01 dezembro, 2018

Episódio Cigano

Tínhamos vinte e poucos, parava um cigano lá no bairro. Não me lembro do nome, vou-lhe chamar Miro, que fui ver ao Google e é nome cigano. O Miro andava de fatinho, gravata e  risco ao meio, como andavam antes dos brincos do Quaresma e dos penteados do Ronaldo.

Não era dali, mas conhecia os gadjôs, bebia umas imperiais, comia uns tremoços, etc.. Era desconfiado, até os pintas só lhe falavam quando ele queria. Vá-se lá saber porquê, atinou connosco uns tempos, viu que não havia ali  nada e bazou.

Lembro-me que uma noite teimou de ir buscar uns trocos. Nunca o vi fazer rien. Acho que a casa era o banco, a mulher vendia nas feiras com a família e ele ia buscar papel ou então umas t-shirts que despachava por ali. Isto foi há trinta anos, não havia cá Zaras nem cenas dessas.

(naquele tempo metade das palavras começavam por “c” ou “f”, mas como podem estar putos a ver isto e prometi ao Lisboa, vou-me controlar)

Ainda hoje não sei porque fui com ele, até porque já tinha sido martelado pelos ciganos. O Miro morava numas casas ocupadas ali à Picheleira. Ia-se por um caminho, meio terra, meio cascalho, sem luzes, tudo às escuras.

Ao cimo, estavam uns vinte ciganos a fazer a festa, à volta de uma grande fogueira. Viam-se viúvos de fato preto, chapéus e barbas brancas, e putos daqueles que andavam sempre a desafiar o people na rua e ninguém fazia nada, porque depois vinha a família toda e eu, que já vira cenas maradas, deu-me para filosofar, haveria mesmo vida após a morte como lera num livro qualquer? 

Calaram-se quando passámos, a olhar de lado para o gadjô, ou seja, a minha pessoa. A filosofia foi-se e pensei no meu testamento, mas não havia nada, tinha desbundado tudo. O Milo não ligou nenhuma, subiu um par de escadas, ouviu-se uma gritaria e desceu com um par de soutiens ou uma milena ou coisa que o valha.

Passámos a fogueira de volta e sentiu-se a tensão a crescer naquelas caras distorcidas pelo fumo, que me olhavam com um desdém silencioso e ameaçador. Vinte metros à frente, já as pernas não me tremiam tanto, ouviram-se três palavras vindas de trás. Claro que não entendi, mas deixei de respirar quando o Miro rodou, com passos ferozes chegou-se à fogueira e com voz altiva e de raiva começou a desancar nos outros todos. Estava à toa. Não percebia nada do que ele dizia num caló portuga, mas vi a cena toda e fiquei ali especado de pé e desmaiado. Era um menino.

Aquilo durou uma eternidade, mais ou menos um minuto, até ver que os ciganos não respondiam palavra, nada, niente, nem pio. O Miro voltou e só disse, vamos. Passado um quilómetro, quando voltei a respirar, perguntei-lhe, ó meu que se passou ali, o que foi aquela merda?

O Miro disse que era assim, que fazer aquilo era uma obrigação de vida de cigano, senão a família perdia a honra e isso não podia acontecer e disse também que os (aqui entra uma palavra começada por "f") a todos, (aqui entra uma palavra começada por "c"). Nunca perguntei o que ali se tinha dito. Estava vivo, o pessoal estava à espera e íamos curtir. 


Algumas palavras - parava: andava por ali; gadjô: não cigano; bazou: foi embora; fazer rien: fazer nada; papel: dinheiro; martelado: lixado (eufemismo); desbundar: cometer excessos; milena: nota de mil escudos; caló: linguagem cigana; merda: ainda se usa;

Sem comentários:

Enviar um comentário