20 março, 2019

Terror medieval

No ano de 1551, Cristóvão Rodrigues de Oliveira, guarda-roupa de Dom Fernando, arcebispo de Lisboa, escreveu para o seu amo um Sumário da cidade, onde apontava ofícios da época, entre outras curiosidades. Aqui ficam alguns, em jeito de história: 
“O atafoneiro, que berrava desesperado com dores, gritou pelo seu mariolaa quem dava pão escuro, muito trabalho e uma zurzidela diária, além de o mandar de três em três anos ao calceteiro. O mariola saiu esbaforido da atafona à procura do saca-molas, que andava desaparecido fazia três dias.
Desceu o caminho e já na planura o vento trouxe-lhe o fedor dos tanques dos surradores. Benzeu-se três vezes e deu Graças pela sua vida fácil de mariola. Já perto da capela da Nossa Senhora da Luz, o cheiro o sebo cozido das velas enchia o ar junto ao beco dos cereeiros, e mais adiante, o pó da farinha crua parecia pairar sobre as hóstias ainda por abençoar. A mulher do obrieiro perguntou-lhe ao que vinha. Torceu o nariz quando ouviu falar do saca-molas. Não é homem de Deus, resmungou. Encostada à empena da capela uma merceeira benzia-se e entoava uma ladainha. 
Finalmente encontrou o saca-molas, bêbado de três dias, tombado num poial, e arrastou-o até à atafona. O mariola e mais dois agarraram rijamente o atafoneiro enquanto o saca-molas, em equilíbrio precário, com uns ganchos enferrujados que trazia sempre pendurados ao pescoço, lhe desbastava as gengivas e sacava cá para fora o último dos molares. Pois é, o saca-molas era dentista e naquele tempo não havia anestesias. 


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