18 setembro, 2019

A vingança serve-se na tola


Lisboa, finais de 70. O Sr. Freitas era o diabo, fazia-nos a vida negra, era o porteiro do liceu. Cabelo oleoso a tapar a calva, olhos encovados, nariz a segurar os óculos, bochechas para dentro, era um esparguete esticado e muito seco que usava sempre uma bata azul que lhe ficava larga. Chamávamos-lhe o "escadote".
Hoje percebo-o melhor, Devia estar para a reforma e estava farto de aturar putos, mas era abestalhado e casmurro que nem uma porta, para não lhe chamar outra coisa, coitado do homem.
Subia-se uns degraus largos. A meio estava um busto esticado para baixo de um poeta reconhecido, só lhe  faltava as pernas, numa pose eloquente de recitação, o indicador e o médio abertos onde invariavelmente alguém pousava uma beata. 
Entrava-se num pequeno átrio e o Sr. Freitas tinha do lado direito uma secretária onde não cabia. Quando estava passava o tempo a resmungar e a espingardar e quando não estava andava em missão.
O gajo conhecia-nos a todos e éramos muitos. Se trazíamos um amigo ou amiga de fora  saltava da secretária e recorrendo a um outro poeta, dizia, quem és, de onde vens, para onde vais, põe-te a andar daqui, era um cão de fila. Via quem fumava e fazia queixinhas e lá vinham os pais ao conselho diretivo. Ralhava por tudo e por nada e quando olhava-mos para trás, lá estava ele na sua bata azul como uma aparição. Corria pelo pátio aos berros se jogávamos à bola ou andávamos de skate e se apanhasse alguém nos meles, vai lá vai. O "escadote" ficava lixado porque quando voltava as costas não lhe ligávamos nenhuma. Mas controlava tudo.
Uma vez ia a entrar e o Sr. Freitas chamou-me e disse, Estou de olho em ti, és uma má influência, estou de olho em ti. Fiquei perplexo e sem palavras. Eu, Arroz Doce, um aluno exemplar, que pouco desestabilizava porque raramente ia ás aulas, dizerem-me uma coisa dessas? A mim? Devia-me ter confundido com as más companhias que teimavam em me acompanhar, que podia eu fazer? Custei a ultrapassar o trauma, mas felizmente arranjei uma psicóloga que cruzava as pernas e usava meias rendadas e as sessões eram um prazer. Um dia disse, vens aqui para te tratar, não para dar paleio. Irra, a coisa até estava a correr bem, mas acabei por me tornar uma pessoa mais ou menos normal.
Bem, resumindo, que a conversa vai longa e a vingança serve-se fria. 
O Liceu tinha um ginásio enorme, com espaldares nas paredes. Nunca vi ninguém a usar aquilo, nem sabia para que serviam. Nunca soube, não interessa. Por cima dos espaldares a luz entrava por uma janelas oscilobatentes (sei lá, é o que está no Google). Eram uma janelas pequenas, velhas da idade do liceu, que balouçavam para dentro e fechavam com um trinco em cima. 
Naquele tempo o Ministério andava a apalpar. Havia exames neste ano e no outro e depois deixava de haver. Aquele talvez fosse o exame do 10º ano. Tinham posto carteiras no ginásio, viradas para um dos lados, ou seja para uma das paredes com espaldares. Devíamos estar uns 300, mais coisa, menos coisa. O Liceu era grande. 
A meio do exame, não se ouvia uma mosca. Descai uma janela. Passados dois minutos entra o Sr. Freitas, contrafeito e esbaforido e a reclamar em surdina e nós todos a olhar para ele. Quem é que não gosta de uma distracção no meio de um exame? O "escadote" sobe o espaldar e empurra a janela para se fechar. Aquilo cai de novo e bate-lhe na tola. O homem bufa e nós sorrimos. Empurra-a uma segunda vez com mais força e a cena repete-se, pimba na careca. O homem está passado e nós riamos pois o que se havia de fazer, era o Sr Freitas a levar na tola. Por último o Sr. Freitas, a espumar, bate com a janela com toda a força e ela fecha. Não sei como não partiu o vidro. 
Desceu o espaldar e a meio caminho para a saída, a janela abre de novo. Olha-a com olhos de demência e sai-lhe um pró raio com esta merda toda e vai-se embora. A janela ficou aberta e deviam-nos ter dado mais quinze minutos para o exame, que foi o tempo que ficámos às gargalhadas. Cá se fazem, cá se pagam,

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