22 abril, 2019

Raul tinha ciumes

Raul tinha ciúmes, não dormia. Torcia-se, não encontrava posição. Contava carneirinhos e em noites de desespero atirava a almofada à parede. Pensava nela, sempre nela. Por vezes chorava, com os olhos verdes de ciúme a raiar na escuridão. Tramava vinganças terríveis. Hoje negar-lhe-ia o pão. Amanhã a água.

Na noite em que perdeu o sono, Raul fora mais uma vez, à socapa, como um intruso envergonhado, espiar-lhe a página facebookiana. Entre outras sem história, três fotos passavam testemunho do beijo obsceno em que ela, resplandecente, se entregava a um ordinário qualquer, um palhaço. Raul acordou de dor.

Desde então, entre suores e calafrios, Raul recordava apenas a loucura do amor passado. O cheiro a gata. As peles a roçar. A voz ocarina. Os fartos cabelos de fogo. As festas nas costas. A língua acerejada. A brasa das coxas. O derreter da fenda.

Raul pensava o "Cântico dos Cânticos" mas odiava Salomão. Amava um sonho, vivia um pesadelo.


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