22 janeiro, 2020

Brincar com o fogo

Queimou-se tudo, não restou nada que se aproveitasse. Teria sido do calor intenso ou do tempo decorrido? A suspeita veio à tona, mas não restaram dúvidas.

O desastre iniciara-se algumas semanas antes, quando o José, apesar da sua frustrante timidez, arranjara coragem de puxar a Maria para um vão de escada e beijá-la. Foi o momento em que se ateou a ocorrência.

Mais decidida do que ele e liberta dos pruridos da obrigatória iniciativa masculina e também por estar cansada daquela relação tão promissora se estar a esvair no tempo, a Maria agarrou José, abraçou-o com fervor e deixou-se levar, afogueada pelo encanto dos sentidos. 

A partir desse dia eram unha com dedo. Juntavam-se em qualquer oportunidade, antes, durante e após os estudos e também ao fim de semana. Afastados, não se passava um minuto em que não pensassem um no outro e quando juntos repetiam-se esses pensamentos coloridos e ardentes, onde a cinza e o negro não encontravam lugar.

Começaram a faltar à escola e os impulsos juvenis flamejavam entre jardins e lugares incertos. Sabendo do caso, os pais dela, um casal de espírito aberto, abriram-lhes as portas para o namoro. Lembravam-se bem das ardências da juventude e tinham reparado que a filha acalmara com aquele namoro intenso mas sensato. Do outro lado os pais dele notaram que a chama do rapaz espevitara e deram também mais liberdade à ligação. 

Ela repetia 'amo-te' e ele respondia 'por ti vou ao inferno e volto'. Era retórica, frase de apaixonado e ela gostava. Naquela idade a paixão era lume e como disse o Camões "amor é fogo que arde sem se ver".

Naquele fim de semana os pais da Maria foram para fora e fizeram o voto de confiança de deixar a rapariga sozinha em casa, pedindo para se comportar e atender o telefone sempre que ligassem. Não deixaram de falar do José e o rapaz sem saber da conversa sentiu as orelhas em brasa.

Mas rapidamente percebeu o que se passava quando a Maria, a arder de paixão, lhe ligou naquela sexta à tarde e fogosa e afogueada lhe disse 'anda ter comigo a minha casa, vou-te tratar como um homem e serei tua. Além disso terás uma surpresa que te mostrará como o meu amor se consome por ti'.

José correu desaustinado. Ela abriu a porta e com as faces coradas agarrou-se ao seu pescoço e com um salto abraçou-o entre as pernas. A voz entre-cortada sussurrou-lhe ao ouvido 'os meus pais não estão no fim de semana' e continuou 'estou em brasa José, ardo por ti'. Coisas que ouvira na Internet. O rapaz sentia o mesmo, parecia um vulcão prestes a explodir.

Tropeçaram emaranhados e ferventes caíram no sofá e arrancaram a roupa um ao outro sofregamente. Os beijos e os sentires da pele repetiam-se e os seus membros do amor faziam faísca quando se tocavam e logo ali se consumiu o primeiro desejo. Rebolaram pelo chão, sem se largarem e o suar escorria vapor. Chegaram à cama e amaram-se desenfreados e a agitação era tal que num oceano de lavas incandescentes um pontão abria e teimava em mergulhar numa fenda alagada, onda após onda. Era bonito. 

Finalmente consolados, ela reclinara-se no peito e brincava com o umbigo dele, que lentamente acariciava e sentia o calor das suas costas. E foi então que tudo descambou e o inferno instalou-se no apartamento. 

Ele foi o primeiro a sentir, 'não te cheira a fumo' e ela 'sim um pouco, o que será?' E ele 'não sei, não deve ser nada, senão ouviam-se os bombeiros'. Inocência. Fecharam os olhos e aconchegaram-se, a humidade descia pelos seus peitos e eriçava-lhes os mamilos. 

Ela abriu os olhos e tornou 'parece que está mesmo fumo', e ele, 'sim, cheira a queimado, é melhor ir ver o que é'. Ia a pôr o pé no chão, mas ela ultrapassou-o num salto a gritar 'ai a surpresa'. Correu para a cozinha apalpando as paredes entre a fumaça, abriu o forno e do arroz de pato restavam apenas uns torresmos em brasa. Teve que ser de exaustor e extintor.

O amor não se apagou e na verdade a investigação como se previa foi curta e levou a sorrisos e risos. A culpa fora do calor e do tempo, mas do calor do forno dela e do tempo que o facho dele o mantivera aceso.

Queimou-se o pato, foram ao chinês.

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