06 setembro, 2019

Os emigrantes pt5 - A Procissão

Naqueles dias da Festa de Nossa Senhora a Igreja é de todos. O padre anda no rodopio das missas e às vezes encafua a encomenda de três ou quatro almas na mesma celebração. Aproveita para dizer que a casa precisa de obras, mas todos sabem que naquela terra de gente pobre a paróquia é rica, graças a Deus os que andam lá fora fazem gala disso, por isso as palavras do padre não caem em saco roto. O cesto das esmolas passa cheio e os que se confessaram, quando a liturgia condena os pecadores sentem-se comprometidos e arrependidos de não ter deixado um pouco mais nas esmolas. Mas quem não peca nesta vida?

A procissão da Virgem sai da capela de seu nome, Capela da Ribeira da Virgem, que naqueles dias brilha por dentro e foi pintada por fora. Conta-se que dois trabalhadores do campo, nos idos dos tempos, ouviram uma música muito bela como a dos anjos e foram conduzidos a uma ribeira, onde a Virgem de pé nas águas os abençoou. O milagre deu início à procissão e passados uns anos, um proprietário muito rico desviou a ribeira a montante e assoreou as terras onde mandou construir a capela. Provou-se que fora mesmo um milagre, pois nem nos anos das maiores chuvadas a ribeira voltou ao leito e inundou a capela, graças a Deus e a Nossa Senhora.

A procissão é pela hora do calor e de manhã as famílias visitam o cemitério. Algumas dizem aos miúdos para não entrarem, mas alguns entram, alguns com muito medo, principalmente os que nasceram ou cresceram lá fora e que nunca viram os sítios onde os mortos se deitam. Limpam-se as campas, mudam-se as flores e reza-se e chora-se. Houve quem partisse e não voltasse a tempo de rever o pai ou a mulher e que recebesse a notícia por telegrama - O teu pai morreu - só assim porque cada letra é cara, e só agora possa fazer o luto da despedida. O coveiro vai recebendo uns tostões à parte e promete que vai limpar e cuidar bem desta ou daquela campa, mas para ele, rapaz novo que mal os conheceu em pessoas, os mortos são todos iguais, são ossos.

Duas horas antes da procissão a Capela da Virgem está cheia. O Padre conduz a última liturgia e todos são abençoados. Ouvem-se choros, de quem se lembra da realidade da vida e fazem-se já promessas para o próximo ano. O incenso é aceso e o padre balança o turíbulo deixando uma áurea do sagrado na capela e também alguma tosse. O Corpo e o Sangue são repartidos e todos os que se sentem em paz com a sua alma comungam. A cerimónia acaba e sai-se ordeiramente e em silêncio e espera-se cá fora pela saída da Santa, enquanto o padre no interior e os apalavrados bem como aquelas mulheres da aldeia do seu trato e  algumas de fora que têm essa honra, dão os últimos jeitos no palanque e nas vestes da imagem da Virgem.

A imagem de Nossa Senhora é enorme. Os quatro homens que seguram o palanque custam a sustenta-lo. São homens de promessas, alguns vão descalços e há quem vá de joelhos pelo meio do chão arenoso e poeirento. Cada um encara a fé à sua maneira, mas o caminho é longo, da capela da ribeira à igreja e volta. 

Não se parte logo. O palanque é assente no chão e o manto da Virgem vai-se cobrindo de notas. Os devotos aproximam-se ou mandam um pequeno prender com um alfinete uma nota de 20 ou 50 escudos. Também há algumas de 100 e lá no meio uma de 500 salta à vista de todos, principalmente dos que passam um ano sem receber isso. Talvez seja de alguém da Suiça ou do Luxemburgo, onde se diz que se ganha muito mais que em Paris ou Frankfurte. Na verdade a vida é dura em todo o sítio e também os da aldeia pagam o que devem à Senhora, com uma nota de 20 escudos ou umas moedas no cesto das esmolas, porque é preciso não esquecer os tempos de fome. Mas agora não é para pensar nisso, é um dia santo.

Saída da capela a procissão alonga-se e o padre, à sombra de um pendor levado por quatro almas, vai repetindo uma ladainha e abençoando os que vê ao passar, que descobrem a cabeça e se benzem. As mulheres não descobrem a cabeça, todas elas a cobrem com um lenço e assim o farão ainda muitos anos. A procissão chega à igreja da aldeia e no átrio para-se e reza-se um terço e segue-se de novo para a Capela da Ribeira da Virgem. Pelo caminho há quem se sinta mal e tenha que largar a procissão, mas sente mais a vergonha e o receio do futuro por não a ter acabado do que a dor que lhe tolhe os membros. 

Volta-se às casas com um sentido de dever cumprido, de promessas pagas e com a Festa terminada.

Pt1 - A saudade
Pt2 - A chegada
Pt3 - As férias
Pt4 - A Festa

2 comentários:

  1. Respostas
    1. Obrigado Filipa. Foi complicado, mas também deu-me prazer escrevê-lo. É compensador sabê-lo apreciado.

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