04 novembro, 2018

Em terra


Mágoas de uma Lisboa que vive nas sombras, negra ao luar. As vendas cansadas trancam-se à vez, tremendo ao fundo deste empedrado retorcido a luz de uma taberna, azedada e gordurenta, cheia de homens suados a cheirar a vinhaça. Peço um bagaço, licoroso, para afastar os espíritos. Emborco mais um e depois outro!
Saudades de uma Lisboa, que afinal ainda existe, bela ao luar. As lojas de venda vão fechando à vez, restando ao fundo a luz alegre de uma taberna onde homens rosados, cheios de vida, pagam rodadas e brindam aos amigos. Peço um bagaço, licoroso, para dar forças. Mais um, chefe...
O vento gelado enrija os ossos, mas esfola a pele. Arrasto-me para a rua por onde corria descalço e transpirado atrás da bola, com as velhas a ralhar à janela. As mesmas velhas, ainda mais velhas, espreitam do escuro, entre cortinas encardidas e desalinhadas.
Aguardo na rua estreita, encostado à parede a fumaçar, entretido com duas vizinhas que palreiam de janela a janela, a aproveitar a noite amena. Há certas coisas nesta cidade que não mudam.
Do maldito treze, mau agoiro, azar, ruína, resta um molho de tábuas, de carvões retorcidos e um violento cheiro a fumo. Abafo um grito rancoroso, de revolta contra a cidade que me traiu e volto à taberna rançosa para avançar o luto.
Olha, aí vem ela, conheço-lhe o caminhar, o bambaleio das ancas que por um momento me faz lembrar o balançar do navio ancorado. Mas isso é amanhã. Hoje a noite é de sortes, de sorrisos e ternuras, de amores quentes, humidades e cheiros, entre lençóis desalinhados.

Sem comentários:

Enviar um comentário