A mesa de trabalho era uma permanente desordem. Debaixo de
pilhas de papéis e de livros, podiam encontrar-se cigarros amachucados,
mortalhas e fósforos queimados. Gostava do ritual do fumo, desde o ato de
escolher até o enrolar o tabaco nas mortalhas lisas antes de o fumar. Um vício
que o acompanhava desde a adolescência, mas que continuava a ser um prazer. Não
gostava da ideia dos cigarros industrializados, iguais, arrumadinhos numa
caixinha de cartão duro. Havia como que um
glamour naquela preparação artesanal, naquelas nuvens de fumo denso e
azulado. Se em tempos era visto como uma coisa de velhos, dava-lhe agora ares
de modernidade.
O
álcool era, havia já muito, um velho aliado. Dada a natureza solitária do seu trabalho e as dores da vida que experimentara, encontrara nele o antídoto para a timidez e para a produção de lampejos criativos. Antissocial assumido, bebia sozinho e de forma descontrolada.
Na sua relação íntima com a bebida, vivia num perpétuo estado de letargia. Nos
seus raros momentos de sobriedade, chegamos a trocar impressões sobre o
romantismo sombrio de Poe, o simbolismo de Rimbaud e o decadentismo de Álvaro
de Campos. Conversas de haxixe e de absinto, melhor dizendo! De resto, era
homem dado a poucas falas, pouco preocupado com a complexidade humana que
outrora deixara algumas cicatrizes no seu império interior.
Não preciso de ninguém dizia tenho
o que me faz falta. Vivo muito bem assim com os meus livros e o meu silêncio.
Eu, que já o conhecia havia muitos anos, sabia que era
mentira. Desejava ouvir vozes, barulhos e sentir cheiros à sua volta. Optara,
no entanto, por renunciar a todos eles, cobiçando-os apenas em segredo. Apresentava
uma tristeza no rosto e nos modos, um semblante duro onde o sorriso se tinha
desvanecido havia demasiado tempo. A doçura habitara um dia nos seus olhos de
um azul-acinzentado que se mostravam agora apagados e descrentes. Não nos
víamos muitas vezes. Ele, que insistia naquele retiro decadente, não gostava de
receber visitas. Éramos amigos ou tínhamos sido um dia. Afligia-me o seu estado
de tristeza profunda.
És mesma parva ralhava ele Quem
é que anda triste aqui? Nunca estive tão satisfeito na puta da vida.
Se estás assim tão bem,
para que é essa merda toda que enfias pela goela abaixo? inquiria, furiosa, apontando para as
inúmeras caixas de comprimidos que guardava numa das gavetas da secretária.
És como todas as
outras, uma chata com a mania que sabe tudo. Mais a merda! Um gajo não pode
tomar uns comprimidos para as dores, que é logo drogado ou está com depressão. Têm
todas a mania que são espertas! Sabes o que andas a fazer , tu? És um modelo de
perfeição! Põe-te a andar daqui para fora, quero ficar sozinho. Não me apareças
mais pela frente!
Assim que a razão dava lugar àquela fúria desmedida, saía
porta fora, deixando-o a proferir imprecações contra tudo e contra todos.
Passaram-se muitos meses até que tornasse a vê-lo. Demasiados.
Ao longo de um decadente processo de lentificação motora e do pensamento,
perdera-se da pessoa que tinha sido. A loucura apoderara-se do Pedro que jurava
que os via todos, agora com a maior clareza, que nunca se tinha sentido tão
completo.
Os gajos finalmente
saíram de lá de dentro e falam comigo. Contam-me tudo! murmurava baixinho apontando para os
livros que tinha na cabeceira. Envolto naquela alienação, sorrira, puxara-me
para ele e segredara-me ao ouvido: Dizem
que estou todo baralhado! Tretas, nunca estive tão lúcido na puta da vida!
Naquele momento, tive a certeza que nos perderíamos um do
outro e não faltaria muito tempo. De facto, passaram-se apenas três dias para
que me despedisse de Pedro na semi-obscuridade do quarto de onde se ouvia o
vento levar para longe o grito de uma gaivota.
Muito bom!
ResponderEliminarMuito obrigada!É bom esse feedback.
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