11 novembro, 2019

De peito feito

"Everythin', everythin', everythin's gonna be alright this mornin' "* 

A pronúncia era meio estranha, mas o sentimento estava lá.

Ele olhava-se ao espelho da casa de banho e passava a mão pela barba já com 3 dias. "Não vou fazer. Um homem tem barba, caraças! E eu sou um homem, não sou um p@neleiro". A última frase era a justificação para metade das coisas que fazia.

Veste a t-shirt do trabalho e bebe o café manhoso num frasco de vidro ("chávenas é p'ra meninos"). Sai porta fora, faz uma festa ao cão antes de fechar o portão de casa e entrar no carro. A manhã estava fria, já com as cores de Outono em toda a sua força. Liga o rádio do carro e ao fim de duas músicas desliga. "Isto é que é música? Geração mais careta!". O blues man da Beira Interior, além de muito másculo, acha que só ele sabe o que é música boa.

Sai do carro, o andar é meio trôpego. Não que tenha bebido, mas já começava a ter uma barriga saliente e passar horas todos os dias no carro tinham-no deixado com o andar gracioso de um trolha tocado a ácido. Quando tinha estado no seu auge, ali uns poucos anos antes dos 30, poderia ter tido todas as gajas que quisesse. Resmas de gajas. Até lhe ligavam de madrugada e ofereciam-se para lhe pagar quartos para ele lhes ir lá dar o cházinho... Mas ele dizia sempre que não, que tinha namorada.

Do alto da serra, fora do carro, via um manto de nuvens redondas e brancas a cobrir o céu por cima do vale. "Parecem carneirinhos, fónix. Lá em Lisboa não têm disto." Tira uma foto para pôr no Facebook. De caminho vê que a mulher com quem andava agora já lhe tinha enviado várias mensagens, em tom cada vez mais chateado. Começava com "bom dia, babe <3" e ao fim de umas horas sem resposta já ia em "não valho nada para ti, pois não?!".

"Olha esta agora, querem ver... Está a chegar o fim de semana está na altura de se passar. Espera aí que eu também esperei 9 meses p'ra nascer! Ainda por cima casada. Vai dormir com o teu marido, pá, não me chateies!" Isto pensava ele, não escrevia. Apesar de tudo considerava-se um senhor e a gaja era um bocado chata, mas batia umas boas punhet@s e tinha um andar meio requebrado quando estava de vestido. "Estás toda gostosa" dizia-lhe ele.

Hora do almoço e o nosso herói atraca num restaurante. Avia a sopa, limpa a travessa com jardineira de vitela e batata frita, acaba com uma tigelada e ainda vai para o café. Liga à gaja. "Babe, coméquiééé? Fogo, comi que nem um boi! Eu sou assim, baby: um bon vivant! Ehehehe".

Antes de pegar no carro fuma mais um cigarro, o quarto ou quinto do dia. A gaja preocupava-se com ele e dava-lhe nas orelhas por fumar. O tabaco fazia a voz dele meio rouca meio suave, uma voz que lhe acordava partes do corpo que ela tinha pensado, antes, que já não iam sentir grande coisa. Na verdade tinha muito medo do cancro: tinha perdido pessoas para o cigarro e não o queria perder também. Mas ele dizia-lhe que era rijo, um lusitano, descendente directo de Viriato!

Quando estavam juntos era bom, muito bom. Tudo fluía com a intensidade de um filme porno, mas com a classe de um filme francês, daqueles que só os intelectuais gostam de ver. Depois ia cada um para seu lado e começava o drama. Ela queria atenção, ele dizia que era complicado. "Não consigo estar sempre a escrever como tu. Fico cansado de estar muito tempo a olhar para o telemóvel. E no computador então tenho de estar numa posição marada para escrever, não dá." Ela sabia que o cansaço não lhe atingia o olhos quando andava a ver boazonas no Instagram. Mas, porra, gostava dele. Só era pena que fosse tão bronco.

"I'm a maaaaan! I'm a full grown man!"

Ele orgulhava-se de sempre ter sido fiel às mulheres que lhe passaram na vida. "Nunca pus os cornos a nenhuma", começava ele antes de desfiar a lista de queixas relativas às mulheres portuguesas. "A mulher só quer é praia! Não há nenhuma que queira vir para aqui! Ar puro, água limpas, boa qualidade de vida... mas a mulher só quer é praia! Não há nenhuma que tenha vontade nem visão para ajudar a construir um país!". Isto era o princípio de um solilóquio de 20 minutos de queixas.

Não compreendia que não houvesse nenhuma mulher que o quisesse - mas querer a sério. Uma relação de suor com suor, sangue com sangue, como ele dizia. Tinha a gaja, casada, mas essa nunca iria deixar a vida que tinha para ficar com ele. "Eu? Se fosse mulher eu não me escapava! Se estivéssemos na altura dos homens das cavernas eu tinha algumas 4 ou 5 mulheres só para mim! Mas não! As mulheres não têm visão. Até ficam com homens que as maltratam, são até capazes de as matar, mas elas não se vão embora!".

De computador aberto em cima da mesa da sala, deitado no sofá a ver televisão, o nosso herói adormece. Sozinho, pelo 15° inverno consecutivo.
*Sugere-se ouvir o tema *Mannish boy" de Muddy Waters para estabelecer a devida ambiência. 

C. S. Lima 

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