28 fevereiro, 2019

Estrelas, ferrugem e ervas daninhas


Apesar da previsão de tempestade, o céu permanecia azul e o vento amainara. Cheirava a Primavera.
Dei por ti sentada num raio de sol, encostada à parede suja, de olhos fechados a saborear o calor da tarde. Os cabelos em desordem escondiam-te os olhos que eu sabia fechados. Mastigavas pastilha de menta, se bem me lembro. Fiquei um bom bocado a olhar-te do outro lado do passeio até que me decidi a ir ter contigo. Atravessei a rua e sentei-me no chão ao teu lado.
Gostávamos daquele lugar sórdido de fábricas abandonadas, prédios com paredes sujas que nunca tinham sido pintadas, ferrugem e ervas daninhas.
Assim que me sentiste, encostaste a cabeça no meu ombro. Deixamo-nos ficar assim num silêncio grande, sem mais. Não era preciso nada. (Às vezes é preciso parar para depois poder continuar.)
Parecia que a vida nos oferecia aquele momento de perfeição absoluta e nos envolvia numa poeira celeste como se suspeitasse que aquela seria uma das últimas horas de cumplicidade.
Quebraste o silêncio enquanto partilhávamos mais um de tantos cigarros clandestinos." Ontem à noite vi uma estrela cadente. Dizem que se pensarmos num desejo, ele realiza-se". Não te respondi, achava aquilo uma treta. Hoje teria dito que sim, que acreditava com muita força. Acredito que temos de nos agarrar a alguma coisa.
Já era tarde. Tínhamos de voltar para casa. Despedimo-nos e cada uma foi para o seu lado.
Durante a viagem de volta, repetia para comigo que ia voltar a ver-te em breve. Tinha a boca seca, a sensação de que se pronunciasse uma palavra que fosse, algo de mau iria acontecer. Sentia como que um punhado de cubos de gelos a invadir-me o corpo. 
Quando cheguei a casa, sentei-me sozinha no escuro da cozinha para apreciar o silêncio. O sol já há muito se tinha posto, levando-te com ele num dos seus raios.
Não podiam ter chegado de outra maneira... as palavras. Não havia forma de as adocicar. Entraram por mim adentro como punhais.Ouvi como que um barulho de vidro a quebrar e caí de joelhos.Ainda espreitei o céu à procura de uma estrela cadente, mas já não havia nada para ver.
Devia ter-te dito que sim, que acreditava nas estrelas com muita força.

I´ve seen it all, I´ve seen the dark
I´ve seen the brightness in one little spark
I´ve seen what I chose and I´ve seen what I need
And that is enough to want more would be greed
I´ve seen what I was and I know what I´ll be
I´ve seen it all- there is no more to see

(Bjork, I´ve seen it all)

26 fevereiro, 2019

O beijo de Helena e João

Por este andar não chego a tempo, pensou Helena preocupada com o trânsito. Será que ele espera? Claro que vai esperar, respondeu a si mesma, confiante. Ansiava vê-lo, mas era um desespero, a fila nunca mais se mexia.

João tinha passado dez minutos encalhado no túnel do metro. Estava nervoso, não se queria atrasar no primeiro encontro. Todo este tempo para arranjar coragem e agora isto. Sentia-se um pássaro engaiolado. 

Helena lembrou-se da primeira vez que o vira, na biblioteca da escola. Tão amoroso, tão genuíno no seu blusão de ganga. Bonito. Batia-se por um livro e ela saltou em seu socorro. Era assim, impulsiva. Ele olhou para ela como se fosse o que lhe faltava. Talvez tenha sido amor à primeira vista, pensou Helena, abrindo o sorriso quando o carro à frente avançou.

João lembrava-se bem quando conhecera Helena, o seu ataque em sua defesa. Naquele momento qualquer coisa se abrira dentro dele, quisera beijá-la. Não o fez. Anos e anos de sentimentos reprimidos, pensou. Bem, hoje é o dia, se eu sair deste maldito metro. Aproximava-se a estação junto ao rio. Olhou distraído para uma rapariga sentada à sua frente. Era naturalmente bonita da mesma forma que Helena era naturalmente deslumbrante. Olhou pela janela, para a escuridão, pensando em belos olhos escuros.

Agora que o trânsito parecia andar, Helena acalmara um pouco. Faltavam cinco para as nove e contava chegar com dez minutos de atraso. Era aceitável, pensou. Ele é tão tímido. Lembrou-se de tê-lo visto mais tarde naquele dia, no refeitório. Sorrira para ela e rapidamente sentara-se no outro lado da sala. Trocaram olhares pelo reflexo de um espelho. Se não me tivesse sentado à mesa dele no dia seguinte, pensou Helena, ainda estaríamos a olhar-nos no espelho. Os Strokes interromperam os seus pensamentos e aumentou o volume do rádio, sentindo que não se movera nos últimos cinco minutos. Começou novamente a sentir-se nervosa.

João recordava bem aquele dia e as palavras mágicas de Helena, Olá, este lugar está ocupado? A voz de Helena soara tão doce…, mas ele só conseguira murmurar em resposta. Qualquer coisa brilhara e tinham aproveitado cada segundo da conversa. Passaram a encontrar-se todos os dias na faculdade e ele sentia a falta dela nos fins-de-semana. Duas semanas depois, decidiu que tinha que ir mais longe e numa tarde de Sol convidou-a para sair. O metro chegara finalmente. Subiu apressadamente as escadas e comprou três rosas vermelhas para dar sorte ao Amor. Apressou-se, rezando para que ela lá estivesse. Já eram nove e quinze.

Helena soubera que sentia algo por ele no primeiro domingo em que acordou triste. Os seus encontros na escola começaram a ser um prazer e uma tortura. Ele parecia sempre tão distante, até que do nada, numa tarde de Sol, convidara-a a sair. Eram nove e vinte e cinco, estava a ficar exasperada. Já perto, viu uma luz branca e acelerou para o lugar, mas perdeu-o.

João olhou o relógio. Eram novo e trinta e cinco. Ela já não vem, pensou, sentindo-se frustrado, mas principalmente triste. Ela não vem, repetiu para si próprio e lentamente, sem vontade, caminhou para a paragem do autocarro.

Helena conseguira estacionar o carro a dois quarteirões de distância. Apressou-se. Meu Deus, isto não está a acontecer, pensou.

O autocarro aproximava-se e João olhou uma vez mais, mas ela não estava. Entrou, sentindo-se amargurado e prometendo a si mesmo que nunca mais cairia na armadilha do amor. O autocarro iniciou a marcha quando, pelo canto do olho, viu o passo apressado de Helena. Pare o autocarro, gritou em voz alta, mas o motorista olhou-o pelo retrovisor e ignorou-o.

Helena chegou. Estava ofegante. Ele não está, pensou, poderia ter esperado um pouco… ou talvez não tivesse vindo? Sentiu o coração a quebrar-se. Olhou para o relógio. Eram nove e quarenta e cinco.

Dentro do autocarro, João pensou rápido. Puxou a alavanca de segurança. As portas do autocarro abriram-se e o motorista travou a fundo. Os passageiros queixaram-se, o motorista protestou, mas João pulou para a rua, alheio a tudo.

Helena estava parada. Não sabia o que fazer. Não queria ir para casa, só o queria ao seu lado. "Helena". Reconheceu a voz e virou-se. João olhava-a e sorria. Ela sorriu de volta e pegou a sua mão estendida.

Beijaram-se.



21 fevereiro, 2019

Kit de sobrevivência

Bom dia!... Olá!...Como está?... Tudo bem contigo?... Como tem passado?...Essa saúde, vai andando?...
Bom dia de trabalho!... Uma semana em grande!...Bom fim de semana!... Bom descanso!...Boa sorte!...
Tudo a correr bem!...Precisando de alguma coisa, estou ao dispor...Se precisares de ajuda, apita!...
Posso fazer alguma coisa por si?...Agradeço...Obrigado(a)!...Se faz favor!...Por favor!... Pleeeaaase!...Importas-te?...Não me importo nada, é um prazer!...Sem stress, é para já!...Parabéns!...Excelente trabalho!...Grande evolução... Deixa lá isso, amanhã será melhor!...Desculpa...Se me permite!... Com licença...

(A adquirir com urgência antes da rutura de stock).

19 fevereiro, 2019

A Lua mais bela do ano

Hoje é um dia para estar na praia ou à beira de um penhasco e vermos, espantados e esmagados por tal excelência, o refulgir massivo da Lua prateando o Mar até ao infinito do nosso espírito, ou então estarmos numa floresta muito a Norte, a ouvir o uivo chorado dos lobos, repetido sempre e mais alto até aos confins das alcateias e de, massacrados pela Lua, nos encolhermos cheios do medo primevo, sem saber compreender nem questionar a nossa existência.

Contexto: Hoje vamos ter a Lua mais bela do ano. Vai ser 18% maior e 30% mais brilhante. Quem não gosta e não se derrete com uma Lua assim?

16 fevereiro, 2019

O Assombro da Ermida da Encarnação


O relato que a seguir transcrevo é tão surpreendente, que me obrigo a dispensar introduções tal a convicção com que nos é exposto:

“Junto ao local da Panasqueira, na estrada que vai para Sacavém, no ano de 1725, vindo uma noite Joseph Manzone, de Lisboa, para sua casa, que era em outro lugar de Sacavém, e trazendo consigo dez mil cruzados, lhe saíram três ladrões para tirar-lhe o dinheiro, e invocando o patrocínio de Nossa Senhora da Encarnação, instantaneamente se achou a porta da sua casa, sem saber como, nem pelo caminho por onde foi: por cujo benefício logo fez levantar um nicho no mesmo lugar com a imagem de Nossa Senhora (…)”.

Este relato é do Padre Cura Pedro de Oliveira, do lugar da Charneca, e foi tomado das Memórias Paroquiais de 1755. A narrativa prossegue com a notícia de que o prodígio motivou os fiéis e que a ermida, durante alguns anos alvo de peregrinações, foi destruída pelo terramoto de 1755 e deixada ao abandono.

Que “a fé move montanhas” já o sabíamos, é ditado popular de cunho religioso, que como tantos outros se obriga a estabelecer a ponte entre o senso comum e o credo de tradições e crenças. Que a mesma fé possibilite a tele-transporte de matéria entra no campo do maravilhoso fantástico, e necessariamente que nisso crer carece de uma contextualização social e temporal, que penso não ser este o lugar adequado para prosseguir.

Hoje em dia, físicas quânticas e outras usurparam o espaço do divino, procurando explicá-lo repetindo-o em ambientes acondicionados e estéreis, em suma, sem gente. Mas qual o português que, confrontado com a adversidade, nunca pensou ou rangeu entre dentes um esperançoso "Ai meu Deus, Deus me ajude, Deus me acuda”?

Notas

14 fevereiro, 2019

Namorava todos os dias e sabia a tudo!!!

Tinha os lábios carnudos, os olhos negros, curvas por toda ela, bela como o pecado. Sim, lembro-me bem. 

Encontrei-a em casa de um amigo que a tinha trazido da noite. Enlouqueci.

Fui mau amigo, dei-lhe a mão e ela saiu comigo e a partir desse dia fomos namorados.

Ela era chocante, vestia cores fortes e roupa agarrada às curvas onde eu me enrolava, enamorado da sua voz rouca, profunda e ousada

Um dia, puxou-me para o quarto ao lado e ao som da viola que atravessava a parede ali me perdi onde nunca me tinha perdido e onde a partir daí, sempre me quis perder. Minutos que foram crescendo para desejos a todas as horas.

Beijávamos-nos desvairados. Empurrávamos-nos às paredes e os dedos escorriam em sítios profanos. Depois, rolávamos em relvados escuros e todas as noites eram estrelas.

Uma vez, numa ardente tarde apinhada, amamos-nos sedentos de amor numa barraca de praia até rirmos sem sentido, enquanto lá fora se vendiam gelados e se faziam castelos no ar.

Depois dormimos na areia gelada e vivemos do nosso calor, amarrados como um nó.

Éramos loucos. Também um pelo outro.

Largámos-nos sem mais nem porquê, talvez num dia dos namorados de um ano qualquer.

08 fevereiro, 2019

Dá-lhes com o ritmo... e o fogo e a alma!


Lindy Hop não é para muitos nem para poucos. Só para alguns e têm que ser bons.
Fiquem-se com esta maravilha como inspiração para o fim de semana que se aproxima...

07 fevereiro, 2019

Fogo, e o Absinto, caraças!!!

Estávamos na gruta. Passávamos ali o tempo quando não havia nada que fazer, a esfumaçar, às vezes a curtir com a bébé (lê-se um primeiro bé curto e um segundo bé, açucarado e longo q.b.), sei lá, essas coisas de chavalos, a falar de filmes e música e delas, não necessariamente por esta ordem, tinha dias. A gruta era um vazado, que tinha um sítio para sentar.

O puto aparecia. Não sabíamos nada dele, só que era doido, tipo morte lenta. Para nós era o Puto B… Tinha-se chegado um dia e tinha sido adoptado, não morava por ali, mas era um curtido, sempre a arranjar e a desenrascar cenas e confusões.

Foi ele que inventou o jogo da moeda, que era atirar uma moeda ao chão e depois ver quem a apanhava no meio dos empurrões e pontapés. Era um desafio.

Bem, nesse dia chegou e disse, c@r@lho, descobri onde há absinto (a auto censura é uma coisa triste, mas já disse que prometi ao idiota do Adriano Lisboa) !!! Absinto era uma palavra mágica, tinha uma aura. Em primeiro lugar era uma bebida proibida, o que já lhe aumentava mentalmente a graduação e dizia-se que provocava alucinações e além disso era proibida (acho que já disse).

Fomos e era mesmo ao fim da rua, OMFG como se fala agora.

Era um semi-snack-bar-restaurante, com um pequeno balcão, com aqueles bancos redondos de napa. As paredes eram forradas a veludo vermelho ou coisa que o valha. Tinha umas estrelas pindéricas à porta e umas mesas que deviam ser para cavalheiros a fumar charutos, mas eram para gajos gordos a arrotar e a fumar cigarrilhas. Com as amantes, sei lá eu.

O líquido era verde, assim para o grosso. O gajo do balcão misturava aquilo com sumo de laranja de pacote. Era bom. Naquele tempo as bebidas eram todas com sumo de laranja de pacote ou coca-cola, sai um rum cola, sai um vodka laranja. Era assim. E o absinto era com laranja.

Passámos por lá uns tempos até acabar com as garrafas de absinto e o gajo do balcão, armado em barman de cinco estrelas, dizer para irmos pairar para outra banda, que estava farto de nos aturar.

Não me perguntem se alucinei com aquilo. Saíamos dali e íamos beber submarinos (um dia explico) e continuar a esfumaçar e a curtir com as bebés, por isso a alucinação fazia parte do prazer da vida.

Mas bebi... e era proibido!

03 fevereiro, 2019

O Mostrengo


O Adamastor, monstro dos nossos medos e horrores, está acorrentado no Alto de Santa Catarina, de onde mira Lisboa.  Enfraquecido pela beleza ribeirinha que se espraia à sua frente, pelos telhados do casario, pelo azul que do céu desliza e tinge as águas rutilantes do rio, o monstro mergulha em sonhos de ópio e esquece-se de nos assombrar.

Vários poetas cantaram o Adamastor. Camões, que lhe deu a forma, horrendo e lacrimoso, pintou-o assim. Pessoa dobrou o mostrengo à vontade de D. João II, pela mão do homem do leme, a quem os Xutos também recorreram para o torcer, e assim, remar contra a maré.

Percam 2 minutos a ler os poemas, vale a pena…