05 julho, 2019

Pontos de vista narrativos, homodiegese, heterodiegese, polifonia, um exercício


HOMODIEGESE
Saí de casa à hora do costume. Gostava de chegar cedo ao trabalho, aproveitar para pôr alguma coisa em ordem enquanto não começava a confusão. Pus as mãos nos bolsos, a brisa ensopada de orvalho gelava-as. Atravessei a rua com cuidado, era larga e prestava-se a velocidades exageradas.
Entrei no café, o da esplanada, onde à tarde via os do bairro velho a beber meios-uísques e cerveja, e os do bairro novo a beber café, a comer bolos e a comprar pão. - Bom dia! - Bom dia! Respondeu ela com o sorriso do costume, enquanto me tirava a bica. O aroma do café despertou-me, era o primeiro prazer do dia, acompanhado pelas palavras de circunstância que sempre trocávamos - Está frio! - Pois está, dão dez graus para hoje... - Assim não dá para ir à praia! - E sorrimos.
Entrei no carro, fiz marcha atrás, depois segui em frente até à rotunda e cruzei os vários sinais até virar à esquerda e depois logo à direita. Entrei pelo portão do jardim, seguindo o caminho estreito de saibro, até ao pequeno parque nas traseiras. O edifício estava frio, as lareiras estavam apagadas há séculos. Pensava sempre nisto quando ali chegava. Era já uma rotina. Liguei o aquecedor da sala, depois o computador e sorri enquanto ligava a máquina do café, antecipando o segundo prazer do dia.

HETERODIEGESE
Saía de casa sempre à mesma hora. Gostava de ir cedo para avançar algum trabalho antes dos colegas chegarem. Naquele dia, aqueceu as mãos nos bolsos, a aragem de Outubro já cortava, os carros escorriam orvalho. A rua larga era perigosa e requeria a sua atenção ao atravessar, a velocidade dos que por ali passavam era exagerada. O balcão do café estava ainda vazio, à espera dos vizinhos do bairro novo, que pediam uma bica e comiam um bolo. À tarde, os homens do bairro velho bebiam meios-uísques e cerveja na esplanada. - Um café, senhor?- ele gostava daquela empregada, que cheirava a pão fresco e o cumprimentava sempre com um sorriso, antecipando o prazer do aroma divinal e milagroso do café. - Está frio! - Pois está, dão dez graus para hoje...! - Assim não dá para ir à praia! - Após as palavras de circunstância, saiu a sorrir.
Entrou no carro, alheado das rotundas e dos sinais que tinha pela frente, até que, após uma curva mais apertada, fez pisca à direita e entrou por um portão de jardim, quase enferrujado. Era o roteiro do seu dia-a-dia. Um estreito caminho de pedra levou-o até ao pequeno parque nas traseiras, onde parou o carro. O edifício estava gelado, era antigo, pensava ele enquanto passava por salas com lareiras que nunca se acendiam, apressando-se para a sua, para ligar o aquecedor e o computador. Depois, antecipando um prazer renovado, ligou a máquina do café e sentou-se a sorrir para ela.

POLIFONIA
"Este frio gela-me as mãos" - pensava ao atravessar a rua, enquanto as recolhia nos bolsos. "Espero que não esteja lá ninguém ainda, o Ramiro com a treta da bola, não se consegue fazer nada."
O condutor abrandou contrafeito, já a pensar na lomba mais à frente - "Estes gajos, sempre descuidados, não devem ter pressa para chegar ao trabalho". 
"Olha lá vem ele, tem a mania que é engatatão". Ela sorriu-se enquanto se chegava ao forno. Eléctrico claro, mas mesmo assim aquecia.
 - Um café senhor?
- Pois, o costume. Está frio, nunca mais vamos à praia! - Piscou-lhe o olho.
"Deves estar a sonhar, pá". - Pois é, ainda ontem o meu namorado me disse o mesmo. É surfista.- Riu-se ao ver a cara que ele fez.
A miúda cheirava a pão e a cama. Bebeu o café ainda com mais prazer e à saída disparou - Fico sempre mais quente quando aqui entro, deve ser do seu forno.
Riram-se os dois.
“Que gelo neste carro. O volante está gelado, deixa-me calçar as luvas”. Acelerou. Os sinais ou diziam vermelho ou verde. O amarelo dizia sempre verde. Voltou à direita e entrou pelo portão do antigo edifício, onde trabalhava. “Raios, este portão qualquer dia cai…, está mesmo ferrugento” Acelerou mais uma vez, derrapando no saibro do caminho. Estacionou nas traseiras.
Resmungava enquanto atravessava os corredores, enregelado, “…as lareiras não se acendem sozinhas, não há dinheiro para nada, isto cada vez está pior”.
- Bom dia pá. Viste o Sporting? Aquele árbitro é um mafioso do caraças.
"Merda, já cá está o Ramiro ". Olhou para a máquina do café, procurando consolo...




2 comentários:

  1. Anónimo02:22

    Uma escrita inteligente, uma abordagem interessante de um mesmo enunciado. É continuar assim!

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