20 abril, 2019

Harmonia e Honra

Perdido no nevoeiro da minha adolescência, numa pausa entre Kafka e quejandos, recordo-me deliciosamente de ter lido Xogun de James Clavell. Para este conseguido romance, o cunho de best-seller e a adaptação televisiva estavam no adro.

O livro conta-nos as aventuras e desventuras do (pseudo) primeiro europeu que viveu no Japão, por alturas do Xogunato, imperialismo clássico, onde a defesa da honra e o respeito pela harmonia do outro se equilibravam. Dele retive um episódio:

"O senhor James, inglês, (não me recordo do nome das personagens), é hospede de uma família japonesa, numa casa de paredes de papel, como manda a tradição anti-sísmica das ilhas em causa. A meio da noite apercebe-se que o senhor da casa, chamemos-lhe senhor Hiroshi, samurai dos mais temidos do Japão, perito em golpes finos de espada, desrespeitava a sua esposa, fina flor oriental, a senhora Hiroko. 
James, que não sabia o que era tomar banho, mas era empenhado na arte do cavalheirismo, irrompeu pela porta ou pela parede (afinal era de papel), apanha Hiroshi de surpresa e lança-o para fora de casa, ralhando com ele em inglês, o que para o caso podia ser chinês. 
A tensão aumenta, Hiroshi está no terreiro com a mão no punho da sua espada, James está nas escadas a aguardar o golpe que se afigura mortal e Hiroko está de prantos. 
Ao fim de uns minutos Hiroshi avança, espada na mão, James treme mas não arreda pé e Hiroko continua de prantos. 
Final da história, Hiroshi lança-se aos pés de James, que por acaso tinham sido lavados gentilmente por Nanako, bonita moça, mas que não é chamada para esta história, e oferecendo-lhe a espada, oferece-lhe também a vida, porque mais importante que a sua honra (o que ele não diz, mas que se conclui do episódio) é o ter perturbado a harmonia do seu hóspede."

A reacção do japonês é inesperada para o inglês, que se sentiu incomodado não com o efeito, mas com a causa. Como poderia a sua harmonia, coisa a que não dava valor, valer a vida de um outro homem? 

Pouco nos preocupamos em preservar, em honrar, a harmonia dos outros. Quantos de nós reagiríamos como o senhor de guerra japonês, habituado ao corte do fio da espada,  mas culpando-se por ter perturbado o sono de um bárbaro? Trata-se apenas de um romance dirão e o fato desencadeador não é propriamente edificante para o Sr. Hiroshi.

No entanto, penso que o que está aqui em causa é mais que uma banalidade, que um fait-divers, que uma diferença mínima entre duas civilizações. Defensor dos seus códigos, Bushido e outros, o japonês aceita-se no silêncio e é aí que se aceita nos outros. Para o ocidental o silêncio é dúbio, é sinal de secretismo, indiferença, e como tal deve ser combatido. E se a palavra cria, o silêncio não cria, o silêncio apenas preenche a maior criação da história do mundo, o Homem.


2 comentários:

  1. Relevamos, a honra e a dignidade acima de tudo

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    1. Sem dúvida. Daí o escrevermos para que não sejam esquecidas.

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