com o mundo um pouco mais conhecido, e com saudades das mercearias e das drogarias, dos snack-bares e do ardina que só tinha um braço e que vendia jornais num vazado, onde em pequeno eu ia comprar o Diário Popular.

Em frente à minha porta, havia uma taberna, das antigas. Não era uma taverna das novas, vendia penaltis e copos de 3, e tinha uma fila de pipas sempre a esvaziar. Havia também uma esquadra, ao pé da praça, mais ao menos onde é o Fórum Picoas. A praça era muito grande, as gentes acotovelavam-se de um lado para o outro no meio dos legumes, das frutas e das gaiolas das galinhas e dos coelhos.

Lembro-me da abertura do primeiro centro comercial em Portugal, o Imaviz, que sobrevive moribundo na Rua Tomás Ribeiro, junto ao metro das Picoas. Quando abriu, os casais deslumbrados entravam para passear e ver as montras, um pouco como ainda se faz por rotina noutros sítios.

As Picoas modernizaram-se, encheram-se de escritórios e de lojas e os seus filhos foram-nas abandonando. Hoje as Picoas já não existem, são um amontoado de hotéis e turistas e restaurantes vegan, paleo e afins.

As avenidas estão novas por fora e vazias por dentro.


Imagem: Planta da cidade, 1856/58, Filipe Folque - http://lxi.cm-lisboa.pt/lxi



25 abril, 2019

Legados de Abril

Este blogue é apolítico por natureza, mas como não há regra sem exceção, o 25 de Abril, pela sua dimensão humana, é a exceção à regra.

Já muito se escreveu sobre a data, por isso limito-me a contar uma história…

O ano era 2000 e o Presidente da República, Jorge Sampaio.
Estávamos numa cerimónia pública, no exterior, alusiva a um amigo do Presidente, falecido recentemente, a que este fizera questão de comparecer.

A umas centenas de metros localizava-se uma escola, que estava a passar por um período conturbado, penso que a nível de financiamento, infraestruturas, sinceramente não me lembro bem.

Foram-se aproximando do local duas ou três dezenas de alunos, adolescentes, a princípio receosos, mas que acabaram por se sentar em grupo no chão junto aos presentes, segurando folhas de papel escritas a marcador, onde alertavam para os problemas da escola.

Naturalmente, a guarda do Presidente, quando se apercebeu do que estava a ocorrer, imediatamente se dirigiu aos estudantes para retirá-los do local.

Jorge Sampaio, que então falava, interrompeu o discurso e de cima do palco, com a lágrima no olho, clamou:

PAREM, FOI PARA ISTO QUE FIZEMOS O 25 DE ABRIL!

Assisti, comoveu-me, marcou-me e ficou-me, assim como me ficará no coração, enquanto viver, a Revolução dos Cravos.

22 abril, 2019

Raul tinha ciumes

Raul tinha ciúmes, não dormia. Torcia-se, não encontrava posição. Contava carneirinhos e em noites de desespero atirava a almofada à parede. Pensava nela, sempre nela. Por vezes chorava, com os olhos verdes de ciúme a raiar na escuridão. Tramava vinganças terríveis. Hoje negar-lhe-ia o pão. Amanhã a água.

Na noite em que perdeu o sono, Raul fora mais uma vez, à socapa, como um intruso envergonhado, espiar-lhe a página facebookiana. Entre outras sem história, três fotos passavam testemunho do beijo obsceno em que ela, resplandecente, se entregava a um ordinário qualquer, um palhaço. Raul acordou de dor.

Desde então, entre suores e calafrios, Raul recordava apenas a loucura do amor passado. O cheiro a gata. As peles a roçar. A voz ocarina. Os fartos cabelos de fogo. As festas nas costas. A língua acerejada. A brasa das coxas. O derreter da fenda.

Raul pensava o "Cântico dos Cânticos" mas odiava Salomão. Amava um sonho, vivia um pesadelo.


20 abril, 2019

Harmonia e Honra

Perdido no nevoeiro da minha adolescência, numa pausa entre Kafka e quejandos, recordo-me deliciosamente de ter lido Xogun de James Clavell. Para este conseguido romance, o cunho de best-seller e a adaptação televisiva estavam no adro.

O livro conta-nos as aventuras e desventuras do (pseudo) primeiro europeu que viveu no Japão, por alturas do Xogunato, imperialismo clássico, onde a defesa da honra e o respeito pela harmonia do outro se equilibravam. Dele retive um episódio:

"O senhor James, inglês, (não me recordo do nome das personagens), é hospede de uma família japonesa, numa casa de paredes de papel, como manda a tradição anti-sísmica das ilhas em causa. A meio da noite apercebe-se que o senhor da casa, chamemos-lhe senhor Hiroshi, samurai dos mais temidos do Japão, perito em golpes finos de espada, desrespeitava a sua esposa, fina flor oriental, a senhora Hiroko. 
James, que não sabia o que era tomar banho, mas era empenhado na arte do cavalheirismo, irrompeu pela porta ou pela parede (afinal era de papel), apanha Hiroshi de surpresa e lança-o para fora de casa, ralhando com ele em inglês, o que para o caso podia ser chinês. 
A tensão aumenta, Hiroshi está no terreiro com a mão no punho da sua espada, James está nas escadas a aguardar o golpe que se afigura mortal e Hiroko está de prantos. 
Ao fim de uns minutos Hiroshi avança, espada na mão, James treme mas não arreda pé e Hiroko continua de prantos. 
Final da história, Hiroshi lança-se aos pés de James, que por acaso tinham sido lavados gentilmente por Nanako, bonita moça, mas que não é chamada para esta história, e oferecendo-lhe a espada, oferece-lhe também a vida, porque mais importante que a sua honra (o que ele não diz, mas que se conclui do episódio) é o ter perturbado a harmonia do seu hóspede."

A reacção do japonês é inesperada para o inglês, que se sentiu incomodado não com o efeito, mas com a causa. Como poderia a sua harmonia, coisa a que não dava valor, valer a vida de um outro homem? 

Pouco nos preocupamos em preservar, em honrar, a harmonia dos outros. Quantos de nós reagiríamos como o senhor de guerra japonês, habituado ao corte do fio da espada,  mas culpando-se por ter perturbado o sono de um bárbaro? Trata-se apenas de um romance dirão e o fato desencadeador não é propriamente edificante para o Sr. Hiroshi.

No entanto, penso que o que está aqui em causa é mais que uma banalidade, que um fait-divers, que uma diferença mínima entre duas civilizações. Defensor dos seus códigos, Bushido e outros, o japonês aceita-se no silêncio e é aí que se aceita nos outros. Para o ocidental o silêncio é dúbio, é sinal de secretismo, indiferença, e como tal deve ser combatido. E se a palavra cria, o silêncio não cria, o silêncio apenas preenche a maior criação da história do mundo, o Homem.


18 abril, 2019

Fantasia


Do alto dos meus "entas", revivi ontem uma fantasia de juventude: uma mulher a banhar-se é um dos mais doces mistérios que a Natureza reservou ao homem. Mas já não para mim. 

Costuma-se dizer que a idade traz a sabedoria, mas a sabedoria é perder a magia e o mistério das coisas, é perder sensualidade na imaginação. É um desalento saber quase tudo e no entanto não servir para quase nada.

Excepto quando ela nos chama e diz: Carinho, anda esfregar-me as costas!


Imagem: Woman in bath. Degas

16 abril, 2019

Sentidos

Espanta-te que ainda aqui continue? Fico aqui o tempo que for preciso.
Não bates bem da cabeça, daqui a pouco anoitece e está sempre muito frio neste lugar. Vamos embora, deixa-te de teimosias!
Vim para aqui porque queria escapar dos outros sítios. Gosto desta zona da cidade, deste lugar vazio. Isto aqui é de quem cá chega, é de todos e não é de ninguém. Neste preciso momento, é meu. Tenho a certeza que aqui se fazem coisas estranhas e proibidas, mas isso não me diz respeito. Só quero ficar sentada nestes degraus sossegada e decidir se vou subi-los ou não. Passei muitas noites sem dormir a remexer pensamentos adversos. Aqui, ainda que esteja a morrer de cansaço, encontro tranquilidade e conforto.
Ao menos sobe, parva, lá em cima ficas mais abrigada! Despacha-te que vem aí chuva!
Não me chateies! Não se passa assim do chão para o último degrau. A escada é longa, é preciso pensar cada passo que damos, cada degrau que subimos.
Ok, tu é que sabes, eu vou andando. Faz o que quiseres!
É isso… faço mesmo.

09 abril, 2019

Sol a dois

Gostava de caminhar. Ao fim da tarde, os restos do Sol sacudiam o frio miudinho, que entrava nos ossos, mas refrescava o pensamento. Ia até à baía, umas vezes só, outras acompanhada.

Acompanhada, falava da vida. Gostava de falar, estava nela. Parava muitas vezes quando ia só, para  observar o borbulhar que as leves flutuações do rio traziam à areia da margem.

Gostava de fotos, afinal diziam que uma foto valia mil palavras, mas também gostava das palavras, afinal havia palavras que valiam mil fotos. Palavras doces e amargas. Será que alguma delas, fotos ou palavras, tinham a força de um gesto? Será que tal fora estudado? Era tarde para inventar novos provérbios, já os havia muitos, antigos e usados.

Por trás do horizonte o Sol caía, teimando em deixar um cobre polido que agitava as silhuetas.
Na ponta do novo cais, onde não paravam os barcos por falta de hábito, destacava-se uma sombra a dois.

Tantas vezes os vira. Seria o seu andar uma desculpa para os ver? Tantas vezes se perguntara quem eram, o que ali faziam todos os dias ao escorregar do Sol, aquela perseverança em ver o belo, as palavras sussurradas talvez de paixão, talvez de mais ainda, e o gesto dos ombros que se encostavam a meio caminho e se apertavam tanto. Pareciam duvidar que o Sol nascesse e por isso o desafiavam ao cair a noite.

O pensamento não pára, pensou ela, e tirou a foto que valia mil palavras, completa.

Voltou então, um pouco mais quente. Desceu à areia, para aproveitar os últimos raios. Seguiu lentamente, imaginando os passos que iam ficando, e aqui e ali olhava para trás, curiosa se também o cobre neles tinha ficado.

07 abril, 2019

Enquanto não vêm as palavras...


Enquanto não vêm as palavras... ficam as de Eugénio de Andrade.
Cabe ao leitor o papel de intérprete das mesmas, do seu significado, de acordo com o seu modo de sentir.

(Enquanto isso, pode ser que a inspiração bata à porta...)

São como um cristal
as palavras.
Algumas, um punhal, um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
Leves.
tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
Nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade, As Palavras