22 maio, 2019

O Boris ou o meu reflexo no espelho da Alice

O Boris apareceu lá em casa, como aparecia toda a gente, pela mão da minha miúda, que um dia até fez uma amiga para a vida na fila dos Correios. Estávamos meio perdidos na Londres dos finais de 80, e era engraçado aquele corropio de gente nova que ela trazia não sei donde, quase todos os dias, ao minúsculo bedsit onde vivíamos. Oferecíamos o café ou o chá da praxe, uns paravam e iam ficando, outros desapareciam.

Ela vinha contente, via-se no sorriso radiante, já a prevenir-se dos dias em que eu não tinha pachorra para aturar as maluqueiras que entravam pela porta, que também os havia. Vinha com um rapaz.

Arroz Doce, este é o Boris (façam um esforço para imaginar que todas as conversas neste texto são em inglês e não traduções rascas da minha memória, que nunca mais foi a mesma depois que nasci. É claro que Arroz Doce, é Arroz Doce, não tem tradução em língua nenhuma, talvez em malaiala, mas não estou nem aí).

Adiante, recomecemos. Arroz Doce, este é o Boris, conheci-o no (qualquer sítio) e fogo, tem a tua idade, man. A minha idade, pensei eu, a miúda está-se a passar, o que não falta aí é pessoal com a minha idade.

Pois, mas o Boris tinha nascido no mesmo ano, mesmo dia e na mesma hora que eu. Como ela tinha descoberto aquilo não sei, mas foi um momento novela mexicana, de levar às lágrimas. A amizade e a cumplicidade estavam criadas havia vinte anos.

O Boris era um gajo elegante (magricela), cheio de falta de sol, como eram aqueles gajos todos, com caracóis que dos lados esticava para trás. Falava rápido e pelos cotovelos e sempre com convicção e eu só percebia metade do que dizia. Ele olhava para a minha cara e repetia três, quatro vezes, mas era sempre de maneira diferente e eu ia dizendo yes man, yes.

Vestia um Bomber Jacket verde, daqueles laranja por dentro, os melhores casacos do mundo e por acaso, ou neste caso sem ser por acaso, eu tinha um preto que comprara semanas antes no Camden Market. A gaja que o vendeu, no meio da confusão que aquilo era, tentou sacar-me duas libras a mais, mas a miúda topou-a e ela começou a falar cockney, luv para aqui e luv para ali, mas teve que devolver a massa, fosse enganar turistas para o raio que a parta.

O Boris usava umas 501 enroladas em baixo e uns sapatos Doc Martens. Uma argola na orelha. Um gajo vulgar, doido qb. Uma versão inglesa da minha pessoa, não fossem os olhos azuis, o cabelo louro, o casaco ser verde e ter um jipe.

O Boris sabia o que queria. Insistia e convencia. Naquele primeiro dia,insistiu que fossemos a casa dele, algures em Kensington, para lanchar ou coisa do género, pensámos nós. Era uma fase em que andávamos a comer empadas congeladas por isso fomos e também porque o gajo era um baril. Chegados lá, começou a pôr tudo o que havia de comida para um saco e nós sem perceber bem o que se passava. Frigorífico, prateleiras, despensa, ia tudo a eito, até que chegou a mãe e perguntou, o que estás a fazer Boris, e ele, eles precisam da comida, e a mãe com aquela elegância e paciência que só alguns ingleses sabem ter, mas Boris, não pode ser assim, e nós constrangidos como o caraças, mas o Boris levou a comida e assim é que rodava o mundo. Hoje nós, amanhã ele.

O Boris tinha um jipe, um jipe mesmo, daqueles antigos verdes, da guerra, sem capota e penso que sem suspensão. Era uma loucura andar naquilo, nada o parava, só a falta de gasolina. De vez em quando lá fazíamos uma vaquinha, aquela cena bebia para caraças, mas toda a gente virava a cabeça para ver os três malucos a passar, nós dois e o jipe.

Um dia, tínhamos estacionado e vimos dois bobbies a vir na nossa direcção. Eu estava há um ano no UK com visto de turista, que tinha expirado há nove meses (Portugal ainda não estava na treta da CEE). Era uma cena banal, mas podia ser deportação à vista. O Boris disse, não saias daqui, e eu ali fiquei sentado no lugar do morto. Saltou do jipe, abriu o capô, o que atraiu os boobies e passado cinco minutos de conversa da treta e de mostrar óleos e motores de arranque e tal, eles basaram sem sequer olhar para mim.

Foi com ele que pela primeira vez entrei num dos Tower Blocks de Londres, aqueles do "London's Burning” dos Clash. Era em Ladbroke Grove, acho eu, e estava à espera de demolição, pois os tetos tinham amianto. Nunca vira nada assim, os moradores tinham sido realojados, mas o Council continuava a pôr lá algumas famílias. Havia portas com pinturas a dizer legally occupied e com gradeamentos de ferro por fora, mas a maior parte dos apartamentos da torre de vinte andares eram squats. Era um mundo louco, decadente, muito perigoso e muito rentável para alguns negócios, mas falarei disso noutra altura.

O Boris vivia à vontade, sem artifícios, como se o mundo fosse seu. Um dia levou-me ao pub dele para conhecer os amigos. Estava lá a namorada, que transpirava beleza e classe. Ele pouco falava dela e pouco lhe ligava, aliás, dizia que só andava com ela porque ela fazia uma coisa que não vou aqui dizer, afinal de contas era a vida deles e também não é nada do que essas mentes doentes estão a imaginar, por isso esqueçam.

No meio de umas pints, apareceu um gajo da nossa idade, mas com cara e caparro de hooligan bronco, que num grunhido perguntou quem eu era. O Boris levantou-se, chegou-se a ele, que tinha mais um palmo de altura e disse, é o meu amigo português, o Arroz Doce, e é muito mais inteligente do que tu, fala três línguas, tu és estúpido, nem uma sabes falar. Normalmente, como se estivesse a dizer que ia buscar outra cerveja. O outro continuou com cara de idiota a olhar para nós e eu fiquei à espera de levar com um copo na cabeça. Não valia a pena, o Boris já estava noutra, o gajo virou as costas e foi-se embora.

Perdemo-lo quando mudámos de casa. Naquela Londres mudávamos como quem despe uma t-shirt dos Smiths e veste uma dos Jesus. A cidade era enorme e não havia telemóveis.

O Boris passou uns meses pela minha vida e ficou para sempre. Afinal, nascera 
no mesmo ano, no mesmo dia e na mesma hora que eu.

Fogo, que vida marada que eu já tive.



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