20 novembro, 2019

As botas Reais de Alcobaça


Recorro de novo ao livro Fotografias de Lisboa, de Alberto Pimentel, e aos episódios insólitos e curiosos que nele nos apresenta. Este é um trecho do texto "Os burgaus", ou seja, os calhaus:

"Ignorava decerto o leitor ser costume que, indo os reis de Portugal em visitação ao mosteiro de Alcobaça, lhes dessem os monges, reconhecidos à concessão do padroado real, um par de botas ou sapatos à escolha dos sereníssemos hóspedes.

D. Afonso III reconheceu, porém, que era pesado o encargo, e absolveu da obrigação os monges pela carta seguinte:

Saibam todos os que virem a presente carta, que eu, Afonso, rei de Portugal e do Algarve, prometo, ordeno e concedo que doravante não pedirei nem exigirei ao mosteiro de Alcobaça botas, balegões, nem sapatos, como até aqui exigi; (…) e tenha a maldição de Deus e a minha aquele que dizer o contrário.

Dada em Lisboa, por ordem do rei, aos 3 de Novembro de 1314."

Vou contextualizar valendo-me das palavras de Frei Manuel dos Santos, cronista-mor do reino no Séc XVIII. D. Afonso Henriques, muito bem alcunhado de "O Conquistador", combateu os mouros em Santarém e apesar da grande inferioridade numérica conquistou a cidade. Tendo apelado ao apoio divino, como era costume na época, o Rei fizera um voto que se a vitória lhe sorrisse mandaria erguer um mosteiro no vale do Bom Jesus do Monte, e assim o fez, o atual Mosteiro de Alcobaça. Sempre próximos dos corações reais, os monges e abades do mosteiro foram beneficiados ao longo dos tempos por "grandes mercês em vida e grandes esmolas por morte".

Parece que os servos do mosteiro que iam a Lisboa em afazeres contavam aos monges que as ruas da cidade eram uma funesta combinação de lamas, calhaus e porcarias. Condoeram-se as almas religiosas das reais e gentis pessoas, que acreditavam andar muitas vezes descalços nas ruas da cidade para agradar ao povo e impuseram-se um foro. Sempre que o Rei fosse a Alcobaça seria presenteado com um par de sapatos ou botas à sua escolha. Dizia-se que era aí que se fazia o melhor calçado e de vez em quando lá ia o Rei visitar o mosteiro e trazer sapatos novos para si, à borla, e para a família também, a pagar ou não, isso não diz Frei Manuel.

Com o fim do foro o calçado de Alcobaça nunca mais foi o mesmo, mas conta o cronista que o neto do Rei, o ainda príncipe Afonso, que viria a ser o IV, andava pela cidade a sonhar com a sapataria do convento. O mito consolidou-se e passados uns bons séculos Dom João IV de visita a Alcobaça e provavelmente em tom de reinação real, lembrou a história dos sapatos aos frades que fizeram orelhas moucas. O Nobre Rei de lá saiu calçado como chegou. 

Portugal sempre foi famoso pelos seus sapatos, de bom preço e qualidade. Eu não me queixo, sempre me calcei por cá e embora nunca fosse a Alcobaça considero que tenho sido bem servido. Também já ouvi dizer, certamente por más línguas, ter havido quem em passeio por Itália se calçasse, país bem mais conceituado na indústria da moda, e só depois reparasse com dó na carteira na etiqueta Made in Portugal. 




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