29 setembro, 2019

Os espaldares do Parlamento

Alberto Pimentel foi um prolífico escritor portuense do séc XIX que dedicou algumas das suas obras à capital. Detentor de um humor requintado, reporto aqui um curto trecho do seu Fotografias de Lisboa, de 1874. O texto, sobre o Parlamento, é um mimo e cai bem neste período de campanha eleitoral.

"Fui esta manhã ver as duas salas do Parlamento, das quais uma – a da Câmara dos Pares – excede tudo o que se possa esperar de opulência naquele recinto. Está-se ali tão bem que se deve adormecer por lá! Razão têm os dignos pares para dormirem há tantos anos.

Na Câmara dos Deputados o assento é menos cómodo, o espaldar menos macio. O corpo deve agitar-se constantemente, à procura de posição agradável: daí o mau humor, o falar, o ralhar muito. E há que tempos se anda a ralhar no Parlamento, sendo certo que com mais razão poderíamos nós ralhar do Parlamento." 

Era o período da Monarquia Constitucional, que subsistiu do 1º quartel da séc. XIX até à Instauração da República. O Parlamento possuía duas Câmaras, a Alta, Câmara dos Digníssimos Pares do Reino (o nome diz tudo) e a Baixa, Câmara dos Senhores Deputados da Nação Portugueza (o nome diz tudo). O número de representantes e os processos eleitorais sofreram várias alterações ao longo dos 90 anos que o sistema funcionou, mas basicamente os Pares pertenciam à Nobreza e ao Clero e os Deputados tinham que ter um avantajado rendimento líquido anual.

Nos dias de hoje, a nossa Assembleia, republicana e laica, só tem uma câmara, aquela que nós conhecemos do Canal Parlamento, e os deputados são eleitos por sufrágio universal entre os políticos e outros menos políticos. É assim mais equilibrada, mas acredito que os assentos e espaldares pouco fiquem a dever aos da Excelentíssima Câmara dos Pares e como sabemos pelos bytes mediáticos, ralhetes é o que lá não falta. 

Mas tal como os roncos que entram e saem pela boca, ou vice-versa, também os ralhetes tendem a entrar por um ouvido e sair pelo outro, ou vice-versa. 

Bem hajam e não se esqueçam de ir votar. 

Foto: parede do hall de entrada dos visitantes ao edifício

26 setembro, 2019

Desafio à participação no 1º aniversário da EGO magazine


A Ego magazine, vulgo "o Ego", celebra amanhã, dia 6 de Outubro, um ano de existência. Para nós, que aqui escrevemos com prazer e esforço, é um marco, como foi a primeira postagem que viu a luz do dia num noutro mês já distante. 

Ao fim de 365 dias de se ver a luz do dia costuma-se ser lambuzado e levar uns apertões nas bochechas e claro, receber prendas. O Ego não pede uma chucha, mas um texto em prosa ou poesia era bom. Propomos dois temas:

1- "O Ego, ai o Ego, quem o não tem que atire a primeira pedra". 
2- O que vos aprouver sobre o tópico na qualidade de constante do ser enquanto entidade consciente.

Aguardamos os vossos textos até final do mês e como só temos um ano e não vamos dar a nossa fralda de dormir, gostosamente retribuiremos com a publicação no nosso blogue.

O e-mail é adriano.lisboa.1179@gmail.com

Escrevam!!! Enviem!!!

25 setembro, 2019

Fruto Proibido

person holding green apple

Porque é que não gosto de ti?
És doce! Viçosa! Linda!
És vermelha, amarela, verde, laranja. Cores tão lindas que dão gosto olhar.
E mesmo assim nem te consigo cheirar.

Mas porquê?
Que mal me fizeste tu?
Será que foi por causa dos meus pais, do meu padre, da catequese, que me disseram que és o fruto proíbido?
Será que quando era pequeno caí dentro de um barril cheio de ti, e fiquei cheio de ti até morrer?

Ou será? Será?
Será que te acho tão perfeita que acho que sou tão imperfeito que não te mereço?
Será que fui feito para não aguentar o teu sabor por me ter feito desconfiar do que é demasiado bom?

Ficamos neste impasse.
E agora?

23 setembro, 2019

Na ponta dos dedos

Sem muitas palavras (pois não são precisas) e na ponta dos dedos, as mãos deixam estas palavras como se de sussurros se tratasse. Deixem-se então tocar...

As tuas mãos terminam em segredo

As tuas mãos terminam em segredo.
Os teus olhos são negros e macios
Cristo na cruz os teus seios (?) esguios
E o teu perfil princesas no degredo...

Entre buxos e ao pé de bancos frios
Nas entrevistas alamedas, quedo
O vento põe seu arrastado medo
Saudoso a longes velas de navios.

Mas quando o mar subir na praia e for
Arrasar os castelos que na areia
As crianças deixaram, meu amor,

Será o haver cais num mar distante...
Pobre do rei pai das princesas feias
No seu castelo à rosa do Levante!

Fernando Pessoa in Cancioneiro

18 setembro, 2019

A vingança serve-se na tola


Lisboa, finais de 70. O Sr. Freitas era o diabo, fazia-nos a vida negra, era o porteiro do liceu. Cabelo oleoso a tapar a calva, olhos encovados, nariz a segurar os óculos, bochechas para dentro, era um esparguete esticado e muito seco que usava sempre uma bata azul que lhe ficava larga. Chamávamos-lhe o "escadote".
Hoje percebo-o melhor, Devia estar para a reforma e estava farto de aturar putos, mas era abestalhado e casmurro que nem uma porta, para não lhe chamar outra coisa, coitado do homem.
Subia-se uns degraus largos. A meio estava um busto esticado para baixo de um poeta reconhecido, só lhe  faltava as pernas, numa pose eloquente de recitação, o indicador e o médio abertos onde invariavelmente alguém pousava uma beata. 
Entrava-se num pequeno átrio e o Sr. Freitas tinha do lado direito uma secretária onde não cabia. Quando estava passava o tempo a resmungar e a espingardar e quando não estava andava em missão.
O gajo conhecia-nos a todos e éramos muitos. Se trazíamos um amigo ou amiga de fora  saltava da secretária e recorrendo a um outro poeta, dizia, quem és, de onde vens, para onde vais, põe-te a andar daqui, era um cão de fila. Via quem fumava e fazia queixinhas e lá vinham os pais ao conselho diretivo. Ralhava por tudo e por nada e quando olhava-mos para trás, lá estava ele na sua bata azul como uma aparição. Corria pelo pátio aos berros se jogávamos à bola ou andávamos de skate e se apanhasse alguém nos meles, vai lá vai. O "escadote" ficava lixado porque quando voltava as costas não lhe ligávamos nenhuma. Mas controlava tudo.
Uma vez ia a entrar e o Sr. Freitas chamou-me e disse, Estou de olho em ti, és uma má influência, estou de olho em ti. Fiquei perplexo e sem palavras. Eu, Arroz Doce, um aluno exemplar, que pouco desestabilizava porque raramente ia ás aulas, dizerem-me uma coisa dessas? A mim? Devia-me ter confundido com as más companhias que teimavam em me acompanhar, que podia eu fazer? Custei a ultrapassar o trauma, mas felizmente arranjei uma psicóloga que cruzava as pernas e usava meias rendadas e as sessões eram um prazer. Um dia disse, vens aqui para te tratar, não para dar paleio. Irra, a coisa até estava a correr bem, mas acabei por me tornar uma pessoa mais ou menos normal.
Bem, resumindo, que a conversa vai longa e a vingança serve-se fria. 
O Liceu tinha um ginásio enorme, com espaldares nas paredes. Nunca vi ninguém a usar aquilo, nem sabia para que serviam. Nunca soube, não interessa. Por cima dos espaldares a luz entrava por uma janelas oscilobatentes (sei lá, é o que está no Google). Eram uma janelas pequenas, velhas da idade do liceu, que balouçavam para dentro e fechavam com um trinco em cima. 
Naquele tempo o Ministério andava a apalpar. Havia exames neste ano e no outro e depois deixava de haver. Aquele talvez fosse o exame do 10º ano. Tinham posto carteiras no ginásio, viradas para um dos lados, ou seja para uma das paredes com espaldares. Devíamos estar uns 300, mais coisa, menos coisa. O Liceu era grande. 
A meio do exame, não se ouvia uma mosca. Descai uma janela. Passados dois minutos entra o Sr. Freitas, contrafeito e esbaforido e a reclamar em surdina e nós todos a olhar para ele. Quem é que não gosta de uma distracção no meio de um exame? O "escadote" sobe o espaldar e empurra a janela para se fechar. Aquilo cai de novo e bate-lhe na tola. O homem bufa e nós sorrimos. Empurra-a uma segunda vez com mais força e a cena repete-se, pimba na careca. O homem está passado e nós riamos pois o que se havia de fazer, era o Sr Freitas a levar na tola. Por último o Sr. Freitas, a espumar, bate com a janela com toda a força e ela fecha. Não sei como não partiu o vidro. 
Desceu o espaldar e a meio caminho para a saída, a janela abre de novo. Olha-a com olhos de demência e sai-lhe um pró raio com esta merda toda e vai-se embora. A janela ficou aberta e deviam-nos ter dado mais quinze minutos para o exame, que foi o tempo que ficámos às gargalhadas. Cá se fazem, cá se pagam,

16 setembro, 2019

Intermitências

Há já um tempo que os dias acordam cinzentos. O sol anda tímido, parece assustado. Aparece e esconde-se pouco depois atrás das nuvens.
Tive de vir para a rua. Sentei-me no primeiro café que encontrei e ali fiquei a olhar pela janela durante muito tempo. Queria escapar ao silêncio assustador das paredes lívidas e envolver-me  no tumulto dos dias. Mas acabei aqui. Pouco me tem apetecido fazer, a não ser lembrar-te com intermitências. Já não consigo isolar o teu rosto dos outros e relacioná-lo com os momentos vividos. Os teus traços vão-se diluindo num nevoeiro espesso. Fecho os olhos, mas de nada adianta. As imagens desfilam desfocadas, mudas. O peso de uma sombra abate-se sobre elas. O silêncio apressa-se a regressar. Procuro recuperar alguma lucidez.
 Havia já muito que não te escrevia uma linha, não tinha sido preciso. Hoje é…muito.
Queria escrever uma coisa. Escrevi outra.

14 setembro, 2019

Ritual

person walking on beach during daytime

Ainda é de noite mas já cá estás.
Com uma toalha na areia sentas-te, aguardas o amanhecer.

Sentes frustração.
Sentes cansaço.
Sentes dor que perdura.
Sabes que só uma coisa te pode ajudar.

Um ritual que para ti é só teu, pois a ninguém o segredaste.
Cada ano viajas milhares de quilómetros só para isto.

A tua cura.

Amanhece.
A brisa matinal eriça a pele, o sol acaricia.
Sabes que a hora chegou.

Tiras a camisola, descalças os chinelos.
Corres, porque a maré está baixa.
Corres, porque não podes pensar no frio que te está a subir pelas pernas.

E finalmente:
SPLASH!

Um choque eléctrico corre inumeras vezes nas tuas veias.
Um abraçar plenamente frio e amoroso.
Um desligar e ligar do botão do teu corpo submergido.
Ser um com o universo.

Fechas os olhos e deixas-te estar.
O teu ritual.
O teu acordar.

12 setembro, 2019

O contador de histórias


Tinha acordado cedo. Ainda o dia não tinha clareado, já estava fora da cama fazia muito. De cara lavada, cabelo penteado e com o vestido branco das flores azuis, aguardava sentada que as horas passassem depressa. Era segunda-feira e naquele dia, ia à escola o contador de histórias. Só lá ia uma vez por mês, logo na primeira semana, sempre no mesmo dia. Para a maior parte dos meus colegas, o fim de tarde de domingo era motivo de tristeza, pois havia escola no dia seguinte. Dentro de mim, ao contrário, crescia um sentimento de frenesim. Passava os fins de semana a brincar sozinha no quarto por entre a bonecada e os livros, envolta num silêncio que procurava quebrar com histórias inventadas e monólogos partilhados com as bonecas, os ursos de pelúcia e os alunos imaginários. Ir à escola era como que uma salvação, eram cinco dias de remédio contra a solidão. Desde o primeiro dia que gostava daquela rotina de entrar na sala de aula, tirar o material da pasta, sentar-me na carteira de madeira, abrir o caderno e escrever fosse o que fosse numa caligrafia desenhada e limpa. Lembro-me de desejar tanto aprender a ler que fiquei com febre da ansiedade no primeiro dia de aulas. Aprendi depressa a juntar as sílabas porque tinha de passar rapidamente à fase seguinte de decifrar palavras maiores e de compreender o sentido dos textos. Cansara-me de “ler” livros de cabeça para baixo e de inventar histórias com base nas ilustrações coloridas. Sabia que aquilo que contava aos ouvintes do meu quarto era tudo mentira e carregava um sentimento de culpa por estar a enganá-los. Queria contar histórias a sério. Assim, quando a professora nos disse que iríamos receber a visita de um senhor que viria contar uma história uma vez por mês, durante todo o ano letivo, fiquei esfuziante. A primeira vez que entrou na sala de aula, nos cumprimentou, nos mandou tirar os sapatos e sentar pernas à chinês por entre as almofadas do cantinho da leitura, fiquei de boca aberta. Mas que raio se iria passar ali? Pediu-nos então que fechássemos os olhos por um bocadinho, que respirássemos fundo e que tirássemos todo o peso de cima de nós. Não percebia nada daquela conversa e embora impaciente, fiz o meu melhor para atender ao pedido. E aí começou a magia. Com uma voz calma e algo melodiosa, iniciou a narração da história de uma bruxa que vivia num armário onde se guardavam as vassouras. Lembro-me de visualizar todos os momentos da narrativa, embora ele só tivesse mostrado as ilustrações no final. Através das palavras, trazia para dentro da sala as personagens, as cores, os cheiros e o mais importante de tudo as emoções. Hoje, julgo que também ele era um mago disfarçado que tinha como missão encantar-nos com o feitiço das histórias. Assim que percebia que a história chegava ao fim, crescia em mim a tristeza, pois o contador estava prestes a terminar a sua tarefa e só viria passados muitos dias. Embora soubesse que tinha de ser, não me queria despedir dele, nem do seu mundo de fantasia. Temia que não voltasse e que as histórias se esfumassem.

Agora, percebo que o fim das histórias não precisa de ser uma despedida e que estas não desaparecem quando se fecha o livro. Enquanto houver palavras e sentimentos para partilhar, a imaginação encarrega-se de ir à procura das personagens, das cores, dos cheiros e das emoções e tudo brota de novo.


10 setembro, 2019

Memória


Tenho na memória um camião de brincar.
Ou será real?
Difícil distinguir, com certeza eu brincava com ele.
Nos meus sonhos tem uma impressão distinta, quadro que com cada leve golpe pega a tinta e se desfaz em intenção.
Grande, imponente, um forte azul tingia toda a sua fachada. Conduzido ao lado do mar poderia até confundir algumas gaivotas.
Assim é a memória que, com intenção de artista se cria, e com o tempo se transforma na interpretação de quem o vê, um futuro eu. Observador imperfeito cujas experiências metade guardadas, sombria amálgama do passado, pegam á memória e corrompem a leitura como imperfeitas lentes.
O contexto perdido ao tempo é uma maldição e uma benção, será que me queria lembrar de tudo? Não, viver no passado por vezes é uma desculpa para evitar o presente. Agradeço esta imperfeição para conseguir andar em frente, não remoer ao infinito cada detalhe.
Se há algum que não concorde com o meu bem estar? Substituo por outro.
Quem se queixa senão o futuro eu, cujo contexto não lhe permite distinguir qual o original.
Ah! Como é etérea a realidade!
Momento a momento todo o passado se perde, guardado apenas nas consequências do seu acontecimento.

08 setembro, 2019

Os emigrantes pt6 - A partida

Começam a partir aos poucos. Levam chouriços, garrafões de vinho da terra, que esse é que é do bom, e alguns um presunto rijo e salgado, que os pais andaram a curar o ano inteiro e que é uma bênção dos Céus. 

Chegou a vez do Quim, que tem uma viagem de mil e tal quilómetros pela frente. Leva uma grade no tejadilho cheia de coisas da terra, até um saco com laranjas, que ali não são muito doces, mas mesmo assim são melhores que as de lá e é quando as há. Alguns amigos vêm despedir-se. Do padrinho já se despediu ontem. A família chora, a mãe, a mulher. Os jovens e os pequenitos beijam os avós, que às escondidas lhes dão dez escudos e dizem toma é para comeres um gelado e aconchegam-nos no peito. Querem que os netos gostem deles como eles gostam dos netos, mas os miúdos levam poucas recordações, já só pensam nas escolas e nos namoros donde nasceram.

A mãe não larga o Quim e a nora soluçando Nosso Senhor vos dê muita saúde, e o Quim sossega-a, ó mãe não tarda já estamos aí outra vez, e o pai seco, a suster o lacrimejo porque um homem não chora, puxa-o e abraça-o, boa viagem Quim, volta depressa, vem ver os velhotes! Saúde por cá meu pai, voltaremos sim. Entram finalmente no carro e ficam a dizer adeus uns aos outros enquanto não passam a ponte da ribeira e entram na estrada alcatroada, onde a primeira curva corta a vista. 

A Rosarinho do João Maria desfaz-se em lágrimas agarrada aos filhos, porque entretanto chegou a "carta de chamada" da França, para o passaporte de emigrante, enviada por um sócio do primo. A vizinha diz-lhe, não chores, o meu também por lá anda todo contente, palavras que não valem nada, bem ela sabe o que passou quando ele foi pela primeira vez. Ao ver o carro do primo a afastar-se, a Rosarinho aperta mais os filhos e agora todos choram, para onde vai o pai? pergunta o mais pequeno. Ela só pensa, para onde irá o meu homem? Deixa-me aqui, nesta escuridão, nesta terra perdida, poeirenta, acabada. Ele não olha para trás.

Com as idas parece que o verão vai acabando e o nevoeiro do outono se instala.Os velhos parece que ficam mais velhos na sua solidão. Têm conversa para algum tempo, mas depois é esperar ansiosamente por uma carta, que chamam o primo para ler, ou uma chamada para o posto público.

Chegou o inverno. As mulheres e os homens da aldeia rezam e repetem promessas à Virgem, cada um à sua maneira, para que os filhos e a família que andam emigrados estejam bem de saúde e que nada lhes falte, que isso é que é importante, se Deus quiser. 

As saudades são muitas e apertam o peito que doí até correrem lágrimas, mas alguns virão pelo Natal, um raio de sol na chuva fria.

06 setembro, 2019

Os emigrantes pt5 - A Procissão

Naqueles dias da Festa de Nossa Senhora a Igreja é de todos. O padre anda no rodopio das missas e às vezes encafua a encomenda de três ou quatro almas na mesma celebração. Aproveita para dizer que a casa precisa de obras, mas todos sabem que naquela terra de gente pobre a paróquia é rica, graças a Deus os que andam lá fora fazem gala disso, por isso as palavras do padre não caem em saco roto. O cesto das esmolas passa cheio e os que se confessaram, quando a liturgia condena os pecadores sentem-se comprometidos e arrependidos de não ter deixado um pouco mais nas esmolas. Mas quem não peca nesta vida?

A procissão da Virgem sai da capela de seu nome, Capela da Ribeira da Virgem, que naqueles dias brilha por dentro e foi pintada por fora. Conta-se que dois trabalhadores do campo, nos idos dos tempos, ouviram uma música muito bela como a dos anjos e foram conduzidos a uma ribeira, onde a Virgem de pé nas águas os abençoou. O milagre deu início à procissão e passados uns anos, um proprietário muito rico desviou a ribeira a montante e assoreou as terras onde mandou construir a capela. Provou-se que fora mesmo um milagre, pois nem nos anos das maiores chuvadas a ribeira voltou ao leito e inundou a capela, graças a Deus e a Nossa Senhora.

A procissão é pela hora do calor e de manhã as famílias visitam o cemitério. Algumas dizem aos miúdos para não entrarem, mas alguns entram, alguns com muito medo, principalmente os que nasceram ou cresceram lá fora e que nunca viram os sítios onde os mortos se deitam. Limpam-se as campas, mudam-se as flores e reza-se e chora-se. Houve quem partisse e não voltasse a tempo de rever o pai ou a mulher e que recebesse a notícia por telegrama - O teu pai morreu - só assim porque cada letra é cara, e só agora possa fazer o luto da despedida. O coveiro vai recebendo uns tostões à parte e promete que vai limpar e cuidar bem desta ou daquela campa, mas para ele, rapaz novo que mal os conheceu em pessoas, os mortos são todos iguais, são ossos.

Duas horas antes da procissão a Capela da Virgem está cheia. O Padre conduz a última liturgia e todos são abençoados. Ouvem-se choros, de quem se lembra da realidade da vida e fazem-se já promessas para o próximo ano. O incenso é aceso e o padre balança o turíbulo deixando uma áurea do sagrado na capela e também alguma tosse. O Corpo e o Sangue são repartidos e todos os que se sentem em paz com a sua alma comungam. A cerimónia acaba e sai-se ordeiramente e em silêncio e espera-se cá fora pela saída da Santa, enquanto o padre no interior e os apalavrados bem como aquelas mulheres da aldeia do seu trato e  algumas de fora que têm essa honra, dão os últimos jeitos no palanque e nas vestes da imagem da Virgem.

A imagem de Nossa Senhora é enorme. Os quatro homens que seguram o palanque custam a sustenta-lo. São homens de promessas, alguns vão descalços e há quem vá de joelhos pelo meio do chão arenoso e poeirento. Cada um encara a fé à sua maneira, mas o caminho é longo, da capela da ribeira à igreja e volta. 

Não se parte logo. O palanque é assente no chão e o manto da Virgem vai-se cobrindo de notas. Os devotos aproximam-se ou mandam um pequeno prender com um alfinete uma nota de 20 ou 50 escudos. Também há algumas de 100 e lá no meio uma de 500 salta à vista de todos, principalmente dos que passam um ano sem receber isso. Talvez seja de alguém da Suiça ou do Luxemburgo, onde se diz que se ganha muito mais que em Paris ou Frankfurte. Na verdade a vida é dura em todo o sítio e também os da aldeia pagam o que devem à Senhora, com uma nota de 20 escudos ou umas moedas no cesto das esmolas, porque é preciso não esquecer os tempos de fome. Mas agora não é para pensar nisso, é um dia santo.

Saída da capela a procissão alonga-se e o padre, à sombra de um pendor levado por quatro almas, vai repetindo uma ladainha e abençoando os que vê ao passar, que descobrem a cabeça e se benzem. As mulheres não descobrem a cabeça, todas elas a cobrem com um lenço e assim o farão ainda muitos anos. A procissão chega à igreja da aldeia e no átrio para-se e reza-se um terço e segue-se de novo para a Capela da Ribeira da Virgem. Pelo caminho há quem se sinta mal e tenha que largar a procissão, mas sente mais a vergonha e o receio do futuro por não a ter acabado do que a dor que lhe tolhe os membros. 

Volta-se às casas com um sentido de dever cumprido, de promessas pagas e com a Festa terminada.

Pt1 - A saudade
Pt2 - A chegada
Pt3 - As férias
Pt4 - A Festa

04 setembro, 2019

Os emigrantes pt4 - A Festa

Entretanto chegam os dias da Festa de Nossa Senhora. A Igreja e a Associação das Festas assumem os comandos. A primeira encarrega-se das devoções, o padre não tem paz, enchem-se as horas de missas, encomendam-se as almas, há casamentos, baptizados e se há um funeral naquela altura é ainda mais triste, e não nos podemos esquecer da Procissão da Virgem, que para a Igreja é o ponto alto dos festejos.

A segunda toma a seu cargo o engalanar da aldeia, a feira que também é de gado, as brincadeiras, a corrida dos burros e a dos tabuleiros, o jogo entre solteiros e casados e o mais importante, o baile, sem esquecer os foguetes. Em conjunto providenciam para que nada falte naquela semana entre o religioso e o profano. 

Na feira os tendeiros vendem bugiganga e ninharias, talheres, pratos de latão e púcaros, brinquedos de madeira, enxadas, cabrestos para o gado que já enche o vale. Há os que vendem roupa, porque aparece sempre um homem que compra umas calças ou uma camisa, ou uma mulher, das que têm máquina de costura, que compra um corte de tecido. É também por esses dias que se compram chinelos para a miudagem, que os irão depois ferrar na ferraria. Também há uma senhora numa camionete a gritar num megafone, que oferece isto, mais isto, mais isto, pelo preço só disto. 

Os homens estão numa taberna de tábuas, à entrada da feira, e começam nos copos logo de manhã. Contam-se anedotas e histórias e vem sempre à baila a do Zé Canhoto, que por escrever ao contrário a professora dizia que era burro e castigava-o com reguadas. Ora o pobre do Zé vendera um burro velho aos ciganos e comprara-o de volta tosquiado e só percebeu quando chegou a casa e disse à mulher, este não é burro é esperto, já sabe o caminho de casa e a mulher chamou-lhe todos os nomes. É uma galhofa na taberna , mesmo já sabendo a história de cor. Ninguém sabe se foi verdade, mas é como as bruxas, que as há, há, e bebe-se mais um copo. Os tendeiros trouxeram este ano uma novidade, corridas de furões e os homens apostam enquanto as mulheres vão às rifas com os miúdos. 

Os burros vêm de novo à baila, faz-se uma corrida e o vencedor ganha o direito da moça dos seus olhos usar a sua fita no baile, se os pais deixarem. Nem sempre deixam e elas ás vezes não gostam, porque o seu coração inclina-se para outro, mas já tinham feito uma corrida com um bolo à cabeça e entre risos, também elas deram a comer do seu bolo ao escolhido, por isso a coisa estava mais ou menos apalavrada. 

No jogo dos solteiros e casados, os que se safam são os guarda-redes, porque os outros pouco conseguem correr quanto mais acertar na baliza. Mas há um moço que joga na regional e lá marcou três golitos aos casados que bufavam, seria da barriga? Ainda conseguem marcar um golo e é festa como se tivessem ganhado.

Entretanto fazem-se amizades entre os mais novos. Os que vêm de fora mostram os rádios com cassetes, as calças de ganga, as sapatilhas com sola de catchu. Os da terra olham com inveja. Os meninos das franças também distribuem beijos pelas moças da aldeia, com quem todas sonham entre juras de amor, para as tirar dali e ver outros mundos. Ás vezes fala-se de gravidezes, que só se notam depois da partida deles, mas aí é uma questão de honra, um código que as famílias têm que seguir, os homens chegam-se à frente, o rapaz tirou-lhe a mocidade tem que casar, nem que seja por procuração. E assim se faz, muitos deles voltam já os filhos deixaram a mama e vêm bem a mulher pela primeira vez. As meninas francesas não, seguem os conselhos das mães, não ligam para os rapazes de terra que andam de boina e de camisa coçada, mas há sempre uma mais afoita que dança com todos no baile e com quem todos querem dançar. 

E é à noite que a Festa ganha essa alma, com as três noites de bailarico ao som da concertina ou no dia grande ao som de uns que vêm da cidade e tocam guitarras e pífaros. A música é igual todos os anos não que isso seja importante, os pares dançam toda a noite, pagaram o bilhete para entrar e dançar e não é sempre que se podem encostar. Há quem pague o bilhete só para entrar, que é mais barato e que só dá para sentar nas mesas em volta. É mais as mães para vigiar os dançarinos, que quando querem namoriscar empurram-se uns para o meio dos outros. Os homens bebem e comem petiscos e não querem saber disso, é coisa para as mulheres verem.

Mais ou menos a meio da noite apanham um susto. O fogueteiro lança os foguetes. São canas com um pacote de pólvora atado e um rastilho. O homem segura a cana com uma mão e com a outra um cigarro e entre passas vai dando fogo aos rastilhos. A foguete sobe e estoura e todos acham bonito e os miúdos vão à procura das canas, é como um troféu. De madrugada a fanfarra percorre a aldeia a acordar os dorminhocos, porque não são dias para sonos. 

E assim se passam os dias da Festa de Nossa Senhora. Sabemos que os dias de alegria passam sempre mais rápido, mas também ficam as recordações e os homens e as mulheres que vieram e os de cá são capazes de dizer, lembras-te da festa, acho que foi em 63, foi sim, o ano que veio cá o Armando, que o Matias caiu do burro. Todos se riem, porque a primeira razão, há quem diga que é a única, que leva ao riso é o ridículo.

pt1 - A saudade
pt2 - A chegada
pt3 - As férias 


02 setembro, 2019

Os emigrantes pt3 - As férias


Os homens reencontram-se. Bebem copos com os familiares e os amigos e adiam as querelas. Os de cá dizem porra pá, estás gordo como um bácoro, e um outro reforça, é só toucinho, já não sabes pegar na enxada. Picam o Quim "da Alemanha", pareces uma vara, as alemãs desgraçam-te! e ele rebate desde que a vara não murche, e entre gargalhadas conta pela centésima vez que as gajas são todas louras, mesmo por baixo e aponta, e que fazem em todo o lado, ele também já fez, até no meio de uma ponte do comboio. Ficaram à rasca das costas, manga o Manel da Lage, mas o "alemão" não se fica, eu não, fiquei sempre em cima, e a risota é geral. Este Quim gosta de pagar rodadas e de contar anedotas, é uma alegria.

Mas é homem sério, chegado às suas gentes e não se esqueceu de ir pedir a bênção ao seu padrinho de baptizado, beijar-lhe a mão e abraça-lo e receber as "amêndoas" da Festa, que tanto custou ao velho a juntar. Ia a dizer meu padrinho, não é preciso, mas arrependeu-se a meio caminho e ainda bem, o velho segura-lhe a cabeça entre as mãos e puxa-o para si. Com a lágrima ao canto do olho, porque os homens não choram, diz-lhe cuida da tua família Quim, a família é tudo, Deus vos dê saúde. O Quim promete e é promessa para cumprir, a família é o seu mundo, para isso funde ferro naquelas terras de gentes que não percebe. O trabalho é duro, mas graças a Deus é todo pago.

Revêm-se antigos amores, ela murmura, eu esperei por ti, tu não esperaste por mim, e ele não sabe o que dizer pois é a vida, tinha que continuar e responde tenho mulher e um filho, tu tens um homem que te ampara, e seguem caminho os dois tristes, mas um mais que o outro. O amor também existe, mas é como um filme, tão perto e tão longe e às vezes falha-se a sessão. Também os noivos se encontram e quando há casório na altura da Festa de Nossa Senhora, toda a aldeia festeja a dobrar.

Junta-se a família à lareira, as noites são sempre frias. Contam-se histórias de rebanhos e de lobos e também das terras que não dão nada, só ficámos os velhos, e a mãe continua com doçura o teu pai quebra as costas na terra, mata-se, na esperança que o filho diga e diz ó pai, já não precisa de se matar a trabalhar, pare um bocadinho, tem que se poupar e tomar conta da mãe, mas o velho de sobrolho carregado responde, ainda sei da minha vida, sei bem o que fazer, e mais à noite ralha com palavras brutas enquanto ela se encolhe na cama, ainda tenho duas mãos para trabalhar! Orgulho de velho.

Fala-se também dos que tiveram que fugir, dos que foram a salto em grupos ou sozinhos pela raia como contrabandistas, com uma sacola ao ombro por vales e montes, caçados pela Guarda deste lado e recebidos a tiro pela Guardia do outro lado. Fala-se do frio na Suiça e que nevou em Paris, da pinga francesa que não presta, dos espanhóis que são de desconfiar, das suas pesetas que não prestam e dos francos e marcos que valem o mundo em Portugal. Falam de uma coisa dos países onde vivem chamada Democracia e que toda a gente pode falar com toda a gente e dizer o que pensa e votar. Estas conversas deixam os velhos assustados, não falem nisso, que passou aí a Guarda. Eles riem, mas sabem bem a diferença entre viver pobre em Portugal e pobre em liberdade e as conversas mudam.

Há também quem tenha o bichinho da pesca ou da caça. Então as espingardas meu pai, estão prontas? Estão ali à tua espera Zé, trouxeste os cartuchos? Sim, tinha-os trazido, aqui em Portugal são caros, e também trouxe zagalotes para os javalis, coisa que o pai nunca tinha visto, mas diz do animal, andam por aí. Num dia, ainda não é madrugada, saem de roupa velha e botas de cardas e vão de carro até à mata com os cães, que começou a época das rolas. Os pescadores empatam as canas, com novos anzóis e iscos com penas, mas é só risos, isso não presta, o que nos vai safar é isto, diz o pai do Sabino e mostra as minhocas num frasco cheio de terra. Sabe os pegos onde o peixe anda e aí vão eles, mais um neto que cedo se aborrece da cana e fica a fazer festas com o dedo aos peixes na cesta. No fundo é celebração porque na bagageira está um garrafão de verde e pães, chouriços e queijo que as mulheres enrolaram nuns panos. 

É preciso tirar as licenças que para os velhos são caras porque é só para quinze dias, mas anda sempre por aí venatória, é melhor não arriscar e a nora remata a conversa, ó ti Serafim, não se preocupe, é para isso que o seu filho anda a trabalhar na França, para que nada nos falta, graças a Deus. Não fala do seu trabalho de costura que faz para uma senhora portuguesa que faz para uma senhora francesa, fechada em casa todos os dias e sem fins de semana, a tratar do marido e dos filhos. O trabalho das mulheres não conta, não é trabalho, é servir.