29 novembro, 2018

A chuva ainda não parou


Havia papéis espalhados por todo o lado. Chovia que se fartava havia dias e não se via jeitos daquilo melhorar.
Alguém tinha deixado um jornal em cima do banco de madeira cuja tinta verde aos poucos se despedia. Um jornal é sempre útil, quer seja para o próximo leitor cansado, quer seja para servir de lençol ao próximo inquilino do banco (se algum funcionário da mercearia do bairro puder deixar uma caixa de papelão para fazer de cobertor, este há de agradecer com certeza).
Não demorou nada até que aparecesse o primeiro locatário. Um sexagenário de rosto vazio, longas barbas brancas e a desolação nos olhos como cartão de visita. Empurrava a custo um carrinho de supermercado, dentro do qual carregava o seu mundo. Aproximou-se de um homem que fumava abrigado debaixo do toldo de uma pastelaria, de onde saía o aroma quente de bolos acabados de sair do forno. Uma moedinha amigo. Velho de um cabrão, vai mas é trabalhar! Era o que faltava sustentar esta gentalha. O velho baixou os olhos mortiços e continuou o seu caminho sem olhar para trás apesar do chorrilho de insultos que ainda prosseguia. Não evitava as poças de chuva, acho que se pudesse se teria afogado dentro delas. Os sapatos gastos deixavam à espreita meias desirmanadas coloridas. Talvez as únicas cores daquele dia.
Tomou o banco como seu. Era agora o ocupa daquele assento de madeira. Uma garota que por ali passava, tomada pela curiosidade, foi espreitá-lo enquanto este se preparava para o seu primeiro sono. Vais dormir aqui ao frio? Vai chover muito, sabes? O velho olhou-a com ternura. Vou ficar aqui, vou. Não tenho medo da chuva. Tenho é medo das pessoas.
A miúda encolheu os ombros e resignada com a resposta seguiu o seu caminho. O velho, que há muito se perdera de todas as suas recordações, tirou do carrinho de metal um cobertor sujo e ajeitou-se no banco a ver se se perdia na letargia do cansaço e do álcool.
Hoje de manhã, passei por lá, a caminho do dentista. O banco estava vazio. O carrinho continuava lá encostado à parede de um prédio antigo. A rua, essa estava repleta de gentes de rostos iluminados com sorrisos descartáveis debaixo de guarda-chuvas coloridos.
Os passeios  estão cobertos de folhas mortas.
A chuva ainda não parou.

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