23 outubro, 2019

Na mira de uns corações aflitos quem sorria era a bala

Lisboa, princípios de 80. Éramos putos, andávamos a descobrir, tínhamos um grupo fixe, a vontade não faltava. Garrafas na mão, íamos curtindo, elas gostavam, nós gostávamos, boa onda. As conversas eram sempre para mudar o mundo, acho que faz parte, ou sobre o livro tal, ou o filme tal ou o disco tal.
Inventavam-se coisas, tipo o Johnny Rotten tinha cantado o "God save the Queen" em cima de um banco, porque era proibido ofender a dita em solo inglês e ríamos porque para nós era verdade e queríamos fazer o mesmo.
Aqui e ali íamos-nos refundindo num beco para dar uns bafos de marroquinices, que também faziam parte da arte de descobrir as coisas. Depois a festa continuava pela rua.
Naquele dia éramos uns oito, não sei, a algazarra era grande. Passámos por um polícia, vulgo bófia ou "burro cinzento" por causa daquelas fardas horríveis que usavam e o burburinho baixou de tom. A ditadura ainda estava a apodrecer e a democracia chegava devagar, devagarinho. Continuava-se a cuspir no chão.
De repente, de trás vem um grito tipo filme americano: todos encostados à parede, rápido, já, identifiquem-se. E nós feitos parvos a olhar uns para os outros. Alguém perguntou, está a falar com a gente? e o homem tirou a pistola e com os braços esticados, apontou-a a quem estava à frente. Se assim não fosse, o bigodinho fininho, o tronco fininho e a barriga enorme só davam para rir.
O bófia suava, rápido, rápido, as mãos na parede. O homem estava passado e a abanar a pistola, não parecia saber bem o que queria.
Encostámos-nos a um muro. Tirem as coisas dos bolsos. Isto era dirigido aos rapazes, pois as raparigas pouco usavam bolsos.Usavam aquelas saias rodadas, que eram bem práticas para certas coisas. E o respeitinho também era muito bonito.
Tirámos as carteiras, vulgarmente tesas, isqueiros, tabaco, BI, 
rebuçados de mentol, as coisas do costume.
As miúdas usavam também aquelas bolsinhas a combinar com a roupa e quando havia algo "ilegal" costumava andar ali. Quando falo de ilegal, atenção que falo de caramelos espanhóis ou bombons de chocolate. E quando íamos a Setúbal buscar cinco toneladas daquilo, elas punham na bolsinha, afinal numa bolsa de mulher cabe qualquer coisinha.
Bem, o homem estava desvairado, sacudia a pistola no ar e bufava e eu a pensar ainda dá algum tiro, e como nestas coisas salvem-se as mulheres e as crianças, ia-me calhar a mim.
Entretanto juntaram-se as vizinhas e umas diziam 
coitados dos miúdos e outras diziam, tão mimosos, será que os vai matar, e uma outra não tirava os olhos dos glúteos do meu amigo T.. Os vizinhos olhavam as miúdas e babavam-se e falavam ao contrário do que queriam, porque o que eles queriam sei eu. A democracia ainda não chegara ao cabelo empastado.
Foi então que o gajo se apercebeu da cena que ali se montara. Pensou três vezes e lá deve ter concluído que aquilo dava mais cana para ele do que para nós. Gritou muito alto, mais alto ainda para a vizinhança para não perder a face enbigodada, Sigam, Sigam, desapareçam, e o C. que era também doido perguntou, e o tabaco, vai ficar com ele

O homem estava tão nervoso que nem conseguia enfiar a arma no coldre, ou lá como se chama aquilo. Nós seguimos o nosso caminho banzados da tola e da pistola.
É por estas e por outras que hoje há psicólogos na polícia.

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