12 maio, 2019

O coreto da Casa Grande

Quando o primeiro Senhor da Casa Grande, que tinha esmagado a Revolta do Sangue dos Húngaros, perguntou à Senhora o que faltava fazer no jardim, ela respondeu, um lago com cisnes, um labirinto de sebes floridas e um coreto. E assim se fez.

A Casa Grande era firme, parecia um castelo de pedra preso nos cordames de trepadeiras, trazidos das terras da Alsácia, tão grossos que a Norte não se viam as paredes. Tinha dezasseis quartos, oito salões, duas salas de fumo, duas salas de leitura, duas cozinhas e duas casas de banho, uma delas com duas banheiras. A casa era fértil, todos os seus amos tiveram descendência. Ao fundo do jardim perdiam-se de vista as terras do Senhor da Casa Grande.

O coreto era branco, com um gradeamento arredondado na esquadria e pássaros pintados de azevinho nas bordaduras da cobertura, que parecia um suspiro apoiado em cinco colunas de ferro, entrançadas em si próprias. O piso era de madeira alisada à mão e a cave da base era a serventia do jardim. Duas escadinhas de ferro, curvadas num V que parecia um coração, davam acesso ao coreto. Não era grande, apenas o suficiente para dez casais dançarem a valsa.

No tempo do segundo Senhor da Casa Grande, que saíra vencedor da Guerra da Brasa dos Ferros, o coreto fora pátio de casamentos. Num dia de muita alegria celebrava-se o casamento da filha mais nova das doze filhas dos Senhores, quando caiu uma chuva forte, seguida de bolas de granizo. O padre abençoou os noivos e fugiu do coreto, atrás dos outros convidados que se refugiaram na casa. Um serviçal foi enviado para socorrer os noivos, mas ficou ignorado junto à escada a ensopar-se, estoicamente de braço esticado a segurar o guarda-chuva, à espera que no coreto acabassem a primeira dança.

Um jovem das Terras, a mando da Senhora do terceiro Senhor da Casa Grande, que derrotara os Hunos da Peste numa guerra sem quartel, ia lá tocar violino uma vez por semana. Sozinho no coreto, embalava os presentes até o General da Guerra dos Apeninos acordar, e com voz militar soltar um firme Bravo! O jovem deixou de ir quando a Guerra Maior rebentou, mas foi substituído pelo filho do Senhor, que não tinha talento para a música, mas que fazia soltar muitos Bravos por baixo do coreto, quando por ali rebolava na palha com alguma rapariga da casa, que por essa altura tinha 40 serviçais.

Anos passados, os dois filhos mais novos do quarto Senhor da Casa Grande, que arrasara com crueldade o motim dos Lobos Negros, pegaram numa lata com um resto da tinta amarela que servira para pintar três tectos em dois quartos, e rodaram os pincéis pelas paredes do coreto, enquanto os jardineiros sorriam das traquinices dos jovens Senhores. Depressa os moços se cansaram e o coreto ficou durante meses meio amarelo, até que um infeliz jardineiro levou com o pingalim do Senhor e o seu filho acabou de pintar o coreto.

Um dia, uma banda dos terrenos búlgaros veio tocar no jardim do quinto Senhor da Casa Grande, que os conquistara na Guerra das Sardenhas, mas o coreto era pequeno e os pífaros, que ficaram de fora, não se faziam ouvir porque as tubas e os tambores, lá de cima ribombavam tanto que abanavam as árvores. O Senhor, furioso, só lhes pagou metade do acordado e ameaçou largar-lhes os cães.

Também por lá passou, pela casa dos cordames, uma geração de sonhadores. A Senhora e o sexto Senhor da Casa Grande, que fora herói ao espezinhar a Revolta dos Cepos, deram ordens para se pôr bancos de jardim no coreto e ali ficavam perdidos a olhar o céu, à noite, e a ensinar aos pequenos o nome das estrelas. A única luz que se via era a cigarrete do Senhor, que luzia no escuro. No verão ouviam-se as rãs do lago e nas noites escuras de inverno, os veados que andavam pelos campos da Casa Grande e de dia enfrentavam as balas, eram atraídos pelo fumo, mas só deixavam ouvir os cascos no saibro do caminho.

Outro ano ainda, o doutor, homem pacato que nunca guerreara, mas que cortejava a herdeira da casa há dois anos, numa noite iluminada ajoelhou-se no coreto e pediu-a em casamento. A menina gritou sim e puxou-o, agarrou-o e beijou-o com força, enquanto lhe apertava as nádegas. O doutor, habituado a só ver eczemas, inventou uma viagem súbita e fugiu. O sétimo Senhor da Casa Grande, que vencera com glória a Guerra da Mão Beijada, ficou feliz por ver desaparecer tal cobarde. O homem não voltou às Terras. A menina chorou dias a fio, até que um primo lhe deu um colar de ouro, pilhado na Guerra do Sul, e enquanto cheirava rapé africano lhe mostrou que havia quem gostasse de moças fogosas. Partiu para o Equador para combater na Guerra Menor, mas regressou sem glória à Casa Grande, sem ter lutado uma única batalha. A herdeira já casara e o casamento fora no coreto.

O coreto deixou de ter serventia quando morreu de parto a Senhora do oitavo Senhor da Casa Grande, que o deixou com oito filhos, uma melancolia crónica e uma guerra interior. Um jardineiro cortava as ervas que iam crescendo, mas o chão de madeira estava corroído do bicho e nas ferragens brancas viam-se manchas vermelhas, onde a ferrugem rasgava a tinta.


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