01 maio, 2019

Devaneio sobre o devaneio

"O tempo é um ser difícil. Ainda no outro dia era primavera e já aí vem o outono. Tenho de tirar da gaveta a roupa de inverno, as camisolas de gola alta. As botas também. A manhã está fria mas não corre vento. Ainda bem, senão era um gelo ."

Ela seguia pela rua, ia apanhar o autocarro. Os seus pensamentos cruzavam-se, sabemos como eles são, quando estamos a pensar numa coisa, já estamos a pensar outra. Naquele dia, pensava mais no tempo, esquecendo-se por momentos do essencial, do amor que a acompanhava.

"Está tudo molhado, será que choveu de noite? Deve ser o orvalho. Ainda corre naquelas folhas. Tenho que regar o jasmim. Os coentros rebentaram, mas a salsa não quer crescer, alguma coisa correu mal, vou perguntar ao jardineiro.

Que falta me fazem as flores nas árvores, as cores todas, as sardinheiras nas varandas. Não tarda caem as folhas, com este tempo todo baralhado. Gosto do cair das folhas, parece ouro, mas traz-me melancolia. Estou farta do calor, nunca mais passa para me dar algum descanso.

As nuvens estão mesmo cerradas, ainda vem aí chuva, mas na meteorologia não disseram nada.  Não gosto de trovoada, assusta-me. Será que tenho o guarda-chuva pequeno na mala, deixa ver. Não está, tenho que me lembrar de o pôr.

Olha ali um raio de sol a querer furar, que bom, um pouco de calor nesta manhã fria. Tenho as mãos geladas. Passa pelo meio das nuvens, tão brilhante, só pode ser esperança e alegria para o futuro. Mesmo por cima desta árvore, é estranho, um raio tão luminoso e tão fino.

Está alguma coisa a cair da árvore, vem aí a flutuar, vai pousar na minha mão. É a primeira folha de outono, que alegria, já tem em si todos os cheiros e cores do mundo. Prenda divina, vou guardá-la num livro e será o meu segredo, só meu e e do raio de luz.

Espero que haja lugar no autocarro, doem-me as costas. Olha o Sr. José, dá-me sempre o lugar. Obrigado Sr. José."

Pousou as mãos no ventre, amparando-o, e em vez do pontapé costumeiro, sentiu um calor como se as outras mãos encontrassem as suas, num elo de felicidade e prazer.

"Se for menina há-de ser Inês, se for menino será Pedro", e lembrando-se do raio de sol e da primeira folha de outono, riu para dentro e pensou "... ou Jesus."

Sem comentários:

Enviar um comentário