19 janeiro, 2020

Diário de um codependente (em recuperação)

man with wings statue
Querido diário,

Hoje vou ser egoísta, vou falar de mim.
Vou ser egoísta porque vou contar a verdade, a minha verdade.
Não vou ser egoísta porque o faço sob o véu do anonimato.

Sou um bom amante. Sou um péssimo amor. Não, a sério, deixa-me terminar.
No início de todas as relações fui o mais frontal possível. Quanto mais cresci mais brutalmente honesto me tornei. 
Quero que me aceitem pelo que sou e menos pelo Adónis que quero projectar. Tenho falhas e exponho-as como medalhas, para não haver dúvida alguma que existem. Sou uma escultura com falhas perfeitas.

O outro aceita e aprecia as medalhas, expostas com luz de todos os lados.
Gosta, porque fazem de mim campeão, definem-me.

Anos passam. Atitudes mudam. Gostos mudam. O outro muda.
As falhas deixam de ter piada, e quem tem medalha de segundo lugar deveria sempre lutar pela de primeiro.
Faz como voto tentar limar o rugoso da escultura que me define. 
O que mais desejo é ver o outro feliz, e concedo que me retoquem.
Assim melhoram-me à sua imagem, mas com cada pedaço de pedra que cai menos me reconheço ao espelho.

Anos passam. O outro satura-se.
Por muito que tenha esculpido, as falhas voltam a se revelar, ou pior, rachas na pedra.
Já não sou quem o outro se apaixonou de início.
A nossa sombra marca duvidas no coração, fazemos da apatia carapaça.
Lutamos para reencontrar o que nos fez dizer olá, e recomeçar daí.

Anos passam. É finalmente declarada morte ao amor.
Cada um vai para o seu lado, cada um com novas falhas na escultura e um novo medo de as apresentar como medalhas.

O ego desvaneceu. Durante estes anos todos, o id gritava por dentro, inepto de romper pelos lençóis do medo de solidão, sem forças para reviver uma alma dormente que se esqueceu quem foi. E assim não se lembra como voltar a ser. O ego desvaneceu.

Ainda não me reconheço no espelho, mas guardei os pedaços que me esculpiram para fora. Agora toca a encaixar.

Sem comentários:

Enviar um comentário