07 novembro, 2018

Jesus de veludo



Fui um dos atingidos pela censura musical, decorrente da social luso-tacanhice política, que durante décadas, anos, meses e alguns dias, se impôs neste belo país à beira-mar plantado, que na altura não medrava, talvez porque à beira-mar só haja areia e água salgada. 

Isto vem a propósito de só tardiamente ter tido contacto com os Velvet Underground, banda de Lou Reed e John Cale e Maureen Tucker e Sterling Morrison. O primeiro álbum por aqui editado foi VU, de canções perdidas, em 1986. Mesmo assim foi uma óptima apresentação, o álbum é forte, pleno de guitarras e baladas, como só os Velvet as faziam.

'Jesus, help me find my proper place
Help me in my weakness
Cos I'm falling out of grace´

Os três versos acima, únicos na sua música, "Jesus", são de uma contrição e dedicação religiosa profundas. Estou a imaginar a sua transformação num gospel, com milhares de pessoas em uníssono, a cantar e a agitar os braços. Interessante reconhecer que o Corvo, Rei do Inferno e Anjo da Música, Nick Cave, digno sucessor de Lou Reed, também manipula com mestria o simbolismo religioso. As referências ao mesmo são milhentas na sua obra, culminando porventura em "God is in the House" (a ironia é desvendada no último verso da música, quem duvida vá ouvir tudo de novo).

"Jesus" pode ser ouvido no terceiro e último álbum da banda, The Velvet Underground, quando Reed e Cale já andavam à cabeçada, como acontece com todos os génios que se descobrem a partilhar o mesmo espaço, no YouTube e agora aqui (cortesia do último). Intensamente melódica e porque não profana só por existir, é uma das músicas mais belas e dedicadas ao eu que tive o prazer de escutar.

Sabendo nós dos excessos cometidos por Reed e os outros, a fraqueza das drogas, a pungente heroína, transformada em canção herética e por aí adiante, compreendemos absolutamente mais o que é cair na desgraça do Senhor e porque, por cá, o insolúvel Botas e os senhores do lápis azul, prestamistas do violência censória e do absurdo, se interrogavam ao enviar aos arcebispos de Braga a lista das músicas a incluir no livro negro da censura, que tal como vários percursos literários, nem uns nem outros entendiam.

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