04 abril, 2020

Liberdade Libertina - Lisboa, inícios de 90

Talvez se lembrem dos Ena Pá 2000, o conjunto do Manuel João Vieira (MJV), perseverante pré candidato à Presidência como o Obama foi até que um dia ganhou, por isso nunca se sabe. Sob um fundo pop/rock/tanguista e outros, cantavam-se histórias viçosas e viciosas, assim para o avacalhanço. Lembro-me anos mais tarde de aparecerem uns gajos a tocar umas músicas a imitar e de ouvir o MJV dizer que gostava muito, que pareciam os Ena Pá menos as c@r@lh@d@s e está tudo dito.

O Puto apareceu não sei donde para dar a notícia que os Ena Pá vão tocar em Algés e é à borliú. Fomos a correr. Era na altura do álbum És muita linda, que foi um êxito estrondoso na nossa terra, vários discos de platina. Estávamos lá em peso. 

A voz portentosa do MJV iniciou as hostilidades. Aplaudimos as bailarinas enapás, sempre ultra elegantes e sexis e o melhor guitarrista do mundo, Phil Mendrix, que se juntara à festa. O bom do João não cantou o hit single  "Rap Alentejano". Depois de remexer todos os bolsos e os soutiens das bailarinas disse que não encontrava o papel e não se lembrava a letra e então siga a festa.

O engraçado é que era uma noite de campanha eleitoral, os políticos às vezes distraíam-se, pensavam que os Ena Pá eram pimba e depois lixavam-se, como quando numa festa da cidade os contrataram para um concerto no Pavilhão Carlos Lopes e eles começaram o show com o inevitável “masturbação a bem da nação”. Na verdade o responsável político andava cansado, coitado, e saiu de fininho. Sei da história porque uma garina me contou e também porque vi. Faço sempre o contraditório, não vou em politiquices.

O concerto decorria na boa, sempre a subir, como o lixo techno dos anos 90. O público esganiçava a brejeirice dos clássicos "Menina Azul" e a "Titi fez-me um Tété", sem dúvida um leque ecléctico de experiências musicais. Curtia-se bem, mas aquilo era Algés, que agora parece uma feira de viadutos e naquela altura era umas terras de hortas reviradas e que só se atravessavam de galochas, e também morava gente à volta.

O MJV começou a repetir eles andam aí, eles andam aí. Não percebíamos, mas o concerto continuava e o pessoal berrava e pulava. Chegou a meia noite e com ela o primeiro aviso, era hora de parar dizia a PSP destacada. Mas o circo seguiu e multiplicavam-se os eles andam aí. Mais meia hora e vieram falar com a banda, que não podia ser assim e tal, um foi falar com o MJV que acho que não ouviu, continuou a cantar e a repetir eles andam aí

Bem, a banda saiu passado um quarto de hora e ele ficou, eles andam aí, eles andam aí e cantava e tocava. O pessoal estava passado, loucura total. Parecia o Elvis a cantar em Las Vegas.

E então cortaram a eletricidade. No palco via-se só a sombra do MJV e o people resistente assobiou os bófias que queriam estragar a party que tinham apagado luz e som. E o bom do João, com a sua voz trovejante e ironia sardónica, entre uns eles andam aí, foi buscar uma viola por ali perdida e continuou a cantar e a tocar para o pessoal, tipo unplugged, ou seja desligado.

Os PSP entrarem em palco outra vez e com jeitos mansos, afinal havia política por ali, entre algum palavreado, que se resumia da parte do MJV a eles andam aí, confiscaram a viola por entre assobios vigorosos do pessoal quase amotinado. 

Pois o rapaz continuou ainda uns dez minutos a cantar, embora há já algum tempo falhasse mais notas que acertava. Acho que esgotou o reportório. Por fim, baixou se à beira do palco, repetiu eles andam aí e foi-se, Deviam ser umas duas da matina.

Depois de pensar muito naquilo que ali aconteceu continuo sem saber o que pensar daquilo que ali aconteceu. Vi muitos vocalistas a cantar sobre transgressão e anarquia, mas o MJV naquele concerto mostrou-me não sei bem o quê, apenas senti-me menos impotente, mais confiante, livre e independente. 

Obrigado Manuel João Vieira, concerto para a vida.

Sem comentários:

Enviar um comentário