06 junho, 2019

Arroz Doce no arco-íris

Londres, finais de 80. Trabalhava com dois gay num restaurante, um inglês e o outro brasileiro. Tinham “saído do armário” havia anos, se é que alguma vez lá tinham estado. O Jimmy era alto, muito louro e branquinho de lixívia, com um sotaque complicado e uma linguagem sardónica e contundente. Usava uma argola em cada orelha, que era tipo um sinal.

O Jimmy geria os turnos e punha sempre uma miúda australiana a servir no local melhor, leia-se os booth, onde se ganhavam mais gorjetas. Se eu reclamava , ele fazia um meneio com a mão, olhava-me de cima a baixo e com aquele voz rispidamente inocente, dizia-me, ela é estudante e eu é que mando, e virava-me as costas. De vez em quando, quando ela não estava, lá me calhava um booth. Ele era meu amigo, fora isso tratava-me bem.

O brasileiro era mais velho, quarentão, o Li. Bicha descarada, como ele se intitulava. Às vezes, ficavam atrás do balcão a cochichar e riam-se dos que entravam e ainda não tinham “saído do armário”. Eles lá sabiam. Não era raro o Jimmy pôr as mãos à cintura, tirar-me as medidas e virar-me as costas, como se eu não valesse a pena existir. Ria-me.

Vai longa a introdução. Naquela noite, estávamos na casa do Li, com o Jimmy, a minha miúda e uma brasileira amiga, a Gaia, a tentar acabar uma garrafa de uísque. Estávamos no bom caminho, mas aborrecidos. Eles queriam ir ao Heaven, a discoteca da moda, porque era a noite gay, e eu quis ir também e entre risos, fui autorizado pelas mulheres. Não havia perigo, eram só homens.

Os meus amigos levaram uma hora a preparar-se, maquilhagem, batom de brilho, um bom perfume, roupas atraentes, gel com fartura, sei lá. Como sempre, eu ia de preto, armado em punk portuga, provavelmente de monkey boots. Talvez com um risco no olho, a à la Robert Smith.

Lá fomos. Entrámos na discoteca e ouviu-se artilharia e bombas a rebentar por todo o lado. Mandámo-nos logo para o chão. Afinal, era uma noite temática e os rapazes estavam todos vestidos de guerreiros e soldados, por todo o lado havia simulacros de batalhas e redes de camuflagem e tudo o resto que se possa imaginar, exceto tanques, que não cabiam na porta.

O Jimmy e o Li ficaram mortificados, duas bichas borboletas no meio de todas aquelas bichas machonas (palavras deles), de coletes militares, cinturões de balas, capacetes, botas da tropa e isso.

Bem, fui para a pista e tal como às vezes acontecia no Trumps, fez-se uma roda à minha volta e choviam beijos de todos os lados. Quem era eu, aquela novidade, nitidamente fora do contexto? A coisa estava a aquecer, e embora bem bebido, saí da pista assim para o constrangido.

De repente tudo parou, e ao som do I Will Survive, da Gloria Gaynor, teve início um jogo. No meio do palco, (a disco tinha um palco…) estava um para-quedista de dois metros de altura com uns ombros de dois metros de largura, a segurar um escudo de um material rijo, tipo esponja.

Um a um, os rapazes corriam pela galeria, atravessavam o palco e atiravam-se de cabeça ao gigante, que facilmente os repelia para cima de um colchão, estrategicamente colocado no chão. Os gritos de incentivo e os aplausos eram generalizados, e eu ,de lado, observava aquela cena e não sabia o que pensar. Os meus amigos estavam sentados, com o ar desanimado de quem estava no sítio certo , mas no contexto errado.

Senti uma mão no ombro e um rapaz um pouco mais velho, de cabelo comprido e colete de couro por cima do tronco nu, convidou-me para tomar uma bebida. Eu fui, não fosse eu o Arroz Doce, e sentámo-nos no bar. Acredito que ele fosse atraente, era-o de certeza e acredito que também lhe fosse atraente. Perguntou o que eu queria, pediu dois whiskeys e colocou-me a mão na perna. Estupidamente, entrei em pânico e a primeira coisa que disse foi que não era gay. Ele disse, pois eu sei, e tirou a mão. Com um raio, metia-me em cada uma.

Passámos algum tempo a conversar, era extremamente simpático, e eu observava o suor que lhe escorria no peito. Retirei-me, na verdade já tinha bebido que chegasse e ele tinha visto que não seria eu a preencher-lhe a solidão da noite.

Fui ter com os meus amigos e o Li atirou, com o despeito próprio dos gay, que inveja, você foi com aquele moreninho lindo, cara, você é horrível, te odeio. O Jimmy levantou-se do banco e com um trejeito de pescoço, que me fez lembrar César a compor a capa, dirigiu-se para a saída e nós seguimo-lo.

Nunca mais tive turnos nos booth, mas até seguirmos os nossos caminhos fomos sempre bons amigos.

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