28 junho, 2019

O dia em que pedi um pedido


Um dos meus primeiros trabalhos, quer dizer, era mais um emprego, foi tirar passaportes no GC. Anos 80, havia a CEE, mas os portugas precisavam de passaporte e de visto para tudo que era sítio, mesmo na Europa. Éramos uns pelintras.

Lá no GC tínhamos um guiché só para nós, onde umas mulheres ou homens de mal com a vida não nos batiam porque não podiam, era só um guiché. Falo em nós porque éramos quase todos uns putos da mesma idade, tipo fugidos da escola e que trabalhávamos para empresas parecidas.

Entregávamos os papéis, ele era azul de 25 linhas, selado, assinaturas reconhecidas, carimbos e fotos à la minuta, sei lá, o pacote completo. Depois era rapidíssimo, um mês para o normal e sete dias úteis para a urgência. Os "dias úteis" é como nos preços, está escrito 9.99, nós dizemos que é 9, mas é 10.

Há sempre uma primeira vez em que o lirismo do sistema, bem à tona naqueles anos, nos encurrala num sítio qualquer. Um gajo precisou de um passaporte urgentíssimozissimo. Tipo de um dia para o outro. E eu à toa, lixado. E o patrão, trate disso, então, anda aqui a fazer o quê? E eu continuava à toa.

Cheguei ao GC com a papelada e estava lá o meu amigo, gajo d'Alfama, de bigodinho, que falava a cantar o fado e sempre a rir. E eu, porra, já viste esta cena, como é que desenrasco esta merd@, meu? E o gajo, é fácil, fogo, nunca pedistes um pedido? Anda comigo. O gajo era batido, era d'Alfama. Era também um baril.

Mas, porra, que raio, pedir um pedido? Atravessámos a rua para o prédio em frente onde se levantavam os passaportes num balcão, num primeiro andar. E o gajo disse, entra aí. Era uma porta do lado esquerdo do balcão. Estavam lá meia dúzia de putos que eu conhecia, alguns com muitos papéis, mas todos caladinhos. Tinha uma porta em frente. Quando chegou a minha vez, entrei.

Numa secretária pequenina, estava um homem enorme todo encurvado, de óculos embaciados, com pilhas de passaportes e papéis por tudo o que era tampo e não só. Não levantou a cabeça, só lhe via o cabelo empastado e o suor a escorrer para o fato dos Fanqueiros.

Fiquei parado à espera. Ao fim de uma eternidade perguntou, o que quer? e eu sem saber bem o que se passava ali, disse, vinha pedir um... pedido! E o homem disse, enfronhado na papelada, deixe aí e venha levantar amanhã. E assim fiz.

Foi uma das primeiras vezes que este país me pôs a mão por baixo.

1 comentário:

  1. Alexa Silva12:05

    Simplesmente o nosso Portugal...
    Quem não tem na vida "a história de pedir um pedido"?

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