04 setembro, 2019

Os emigrantes pt4 - A Festa

Entretanto chegam os dias da Festa de Nossa Senhora. A Igreja e a Associação das Festas assumem os comandos. A primeira encarrega-se das devoções, o padre não tem paz, enchem-se as horas de missas, encomendam-se as almas, há casamentos, baptizados e se há um funeral naquela altura é ainda mais triste, e não nos podemos esquecer da Procissão da Virgem, que para a Igreja é o ponto alto dos festejos.

A segunda toma a seu cargo o engalanar da aldeia, a feira que também é de gado, as brincadeiras, a corrida dos burros e a dos tabuleiros, o jogo entre solteiros e casados e o mais importante, o baile, sem esquecer os foguetes. Em conjunto providenciam para que nada falte naquela semana entre o religioso e o profano. 

Na feira os tendeiros vendem bugiganga e ninharias, talheres, pratos de latão e púcaros, brinquedos de madeira, enxadas, cabrestos para o gado que já enche o vale. Há os que vendem roupa, porque aparece sempre um homem que compra umas calças ou uma camisa, ou uma mulher, das que têm máquina de costura, que compra um corte de tecido. É também por esses dias que se compram chinelos para a miudagem, que os irão depois ferrar na ferraria. Também há uma senhora numa camionete a gritar num megafone, que oferece isto, mais isto, mais isto, pelo preço só disto. 

Os homens estão numa taberna de tábuas, à entrada da feira, e começam nos copos logo de manhã. Contam-se anedotas e histórias e vem sempre à baila a do Zé Canhoto, que por escrever ao contrário a professora dizia que era burro e castigava-o com reguadas. Ora o pobre do Zé vendera um burro velho aos ciganos e comprara-o de volta tosquiado e só percebeu quando chegou a casa e disse à mulher, este não é burro é esperto, já sabe o caminho de casa e a mulher chamou-lhe todos os nomes. É uma galhofa na taberna , mesmo já sabendo a história de cor. Ninguém sabe se foi verdade, mas é como as bruxas, que as há, há, e bebe-se mais um copo. Os tendeiros trouxeram este ano uma novidade, corridas de furões e os homens apostam enquanto as mulheres vão às rifas com os miúdos. 

Os burros vêm de novo à baila, faz-se uma corrida e o vencedor ganha o direito da moça dos seus olhos usar a sua fita no baile, se os pais deixarem. Nem sempre deixam e elas ás vezes não gostam, porque o seu coração inclina-se para outro, mas já tinham feito uma corrida com um bolo à cabeça e entre risos, também elas deram a comer do seu bolo ao escolhido, por isso a coisa estava mais ou menos apalavrada. 

No jogo dos solteiros e casados, os que se safam são os guarda-redes, porque os outros pouco conseguem correr quanto mais acertar na baliza. Mas há um moço que joga na regional e lá marcou três golitos aos casados que bufavam, seria da barriga? Ainda conseguem marcar um golo e é festa como se tivessem ganhado.

Entretanto fazem-se amizades entre os mais novos. Os que vêm de fora mostram os rádios com cassetes, as calças de ganga, as sapatilhas com sola de catchu. Os da terra olham com inveja. Os meninos das franças também distribuem beijos pelas moças da aldeia, com quem todas sonham entre juras de amor, para as tirar dali e ver outros mundos. Ás vezes fala-se de gravidezes, que só se notam depois da partida deles, mas aí é uma questão de honra, um código que as famílias têm que seguir, os homens chegam-se à frente, o rapaz tirou-lhe a mocidade tem que casar, nem que seja por procuração. E assim se faz, muitos deles voltam já os filhos deixaram a mama e vêm bem a mulher pela primeira vez. As meninas francesas não, seguem os conselhos das mães, não ligam para os rapazes de terra que andam de boina e de camisa coçada, mas há sempre uma mais afoita que dança com todos no baile e com quem todos querem dançar. 

E é à noite que a Festa ganha essa alma, com as três noites de bailarico ao som da concertina ou no dia grande ao som de uns que vêm da cidade e tocam guitarras e pífaros. A música é igual todos os anos não que isso seja importante, os pares dançam toda a noite, pagaram o bilhete para entrar e dançar e não é sempre que se podem encostar. Há quem pague o bilhete só para entrar, que é mais barato e que só dá para sentar nas mesas em volta. É mais as mães para vigiar os dançarinos, que quando querem namoriscar empurram-se uns para o meio dos outros. Os homens bebem e comem petiscos e não querem saber disso, é coisa para as mulheres verem.

Mais ou menos a meio da noite apanham um susto. O fogueteiro lança os foguetes. São canas com um pacote de pólvora atado e um rastilho. O homem segura a cana com uma mão e com a outra um cigarro e entre passas vai dando fogo aos rastilhos. A foguete sobe e estoura e todos acham bonito e os miúdos vão à procura das canas, é como um troféu. De madrugada a fanfarra percorre a aldeia a acordar os dorminhocos, porque não são dias para sonos. 

E assim se passam os dias da Festa de Nossa Senhora. Sabemos que os dias de alegria passam sempre mais rápido, mas também ficam as recordações e os homens e as mulheres que vieram e os de cá são capazes de dizer, lembras-te da festa, acho que foi em 63, foi sim, o ano que veio cá o Armando, que o Matias caiu do burro. Todos se riem, porque a primeira razão, há quem diga que é a única, que leva ao riso é o ridículo.

pt1 - A saudade
pt2 - A chegada
pt3 - As férias 


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