29 janeiro, 2020

O desespero de Adão e Eva

A casa era frígida, vitoriana, oca. Ensombrava em redor. Fomos ocupar a cave. Ao rodar da empena esquerda, no meio do tijolo escurecido das paredes esperavam-nos meia dúzia de degraus musgosos, quebrados pelos séculos já passados. Descemos com o homem das chaves.

Nesse dia que hoje estranho, em que se caminhava a passos largos para o cinzento sem fim e a chuva irritante, um esporão de sol flutuava e enchia-nos os corações de esperança. As folhas acumulavam-se ao fundo das escadas e depois de encontrar a chave no molho, a porta aberta trouxe um cheiro a bafio. Um curto corredor, uma sala larga que servia também de quarto, janelas altas ao nível do chão, pequenas cozinha e casa de banho. O preço era bom e embora desviados do centro, era lá para Finchley, aceitámos. 

Fizemos a mudança na carrinha do nosso amigo Terry. Sentiu o vento para se orientar, olhou para a parede da casa e para as janelas rentes à terra, enterrou mais o gorro e encolheu os ombros e disse baixo "vão passar muito frio". 

Os dias iam encurtando e chegávamos já de noite. O bus parava ao fundo da estrada. Era larga e inclinada. Subíamos entre árvores decadentes e torcidas, que de dia ensombravam os passeios e à noite confundiam os reflexos dos candeeiros em sombras ancestrais acorrentadas ao chão. Sebes e muros tapavam outras vistas, outras casas, outras vidas.

No topo da subida a casa enfrentava-nos, negra a suar mistério e corações partidos. Temia olhá-la e no entanto vivia nas suas entranhas. 

Na cave a humidade escorria nas paredes e tínhamos uma fenda na cozinha de onde saiam cogumelos já secos. À noite o pequeno aquecedor projetava um vermelho que não aquecia, mas que oscilava no estuque e pintava retratos nos recantos do teto. Entorpecidos pelo frio, fechávamos os olhos e aquecíamos um no outro, pele com pele arrepiada pelo frio dos lençóis. Esperávamos o amanhecer que só chegava quando já descíamos a estrada larga por entre as sombras matinais do arvoredo. Nem tudo era mau, mas pouco havia de bom neste covil no fim do mundo. E então aconteceu.

Subia pelo passeio. A luz escasseava, era uma noite escura. Ao longe, com um feixe de lua por cima, a casa chamava-me os passos. Olhei-a e senti um calafrio e algo me impeliu a apressar. A luz da cave estava acesa e a porta aberta, ela devia ter acabado de entrar. Desci as escadas e chamei-a, mas não respondeu. Voltei a chamar, mas apesar de todas as luzes acesas e do ruminar estático da televisão, o silêncio era gelado. Na cozinha uma panela de legumes era a esperança de uma sopa quente. Revirei a casa, ela por vezes desmaiava, tinha a tensão baixa, mas não estava.

Num segundo caiu-me um desespero e assombrou-me a vontade que tinha de a ter comigo, era a razão de vida, a proteção dos meus caminhos. Amava-a. No segundo seguinte caí na realidade, estávamos algures numa cave gelada de uma casa grotesca que oprimia e atraia medos, numa cidade de lendas e histórias de entranhas sanguinolentas. 

Subi as escadas e chamei o seu nome, contornei a casa e agora gritava. Solitário pela estrada abaixo, bradava e a cada resposta vazia, mais um ninho de lágrimas me secava. Somos unos, onde andas, onde estás? Entrei em veredas entre sebes e muros e as copas das árvores pareciam mais baixas. A minha voz enrouquecia e do meio das veredas era contínua a mancha de corvo da casa ao cimo da colina. 

Frenético ouvi o meu nome. Ela caiu-me nos braços. O seu pranto era dolorido, o seu amor rezava e o seu sofrimento abafava. Abraçámo-nos com força e ternura, a afogar as lágrimas no ombro do outro. 

Nunca percebemos o que acontecera. Ela sentira uma agonia e desesperada abandonara a casa. Procurara por mim. Passámos essa noite em branco. Ao amanhecer chamámos o homem das chaves e saímos no mesmo dia. 

Irritado ainda nos disse que não alugara a cave a um médico egípcio por nossa causa, que só o fizéramos perder tempo.

Ó homem, sinceramente, boa sorte e vá-se f*der.

Sem comentários:

Enviar um comentário