12 setembro, 2019

O contador de histórias


Tinha acordado cedo. Ainda o dia não tinha clareado, já estava fora da cama fazia muito. De cara lavada, cabelo penteado e com o vestido branco das flores azuis, aguardava sentada que as horas passassem depressa. Era segunda-feira e naquele dia, ia à escola o contador de histórias. Só lá ia uma vez por mês, logo na primeira semana, sempre no mesmo dia. Para a maior parte dos meus colegas, o fim de tarde de domingo era motivo de tristeza, pois havia escola no dia seguinte. Dentro de mim, ao contrário, crescia um sentimento de frenesim. Passava os fins de semana a brincar sozinha no quarto por entre a bonecada e os livros, envolta num silêncio que procurava quebrar com histórias inventadas e monólogos partilhados com as bonecas, os ursos de pelúcia e os alunos imaginários. Ir à escola era como que uma salvação, eram cinco dias de remédio contra a solidão. Desde o primeiro dia que gostava daquela rotina de entrar na sala de aula, tirar o material da pasta, sentar-me na carteira de madeira, abrir o caderno e escrever fosse o que fosse numa caligrafia desenhada e limpa. Lembro-me de desejar tanto aprender a ler que fiquei com febre da ansiedade no primeiro dia de aulas. Aprendi depressa a juntar as sílabas porque tinha de passar rapidamente à fase seguinte de decifrar palavras maiores e de compreender o sentido dos textos. Cansara-me de “ler” livros de cabeça para baixo e de inventar histórias com base nas ilustrações coloridas. Sabia que aquilo que contava aos ouvintes do meu quarto era tudo mentira e carregava um sentimento de culpa por estar a enganá-los. Queria contar histórias a sério. Assim, quando a professora nos disse que iríamos receber a visita de um senhor que viria contar uma história uma vez por mês, durante todo o ano letivo, fiquei esfuziante. A primeira vez que entrou na sala de aula, nos cumprimentou, nos mandou tirar os sapatos e sentar pernas à chinês por entre as almofadas do cantinho da leitura, fiquei de boca aberta. Mas que raio se iria passar ali? Pediu-nos então que fechássemos os olhos por um bocadinho, que respirássemos fundo e que tirássemos todo o peso de cima de nós. Não percebia nada daquela conversa e embora impaciente, fiz o meu melhor para atender ao pedido. E aí começou a magia. Com uma voz calma e algo melodiosa, iniciou a narração da história de uma bruxa que vivia num armário onde se guardavam as vassouras. Lembro-me de visualizar todos os momentos da narrativa, embora ele só tivesse mostrado as ilustrações no final. Através das palavras, trazia para dentro da sala as personagens, as cores, os cheiros e o mais importante de tudo as emoções. Hoje, julgo que também ele era um mago disfarçado que tinha como missão encantar-nos com o feitiço das histórias. Assim que percebia que a história chegava ao fim, crescia em mim a tristeza, pois o contador estava prestes a terminar a sua tarefa e só viria passados muitos dias. Embora soubesse que tinha de ser, não me queria despedir dele, nem do seu mundo de fantasia. Temia que não voltasse e que as histórias se esfumassem.

Agora, percebo que o fim das histórias não precisa de ser uma despedida e que estas não desaparecem quando se fecha o livro. Enquanto houver palavras e sentimentos para partilhar, a imaginação encarrega-se de ir à procura das personagens, das cores, dos cheiros e das emoções e tudo brota de novo.


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