31 maio, 2019

A água ecoa no casco


A água ecoa no casco e o murmulhar distrai-me. O Tejo é de prata, e neste dia quente de junho precoce, o pequeno barco levanta nuvens de gotas que fervilham no ar. A brisa acorda-me os sentidos, amainados pelo brilho intenso da água.

Ao longe, a torre meio tombada do piloto do porto, sombria, fiscaliza-me o avanço, pronta para dar o alarme. Dali não se passa, já fui avisado, ali acaba o Tejo e Lisboa e começa o oceano. Mas é mentira, a cidade continua, dá a volta ao mar e conquista-o.

O vento sopra mais forte, rodo no banco, puxo o leme, dou folga à vela. Sem ciência viro-me para a cidade, a ondulação balança-me, eleva-me e Lisboa enfeitiça-me. Ali mesmo à mão, o padrão dos grandes de Portugal olha-me sobranceiro, carregado de heróis e navegantes descobridores, que com desdém veem passar um marujo sem título, de barba mole. Comanda-os o Infante, feito história, perpetuado na pedra branca.

O vento revolta, e ágil, puxo e dou folga. Ali estou de novo virado para ela. Ao fundo o belo mosteiro do rei venturoso, cor de cal, Jerónimos de nome, manuelino de talha, com os algas estranhas e os peixes exóticos que trepam as colunas, esgueirando-se aos cordames de pedra, e que imagino a olhar do fundo do rio para o ponto branco que cá em cima, cruza as águas ao meu comando.

Esquadrias verdes aliviam o olhar, são os jardins por onde passeiam massas de turistas, pintalgadas de lisboetas, que deambulam extasiadas pela cidade bonita, que posa para a fotografia, espreguiçando-se.

Sigo à bolina, para cá e para lá, e sinto que me chama, como as sereias outrora fizeram a Ulisses, o doce aroma pingado de açúcar e canela dos pastéis de Belém. Outra onda passa e do cimo, curioso, entrevejo a porta azul do covil, esforçando-me por imaginar os belos azulejos, ocultos pela fila contínua dos cativados, que aguardam esperançados a oportunidade do deleite.

O sol poente encandeia-me e a sua luz branca faz-me recordar as esquinas alvas da minha cidade, a corda e o leme a girar-me na mão.






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