25 março, 2019

Fábula do homem encantado


Para o homem encantado tudo é noite. A felicidade é como o âmbar que envolve o inseto, não o deixando mover nem sequer respirar, mas conservando-o no seu esplendor.

O sol, já sem luz, num capricho apaga-se. Na planície azul escapa-se o dia. Pequenas ondas de novelos alisam o cabelo, ventos do manto de nevoeiro branco, grosso e quente, que abafam o escuro. Procura o calor, que vem aos poucos e se perde em nada. O corpo treme e retoma o caminho sem sentido, sem fim sempre que começa, com o fim com que sempre acaba. Tudo o que é vivo é magia e toda a vida é ilusão.

Não pede, recebe o que há. Na gruta sem teto, onde se enleia no calor e nos medos, ela não vem e quando vem, está, perdeu-a na memória tanta vez. A neblina e a paisagem azul consomem-no, mas é tudo imaginação, não fosse mais disso o que fica, os abismos dos passos, as cores cinzentas das flores, os cheiros nos gostos e todas as lembranças que passam e nele ficam e não interessam.

Numa dessas noites sem sol, mas quente, chega. Não a acompanha bem, no fundo da sua gruta sem teto tudo é confuso, portas e caras que falam sem mexerem os lábios ou então, em silêncio, chamam alguém num manto branco que baralha os sentidos do homem encantado. O sentimento é ansiedade, um querer imediato, cortante, como aquele que deseja o calor e o vermelho do seu sangue, que escorre pintando desenhos coloridos por onde passa, espraiando-se naquilo que foi antes a vida e que hoje é desejo intenso, entre sofás brilhantes.

Ao olhar do homem encantado tudo é luz, encandeia. O manto dos seus cabelos envolve-o, a calda é doce, tão doce, embala-me no teu regaço, dá-me ternura e o desejo arde e entre a névoa o tempo torna-se real e curto, mas forte. Naquele momento está feliz, mas tudo é prazer e angústia e sem se aperceber anda à roda do sulco do mesmo caminho.

Ela desfaz-se no lado escuro da gruta e ele num poço, onde as luzes lentamente ofuscam e morrem e na mesa nada está, nada, nem a memória do seu peito que tão bem se encaixa. A confusão torna-se impotência e o desespero bate como o sino do campanário da planície azul e cerra os olhos no escuro do poço, pesados pela névoa dos sonhos de ópio. O mar continua salgado e escuro e entre almofadas nuas, lembra-se do que noutros dias esquece.

Para o homem encantado tudo é difuso e irreal. A felicidade é como o âmbar que envolve o inseto, não o deixando mover nem sequer respirar, mas conservando-o no seu esplendor.


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