03 maio, 2019

Cicatrizes


A mesa de trabalho era uma permanente desordem. Debaixo de pilhas de papéis e de livros, podiam encontrar-se cigarros amachucados, mortalhas e fósforos queimados. Gostava do ritual do fumo, desde o ato de escolher até o enrolar o tabaco nas mortalhas lisas antes de o fumar. Um vício que o acompanhava desde a adolescência, mas que continuava a ser um prazer. Não gostava da ideia dos cigarros industrializados, iguais, arrumadinhos numa caixinha de cartão duro. Havia como que um glamour naquela preparação artesanal, naquelas nuvens de fumo denso e azulado. Se em tempos era visto como uma coisa de velhos, dava-lhe agora ares de modernidade.

O álcool era, havia já muito, um velho aliado. Dada a natureza solitária do seu trabalho e as dores da vida que experimentara, encontrara nele o antídoto para a timidez e para a produção de lampejos criativos. Antissocial assumido, bebia sozinho e de forma descontrolada. Na sua relação íntima com a bebida, vivia num perpétuo estado de letargia. Nos seus raros momentos de sobriedade, chegamos a trocar impressões sobre o romantismo sombrio de Poe, o simbolismo de Rimbaud e o decadentismo de Álvaro de Campos. Conversas de haxixe e de absinto, melhor dizendo! De resto, era homem dado a poucas falas, pouco preocupado com a complexidade humana que outrora deixara algumas cicatrizes no seu império interior. 

Não preciso de ninguém dizia tenho o que me faz falta. Vivo muito bem assim com os meus livros e o meu silêncio.

Eu, que já o conhecia havia muitos anos, sabia que era mentira. Desejava ouvir vozes, barulhos e sentir cheiros à sua volta. Optara, no entanto, por renunciar a todos eles, cobiçando-os apenas em segredo. Apresentava uma tristeza no rosto e nos modos, um semblante duro onde o sorriso se tinha desvanecido havia demasiado tempo. A doçura habitara um dia nos seus olhos de um azul-acinzentado que se mostravam agora apagados e descrentes. Não nos víamos muitas vezes. Ele, que insistia naquele retiro decadente, não gostava de receber visitas. Éramos amigos ou tínhamos sido um dia. Afligia-me o seu estado de tristeza profunda.

 És mesma parva ralhava ele Quem é que anda triste aqui? Nunca estive tão satisfeito na puta da vida.

Se estás assim tão bem, para que é essa merda toda que enfias pela goela abaixo? inquiria, furiosa, apontando para as inúmeras caixas de comprimidos que guardava numa das gavetas da secretária.

És como todas as outras, uma chata com a mania que sabe tudo. Mais a merda! Um gajo não pode tomar uns comprimidos para as dores, que é logo drogado ou está com depressão. Têm todas a mania que são espertas! Sabes o que andas a fazer , tu? És um modelo de perfeição! Põe-te a andar daqui para fora, quero ficar sozinho. Não me apareças mais pela frente!

Assim que a razão dava lugar àquela fúria desmedida, saía porta fora, deixando-o a proferir imprecações contra tudo e contra todos.

Passaram-se muitos meses até que tornasse a vê-lo. Demasiados. Ao longo de um decadente processo de lentificação motora e do pensamento, perdera-se da pessoa que tinha sido. A loucura apoderara-se do Pedro que jurava que os via todos, agora com a maior clareza, que nunca se tinha sentido tão completo.

Os gajos finalmente saíram de lá de dentro e falam comigo. Contam-me tudo! murmurava baixinho apontando para os livros que tinha na cabeceira. Envolto naquela alienação, sorrira, puxara-me para ele e segredara-me ao ouvido: Dizem que estou todo baralhado! Tretas, nunca estive tão lúcido na puta da vida!

Naquele momento, tive a certeza que nos perderíamos um do outro e não faltaria muito tempo. De facto, passaram-se apenas três dias para que me despedisse de Pedro na semi-obscuridade do quarto de onde se ouvia o vento levar para longe o grito de uma gaivota.


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